sábado, outubro 17, 2015

Novidade radical


Se é possível dizer que S. Paulo “adapta” os ensinamentos de Jesus sobre o matrimónio (como escreve o Pe. Miguel de Almeida, num recente artigo publicado na revista Brotéria), devemos entender que não o faz no sentido de pura e simplesmente facilitar o divórcio e permitir novas núpcias.

Em primeiro lugar, quanto aos casais cristãos, é evidente que não há a mínima “adaptação”.

Se esta existe, em 1 Coríntios 7,12-15, é para valorizar o grande acontecimento que é a conversão à fé e o Baptismo de um dos membros do casal, ambos inicialmente pagãos. Se um deles se torna fiel e o outro não, opondo-se até activamente a esta nova realidade, o antigo vínculo «natural» cede perante a novidade da graça, e este casamento pode ser dissolvido.

Deve concluir-se, portanto, que S. Paulo não “adapta” os ensinamentos de Jesus num sentido facilitador ou laxista, mas retira todas as consequências do encontro com Cristo por parte de um dos cônjuges, e da profunda transformação decorrente da fé e do Baptismo, que conferiram à vida desse homem ou dessa mulher que se tornou fiel, uma novidade radical.
 
I Epístola aos Coríntios. Iluminura da Biblioteca Nacional de França 
 

quinta-feira, outubro 15, 2015

S. Paulo adaptou os ensinamentos de Jesus sobre o matrimónio? O "Privilégio Paulino"


A Igreja tem vindo a adaptar os ensinamentos de Jesus ao longo da história pelo chamado «privilégio paulino» (e na sua extensão no que ficou conhecido como o «privilégio petrino»).

É o que afirma, num artigo recente, publicado na revista Brotéria, o Pe. Miguel Almeida, S.J.

Mas esta afirmação é imprecisa, porque o “privilégio paulino” não se aplica propriamente aos ensinamentos de Jesus sobre o matrimónio vivido na luz e na graça do seu Evangelho, aos quais S. Paulo se refere em 1 Coríntios 7, 10-11, mas sim ao matrimónio “natural”, instituído por Deus desde o início da Criação, e concretamente ao matrimónio entre um homem e uma mulher «pagãos», dos quais um se converte à fé cristã e é baptizado, e o outro permanece na infidelidade.

O caso é este:

Quando duas pessoas não baptizadas se casam validamente, existe entre elas o vínculo natural. Admitamos, porém, que uma delas se converte à fé e recebe o Baptismo. Se a outra parte continua não baptizada e torna insustentável a vida conjugal, a Igreja reconhece a dissolução desse vínculo natural, para que a parte baptizada possa contrair novo matrimónio, devendo este ser necessariamente sacramental.

Esta prática baseia-se no chamado Privilégio Paulino, segundo o que Apóstolo S. Paulo escreve em 1 Coríntios 7, 12-16: 

"Digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem esposa não cristã, e esta consente em habitar com ele, não a repudie. E, se alguma mulher tem marido não cristão, e este consente em habitar com ela, não o repudie. Pois o marido não cristão é santificado pela esposa, e a esposa não cristã é santificada pelo marido cristão. Se não fosse assim, os vossos filhos seriam impuros, quando na realidade são santos. Porém, se a parte não cristã quer separar-se, separe-se! Neste caso, o irmão ou a irmã não estão mais ligados; foi para viver em paz que Deus vos chamou. Porque, porventura sabes tu, ó mulher, se salvarás o teu marido? Ou sabes tu, ó marido, se salvarás a tua mulher?"

Nada nos permite afirmar, portanto, que S. Paulo adapte os ensinamentos de Jesus relativamente ao matrimónio na nova ordem do Reino de Deus, por Ele instituído, embora restrinja o alcance da indissolubilidade do matrimónio “natural”, que é relativizada em favor da fé.

Ainda menos o impropriamente chamado “privilégio petrino” se propõe adaptar quaisquer ensinamentos de Jesus relativos ao matrimónio celebrado e plenamente vivido por um homem e uma mulher no âmbito da Nova Aliança, mas apenas se aplica a diversos casos de matrimónios não sacramentais.


Assim se explica no texto seguinte:
 

PRIVILÉGIO PAULINO E PRIVILÉGIO PETRINO

 

  1. PRIVILÉGIO PAULINO (Privilegium paulinum)

O privilégio paulino chama-se assim pelo seu fundamento no texto paulino da 1ª Carta aos Coríntios (7,12-15).



S. Paulo fala como apóstolo, e tenta decidir uma questão concreta não decidida antes de ele intervir. Ainda que não se trate de um privilégio em sentido jurídico estrito, contém uma excepção à lei geral da indissolubilidade. Tal excepção tem lugar quando a um matrimónio válido e legítimo, contraído originariamente na infidelidade, falta o pressuposto da estabilidade por culpa do cônjuge não-batizado, que quer separar-se, e não consente à parte convertida a prática pacífica da religião cristã.

Em tal caso, o cônjuge cristão não fica ligado ao vínculo matrimonial, podendo separar-se e contrair novas núpcias. Os motivos que apoiam esta excepção são a paz religiosa e a liberdade de espírito que Deus quer para o cristão.

Trata-se, em substância, de um matrimónio entre dois não-batizados, no qual um se converte, e recebe o Baptismo, e o outro rejeita a fé e a coabitação pacífica com o fiel; tal matrimónio, ainda que consumado, dissolve-se “em favor da fé” (Código  de  Direito Canónico, cân. 1143). O “favor da fé” protege o valor supremo da salus animarum (a salvação das almas), da qual diz o cân. 1752 “que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema” e a causa justa, fundada em motivos e valores espirituais.

O matrimónio dissolve-se sem necessidade de recorrer à Santa Sé, como ocorre noutros casos, quando se verificam as condições previstas (cân. 1142).

O privilégio paulino não tem lugar no matrimónio entre uma parte baptizada e outra infiel. É necessário que a parte infiel se separe física ou moralmente, rejeitando coabitar pacificamente com a parte fiel sine contumelia Creatoris (“sem ofensa do Criador”). A parte fiel não deve ser causa responsável do abandono da parte infiel. Se esta consente na coabitação pacífica, o matrimónio não se dissolve, e a parte fiel pode manter a esperança fundada da conversão da infiel, ou poderá recorrer à simples separação manente vinculo (permanecendo o vínculo).

No caso previsto no Privilégio Paulino, o vínculo matrimonial contraído na infidelidade dissolve-se, quando a parte fiel contrai novamente matrimónio, ficando a parte infiel livre para também contrair outro.

As interpelações que deve fazer a parte convertida à infiel constituem um acto legítimo, e são necessárias para a validade (cân. 1144 § 1); e devem ser feitas depois do baptismo da parte convertida e antes da conversão da outra parte, dentro, portanto, do tempo no qual o uso do Privilégio Paulino é válido e lícito (cân. 1144 § 2). O cânon permite que, por causa grave, possam fazer-se as interpelações antes do baptismo da parte que se converte e que, tanto antes como depois do baptismo, possam dispensar-se as interpelações, quando não se possam fazer, ou se prevê com certeza moral que serão inúteis.

A forma de fazer as interpelações pode ser solene ou jurídica, e privada. A primeira é feita pelo Ordinário local em forma sumária e extraconjugal, concedendo, se for solicitado, à parte infiel um prudente espaço de tempo para reflectir antes de tomar a sua decisão; com a advertência de que, se nesse tempo não se obtém resposta, presume-se que é negativa, isto é, que se nega a coabitar pacificamente. A segunda, privada, tem lugar quando, não podendo fazê-la o Ordinário, a faz a parte convertida, e é válida e lícita, contanto que conste no foro externo. Há casos em que pode ser suficiente o interrogatório feito por um missionário, a declaração de duas testemunhas ou de um só católico digno de fé e sob juramento ou, finalmente, também um escrito autêntico da parte infiel em que declare que não quer converter-se nem habitar pacificamente (cân. 1145).

O vínculo do matrimónio legítimo não se dissolve com o baptismo de uma das partes, de tal modo que, se esta prefere não contrair novas núpcias com uma parte católica, a parte infiel permanece ligada ao matrimónio anterior.

O vínculo dissolve-se indirectamente, pois fica também livre a parte infiel, com o batismo da parte que se converte. Esta pode usar de seu direito de contrair matrimónio sacramental, enquanto durem as condições que exige o cânon, ainda que, sendo cristã, tenha vivido dentro do matrimónio com o seu consorte infiel.

Se, durante este tempo, mudam as circunstâncias, e a parte infiel se converte e baptiza, já não cabe novo matrimónio e, se ambos estavam separados, estão obrigados a restabelecer a sua vida conjugal, a não ser que, existindo causa grave e justa e sendo o seu matrimónio simplesmente rato e não consumado, obtenha a dispensa que pode ser dada neste caso (cân. 1142).

Pode suceder que a parte que se converteu, afastada do cônjuge infiel em virtude do Privilégio Paulino, queira contrair novo matrimónio com outra parte não-católica, batizada ou não. Neste caso, a parte católica necessita de uma concessão especial do Ordinário local. Para esta concessão, deve existir causa grave, posto que existe o perigo de perversão do recém-convertido. Se, a juizo do Ordinário, não existe causa grave, é necessário recorrer à Santa Sé, sob pena de nulidade. Estamos então nos matrimónios mistos, aos quais se devem aplicar os câns. 1124-1128 (e 1147).

 

PRIVILÉGIO PETRINO (Privilegium petrinum)

A expressão Privilégio Petrino surge por analogia com a de “Privilégio Paulino”. Se queremos conservar um certo sentido preciso e autónomo da expressão, devemos afirmar que se refere ao supremo poder vicário de Pedro e dos seus sucessores para dissolver toda a classe de matrimónios, excepto os compreendidos sob o Privilégio Paulino, e desde logo o matrimónio, enquanto rato e consumado, o qual “não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa além da morte” (cân. 1141).

Surge então a dificuldade de considerar ambos os Privilégios como dois modos distintos e duas possibilidades jurídicas concretas de dissolução matrimonial, esquecendo que o Privilégio Paulino não pode não estar compreendido no Petrino e que, portanto, se introduz uma distinção puramente artificial e exposta a confusões. Acrescente-se a dificuldade que gera o termo “Privilégio” que, não sendo mais que o supremo poder vicário, não é, de modo algum, “privilégio”. (No máximo, para manter a analogia de termos, poderia falar-se de “Privilégio Piano” (S. Pio V), “Privilégio Gregoriano” (Gregório XIII) e, para evitar confusões, “Privilégio de Paulo III”, aludindo às suas célebres Constituições, recolhidas no cân. 1125 do Código de 1917 (cf. cân. 1148 do Código de Direito Canónico de 1983).

Uma dificuldade prática, digna de se ter em conta é que, referindo-se ao privilégio petrino, existem tantas sentenças quanto os autores e que, silenciadas todas (são, pelo menos, dez distintas), parece mais conveniente prescindir desta pouco afortunada expressão, e referir-se simplesmente ao sumo poder vicário da Igreja para dissolver o matrimónio, mantendo-se o sentido estrito do “Privilégio Paulino” como um dos modos típicos desse poder e excluindo sempre o único matrimónio que na prática é absolutamente indissolúvel: o rato e, enquanto tal, consumado.

Não parece conveniente identificar, nem tampouco incluir, o Privilégio Petrino no Privilegium fidei, (privilégio da fé), nem sequer entendido num sentido muito amplo que o identifique com a dissolução in favorem fidei, (a favor da fé), porque, além de ficar incluído o “Privilégio Paulino” sob esta epígrafe, não é sempre a fé em sentido estrito a protegida, senão que entra também a salus animarum (salvação das almas) como fim da Igreja e como suprema lei jurídica da mesma (cân. 1752).

Por esta justa causa da salus animarum, a Igreja, em virtude de seu supremo poder vicário, pode dissolver inclusive o vínculo de um matrimónio legítimo (entre dois infiéis), mesmo que este matrimónio tenha sido consumado. Este poder pode ver-se compreendido dentro do Privilégio Petrino, porém entendendo este como o poder do Vigário de Cristo para dissolver, pelo bem das almas, qualquer vínculo natural, ainda que consumado, não sacramental.

No Código de Direito Canónico não figura, com bom critério, a designação de Privilégio Petrino, que tão-pouco é usada nos documentos da Santa Sé. A partir de Pio XII, são vários os matrimónios puramente legítimos que foram dissolvidos.







Fonte:

Carlos Corral Salvador - Dicionário de direito canônico", trad. brasileira, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2ª ed., 1997, pp. 605 – 607 (texto adaptado)