domingo, agosto 11, 2013

Como a fé atrai o futuro para dentro do presente



No XIX Domingo do tempo Comum, no «Ano C»,  lê-se, na 2ª leitura, uma passagem do Capítulo 11 da Epístola aos Hebreus, que começa assim, segundo a versão do Leccionário em uso em Portugal:
Irmãos: A fé é a garantia dos bens que se esperam e a certeza das realidades que não se vêem” (v. 1).
É de notar que se lê a seguir o v. 2, e depois se passa logo para o v. 8, que fala de Abraão.  Ao omitir esses  5 versículos em falta, perdem-se afirmações importantes, como esta:
Ora, sem fé é impossível agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe, e que recompensa os que O procuram” (v. 6).
Este versículo, bem como os restantes versículos que foram omitidos na versão litúrgica (talvez para não alongar a leitura) são citados e brevemente comentados pelo Papa Francisco, na Encíclica Lumen Fidei:
“A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a propósito de Henoc, que «tinha agradado a Deus», sendo isso impossível sem a fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que O procuram » (Heb. 11, 5.6). Deste modo, é possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé, em virtude da qual foram agradáveis a Deus os seus dons, a oferenda dos primogénitos dos seus rebanhos (cf. Heb. 11, 4). O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de coração sincero (Papa Francisco, Encíclica Lumen Fidei, de 29 de Junho de 2013, n. 35).



Mas é o primeiro versículo deste capítulo 11 da Carta aos Hebreus, que citei no início, que apresenta uma espécie de definição da fé, que, porém, não é de interpretação evidente, e nem sequer é fácil de traduzir. A ele se dedicou S. Tomás de Aquino, num texto denso da Summa Theologiae, II-IIae, q. 4, a. 1.
Por isso resulta fascinante este comentário de Bento XVI, na Encíclica Spe salvi, (a segunda da trilogia que foi agora concluída com a Encíclica Lumen fidei, assinada já pelo papa Francisco).
É um comentário luminoso, de grande profundidade e também de grande beleza, tornado ainda mais oportuno no contexto actual do «Ano da Fé»:
“Devemos voltar, uma vez mais, ao Novo Testamento. No décimo primeiro capítulo da Carta aos Hebreus (v. 1), encontra-se, por assim dizer, uma certa definição da fé que entrelaça estreitamente esta virtude com a esperança. À volta da palavra central desta frase começou a gerar-se desde a Reforma, uma discussão entre os exegetas, mas que parece hoje encaminhar-se para uma interpretação comum. Por enquanto, deixo o termo em questão sem traduzir. A frase soa, pois, assim: «A fé é hypostasis das coisas que se esperam; prova das coisas que não se vêem». Para os Padres e para os teólogos da Idade Média era claro que a palavra grega hypostasis devia ser traduzida em latim pelo termo substantia. De facto, a tradução latina do texto, feita na Igreja antiga, diz: «Est autem fides sperandarum substantia rerum, argumentum non apparentium – a fé é a ‘substância’ das coisas que se esperam; a prova das coisas que não se vêem».
“Tomás de Aquino (na Summa Theologiae, II-IIae, q. 4, a. 1), servindo-se da terminologia da tradição filosófica em que se encontra, explica: a fé é um «habitus», ou seja, uma predisposição constante do espírito, em virtude do qual a vida eterna tem início em nós e a razão é levada a consentir naquilo que não vê. Deste modo, o conceito de «substância» é modificado para significar que pela fé, de forma incoativa – poderíamos dizer «em gérmen» e portanto segundo a «substância» – já estão presentes em nós as coisas que se esperam: a totalidade, a vida verdadeira. E precisamente porque a coisa em si já está presente, esta presença daquilo que há-de vir cria também certeza: esta «coisa» que deve vir ainda não é visível no mundo externo (não «aparece»), mas pelo facto de a trazermos, como realidade incoativa e dinâmica dentro de nós, surge já agora uma certa percepção dela.
"Para Lutero, que não nutria muita simpatia pela Carta aos Hebreus em si própria, o conceito de «substância», no contexto da sua visão da fé, nada significava. Por isso, interpretou o termo hipóstase/substância não no sentido objectivo (de realidade presente em nós), mas no subjectivo, isto é, como expressão de uma atitude interior e, consequentemente, teve naturalmente de entender também o termo argumentum como uma disposição do sujeito. No século XX, esta interpretação impôs-se também na exegese católica – pelo menos na Alemanha – de modo que a tradução ecuménica em alemão do Novo Testamento, aprovada pelos Bispos diz: «Glaube aber ist: Feststehen in dem, was man erhofft, Überzeugtsein von dem, was man nicht sieht» (A fé é: permanecer firmes naquilo que se espera, estar convencidos daquilo que não se vê).
"Em si mesmo, isto não está errado; mas não é o sentido do texto, porque o termo grego usado (elenchos) não tem o valor subjectivo de «convicção», mas o valor objectivo de «prova». Com razão, pois, a recente exegese protestante chegou a uma convicção diversa: «Agora, porém, já não restam dúvidas de que esta interpretação protestante, tida como clássica, é insustentável» (H. Köster).
"A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que hão-de vir, mas estão ainda totalmente ausentes; ela dá-nos algo. Dá-nos já agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma «prova» das coisas que ainda não se vêem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro «ainda-não». O facto de este futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras” (Bento XVI, Encíclica Spe salvi, de 30 de Novembro de 2007, n. 7).