quinta-feira, janeiro 31, 2013

Da ressurreição aos Evangelhos da Infância. Resposta a Anselmo Borges

1. 
Num artigo publicado no Diário de Notícias, que pode ser lido aqui, a propósito do livro de Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré. A infância de Jesus, (Lisboa, Principia, 2012), o Pe. Anselmo Borges comenta diversos textos evangélicos relativos à infância de Jesus, não vendo neles, segundo uma expressão do jesuíta Juan Masiá, que cita, mais do que “um símbolo iluminador do que acontece em todo o nascimento”.
 


Parece pouco. Muito pouco. Mas já voltaremos a este assunto.
 
Porque, primeiro, Anselmo Borges começa por falar da morte de Jesus e do que se lhe seguiu, e aqui é igualmente acentuada a sua visão redutora, quando escreve: “Depois da crucifixão, fazendo o cômputo todo da sua existência, incluindo o modo como morreu - para dar testemunho do amor e da verdade do que moveu a sua vida: Deus que é amor -, os discípulos acreditaram que ele está vivo em Deus.
 
Significativamente, ao falar do que se seguiu à morte de Jesus na cruz, o Pe. Anselmo Borges não usa nunca a palavra “ressurreição”, porque, se o fizesse, teria de reconhecer que os discípulos (e os cristãos de todos os tempos) não acreditaram apenas que Jesus “está vivo em Deus”, mas sempre acreditaram e anunciaram que, se Jesus “está vivo em Deus”, como de facto crêem, é porque “ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai” (Credo de Niceia-Constantinopla).
 
Ao dizer somente que, após a morte de Jesus, “os discípulos acreditaram que ele está vivo em Deus”, Anselmo Borges propõe uma visão redutora da fé da Igreja, o que é, no mínimo, estranho para um padre católico.
 
Mas isso é um problema dele. (E talvez não só dele).
 
O que Anselmo Borges não pode fazer, no entanto, por amor à verdade e por respeito pelos textos do Novo Testamento, é afirmar ou insinuar que os autores humanos destes textos também achavam, como ele, que, após a morte de Jesus, os discípulos acreditaram apenas que Jesus estava vivo em Deus.
 
Os textos do Novo Testamento que se referem ao que aconteceu a Jesus depois da morte na cruz, não querem nunca dizer apenas que, agora, Jesus “está vivo em Deus”.
 
Todos esses textos, na sua diversidade, na sua nem sempre fácil complementaridade, pretendem sempre dizer muito mais. Querem sempre expressamente e intencionalmente dizer muito mais. Não somos nós, leitores tardios, que vemos esse «mais» nos textos. São eles que o dizem, são eles que o proclamam aos quatro ventos.
 
Os seus autores estarão enganados? Terão sido vítimas de uma ilusão? Houve alguns que o pensaram, no passado, a meu ver sem nenhum fundamento.
 
Mas, mesmo que se tivessem enganado, mesmo que tivessem sido vítimas de uma ilusão (o que estou firmemente convencido de que não aconteceu), uma coisa é certa: todos afirmam, na grande variedade dos seus matizes, ou mesmo sob expressões diversas, que Jesus “ressuscitou verdadeiramente”, como ouvem dizer, segundo S. Lucas, os dois discípulos de Emaús, ao regressar ao local onde “acharam reunidos os Onze e os que com eles estavam. Todos diziam: «O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão»” (Lucas 24, 33-34).

S. Paulo é muito discreto em relação ao seu encontro com Cristo ressuscitado, esse acontecimento decisivo que teve lugar alguns anos mais tarde, e que o transformou de perseguidor em anunciador, e apenas alude sobriamente a esse acontecimento numa passagem da Carta aos Gálatas (1, 13-20), que conclui com esta solene afirmação: “Acerca do que vos escrevo – Deus é minha testemunha – não estou a mentir” (Gálatas 1, 20).

Mas há um passo da 1ª Carta aos Coríntios (escrita cerca do ano 55), em que S. Paulo afirma, sob a forma de pergunta, o essencial desse acontecimento que tudo mudou na sua vida: “ (…) Não vi eu a Jesus Cristo Senhor nosso?” (1 Coríntios 9, 1)

Na verdade, Saulo de Tarso viu Jesus Cristo, não “vivo em Deus”, mas diante de si. E viu-O por uma única razão: porque Jesus “ressuscitou verdadeiramente”.





Cristo ressuscitou. Christos Anesti!

Por essa mesma e única razão, S. João põe na boca dos discípulos este testemunho dirigido a Tomé, após a primeira aparição do Ressuscitado: “Vimos o Senhor” (João 20, 29).

Pelas razões que entender ou por simples preconceito positivista, Anselmo Borges poderá duvidar da credibilidade destes relatos, e é talvez por isso que não os cita nunca, mas não pode negar que é este o testemunho ou a mensagem que todos os textos do Novo Testamento que se referem ao que aconteceu depois da morte de Jesus, querem transmitir, como transparece, com deslumbrante limpidez e inequívoca fidedignidade histórica nesta passagem da 1ª Carta aos Coríntios:
 
“Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas, e em seguida aos Doze. Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior parte ainda vive (e alguns já morreram); depois apareceu a Tiago, em seguida a todos os apóstolos. E, por último de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo. Porque eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça que Ele me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo. Portanto, seja eu ou sejam eles, assim pregamos, e assim crestes (1 Coríntios 15, 3- 11).
2.
Relativamente aos Evangelhos da Infância, Anselmo Borges submete-se ao diktat, (que é um verdadeiro dogma exegético), de que que os Evangelhos de Mateus e Lucas utilizam “um género literário próprio, o midraxe, que não quer narrar factos, mas ler teologicamente”.
Mas será que é isto que Mateus e Lucas fazem? Só por preconceito é que se poderá dizê-lo.
S. Mateus caracteriza expressamente muitas partes da sua narrativa como estritamente históricas, utilizando repetidamente as formas verbais «acontecer», «cumprir», ou outras semelhantes.
É o caso das passagens seguintes: 1, 18.22; 2, 15.17.23; 4, 14; 8, 17; 12, 17; 13, 35; 21, 4: 26, 56; 27, 9; 28, 15. E nunca introduz de modo diferente nenhum outro trecho em que vai relatar eventos ou acontecimentos factuais, pelo que podemos concluir que Mateus pretendia que o seu Evangelho tivesse um carácter estritamente histórico (Cf. J. W. SCOTT, “Matthew’s intention to write history”, Westminster Theological Journal 47 (1985) 68-81, disponível aqui).
É inegável, portanto, que Mateus quer narrar factos. Um dos pioneiros da moderna «crítica da redacção», o teólogo e exegeta evangélico Willi Marxsen, declara que “Mateus escreve como historiador, como as suas citações do Antigo Testamento em particular demonstram” (Introduction to the New Testament, Oxford, Blackwell, 1968, p. 157).
S. Lucas, por sua vez, teve o cuidado de comunicar a “Teófilo” a sua preocupação de integrar numa narração cuidada e ordenada os numerosos testemunhos que ouviu ou recolheu, incorporando também no seu Evangelho muitos outros textos dispersos ou relatos breves que já existiam (cf. Lucas 1, 1-4).  
Bento XVI observa no entanto que, na base dos relatos de S. Lucas referentes à infância de Jesus, parece estar um texto hebraico. Por isso, houve quem tentasse compreender os dois primeiros capítulos deste Evangelho “a partir de um género literário antigo, designando-os como um «midraxe hagádico», isto é, uma interpretação da Sagrada Escritura através de narrações”. A semelhança literária é inegável; apesar disso, conclui Bento XVI, “é claro que a narrativa de Lucas da infância não se situa no antigo judaísmo, mas no cristianismo primitivo” (J. RATZINGER / BENTO XVI, A infância de Jesus, p. 20).
Que significa esta afirmação? Significa que S. Lucas não pretende «interpretar» mas anunciar o acontecimento de Cristo, na sua facticidade e na sua novidade irredutível aos antigos relatos, embora estes, que têm no mistério de Cristo o seu cumprimento, o possam, por isso mesmo, iluminar e ajudar a compreender.
Numerosos episódios bíblicos e antigas profecias que ficaram como que suspensas no tempo, como palavas “à espera” (cf. ibid., p. 46), isto é, à espera de uma realização definitiva, agora cumprem-se em Jesus.
É o que diz ainda Bento XVI:  
“A história aqui narrada [nos Evangelhos de Mateus e Lucas] não é simplesmente uma ilustração das palavras antigas, mas a realidade que as palavras aguardavam. Esta, nas palavras, por si sós, não era reconhecível, mas as palavras alcançam o seu significado pleno através do evento em que as mesmas se tornam realidade” (p. 20).
Por isso, nos Evangelhos não temos histórias, mas história, em que as antigas profecias encontram o seu cumprimento:
“Resumindo, Mateus e Lucas – cada um à sua maneira – queriam, não tanto narrar «histórias», mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada" (J. RATZINGER / BENTO XVI, A infância de Jesus, p. 21).
Sendo bem claro, portanto, que os Evangelistas não «inventaram» estas «histórias», mas quiseram escrever «história», qual é a mensagem essencial que esta «história» continua hoje a transmitir-nos?
 
3.
Tanto o Evangelho de S. Lucas como o de S. Mateus, pretendem transmitir esta mensagem: o Filho de Deus, Jesus Cristo, foi gerado no seio de Maria pelo poder de Deus.
Os Evangelhos de S. Mateus e S. Lucas, cada um a seu modo, anunciam que Jesus foi gerado e nasceu por puro dom de Deus, que Maria acolheu no seu coração e em todo o seu ser. Jesus não foi gerado por um homem, mas pelo poder de Deus, e foi acolhido, de um modo livre e consciente, pela pura disponibilidade virginal de Maria.
Não é por acaso que S. Lucas inicia assim o seu relato do anúncio do Anjo a Maria, apresentando-a repetidamente como a Virgem: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de David, e o nome da virgem era Maria” (1, 26-27).
Este anúncio é uma surpresa divina. É um dado inteiramente novo, que se impõe à fé, e que os cristãos acolheram desde o início com imensa alegria e admiração. “Desde as primeiras formulações da fé, a Igreja confessou que Jesus foi concebido unicamente pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, afirmando igualmente o aspecto corporal deste acontecimento” (Catecismo da Igreja Católica, n. 496).
Os Evangelhos entendem a concepção de Jesus como uma obra divina, que ultrapassa toda a compreensão e possibilidade humanas. “O que nela se gerou é fruto do Espírito Santo”, diz o Anjo a José, a respeito de Maria, sua esposa (Mateus 1, 20).
De realçar que no livro A infância de Jesus, Bento XVI não foge à pergunta decisiva: 
“O que os dois evangelistas Mateus e Lucas, de forma diferente e com base em tradições diversas, nos referem sobre a concepção de Jesus por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, é um acontecimento histórico real, ou é uma lenda piedosa, que, a seu modo, quer exprimir e interpretar o mistério de Jesus?” (p. 47).
E responde que nem nas narrativas sobre a geração e o nascimento dos faraós egípcios, nem nos textos provenientes do ambiente greco-romano se pode falar de verdadeiros paralelos. Conclui então:
“As narrações em Mateus e Lucas não são formas mais desenvolvidas de mitos. Segundo a sua noção de fundo, estão solidamente colocadas na tradição bíblica de Deus Criador e Redentor. Mas, quanto ao seu conteúdo concreto, provêm de tradição familiar, são uma tradição transmitida que conserva o sucedido” (p. 48).
 
 

Theotokos Aeiparthenos, A Eleusa Theotokos de Tolga  (séc. XIII)
  
4.
Mas porquê a concepção virginal de Jesus no seio de Maria? Por que motivo quis Deus, segundo S. Mateus e S. Lucas, que o seu Filho se fizesse homem deste modo, e não como todos os outros seres humanos, que vêm ao mundo como fruto da doação espiritual e física dos seus pais?
Por esta razão: porque o nascimento do Filho de Deus não é uma decisão humana, mas o resultado de uma decisão inteiramente gratuita e misericordiosa de Deus. “A virgindade de Maria manifesta a iniciativa absoluta de Deus na Encarnação. Jesus só tem Deus por Pai” (Catecismo da Igreja Católica, n. 503).
Jesus não podia ser gerado como os outros seres humanos, porque Ele não é um simples homem, mas o próprio Deus feito homem.
A humanidade de Jesus foi criada pelo poder de Deus no seio de Maria. A virgindade de Maria e a concepção virginal de Jesus são o sinal do poder de Deus, que faz acontecer a Encarnação do Filho unigénito do Pai.
Além disso, “Jesus é concebido pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, porque Ele é o Novo Adão, o Homem Novo, que inaugura a criação nova” (Catecismo da Igreja Católica, n. 504).
A vida de cada ser humano é sempre um mistério admirável, mas não é isso que os Evangelhos pretendem primariamente comunicar, ao contrário do que diz Anselmo Borges. A sua mensagem bem clara é que Jesus não é apenas mais um, entre tantos milhões de seres humanos, com toda a dignidade própria da condição humana e também com o peso de tantas misérias que se transmitem de geração em geração, mas um começo inteiramente novo.
No entanto, Jesus só pode ser o Homem Novo, porque é “fruto do Espírito Santo” (Mateus 1, 20).
Por conseguinte, o que dizemos no Credo – «Creio em Jesus Cristo, seu [de Deus] único Filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria – é mesmo verdade?
“A resposta, sem qualquer hesitação, é sim” – afirma Bento XVI – que cita o teólogo suíço Reformado Karl Barth, para assinalar que há dois pontos na história de Jesus em que a acção de Deus intervém no mundo material: no parto da Virgem e na ressurreição do sepulcro:
«Karl Barth fez notar que, na história de Jesus, há dois pontos nos quais o agir de Deus intervém directamente no mundo material: o seu nascimento da Virgem e a ressurreição do sepulcro, de onde Jesus saiu e não sofreu a corrupção. (…) Por isso, estes dois pontos – o parto virginal e a ressurreição real do túmulo – são verdadeiro critério da fé. Se Deus não tem poder também sobre a matéria, então Ele não é Deus. Mas Ele possui esse poder e, com a concepção e a ressurreição de Jesus Cristo, inaugurou uma nova criação; assim, enquanto Criador, Ele é também o nosso Redentor. Por isso, a concepção e o nascimento de Jesus da Virgem Maria são elementos fundamentais da nossa fé e um luminoso sinal de esperança» (p. 51-52).
Conclusão
Compreende-se assim facilmente que, ao não aceitar todo o conteúdo neotestamentário da ressurreição de Jesus – ou ao dilui-la de tal modo que fica equiparada a uma simples sobrevivência em Deus, que não se chega a saber se é pessoal, se simplesmente virtual – Anselmo Borges negue também a concepção virginal de Jesus Cristo e as própria virgindade de Maria, e esvazie completamente a densa mensagem dos Evangelhos da Infância, equiparando-a a uma simples exaltação da dignidade humana.
É um lamentável empobrecimento, que esvazia e destrói a fé cristã.
Não menos lamentável, porém, é verificar que a sua negação não decorre da compreensão das Escrituras ou de uma límpida reflexão teológica, mas do puro preconceito, que é o maior inimigo, não só da fé, mas também da razão. 
José Manuel dos Santos Ferreira
 




 

1 comentário:

  1. Muito obrigado, Sr. Padre, por esta reflexão. Também eu fiquei estarrecido face ao texto do Pe. Anselmo Borges, e não é infelizmente a primeira vez. Apenas me questiono: se os desvios face à boa doutrina são tantos e tão frequentes, porque é que ninguém actua? Conheço pessoalmente os estragos que as crónicas do Pe. Anselmo Borges fazem: deixam os leigos menos preparados numa confusão conceptual que, esvaziando a fé dos conceitos seguros, abala os seus alicerces. É uma situação gravíssima!

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