quarta-feira, setembro 07, 2022

«Relatório de Portugal»: Uma outra perspetiva sobre a Igreja em Portugal

Pela sua grande atualidade, partilho o importante texto, a seguir transcrito, da autoria dos sacerdotes do Patriarcado de Lisboa Mons. Duarte da Cunha e Pe. Ricardo Figueiredo, acessível também neste link:

 https://padrericardofigueiredo.blogs.sapo.pt/relatorio-de-portugal-uma-outra-24738.

Este texto propõe uma fundamentada alternativa ao «Relatório de Portugal» para a Assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023 recentemente divulgado.


«Relatório de Portugal»: Uma outra perspetiva sobre a Igreja em Portugal





A publicação do «Relatório de Portugal» para a Assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023 representa um ponto de chegada de um percurso que passou pelas paróquias e dioceses de Portugal. No entanto, a forma e o conteúdo da síntese nacional causaram perplexidade, que levou a muita reflexão. Muitos católicos não se reviram no resultado e, por isso, empreendemos o esforço de fazer a leitura de todas as sínteses diocesanas[1]. Pareceu-nos que, por razões que não sabemos, esse relatório não corresponde ao que estava nas sínteses diocesanas. Por isso, conscientes da dificuldade que existe em sintetizar 21 relatórios em poucas páginas, decidimos, mesmo assim, tentar fazer uma nova síntese que faça justiça aos conteúdos que foram apresentados por todas as dioceses. O resultado desta nova perspetiva sobre as sínteses diocesanas é o que agora aqui apresentamos, que por sua vez tentamos que represente o que foi dito pelas dioceses e não a nossa opinião pessoal.

Pe. Duarte da Cunha

Pe. Ricardo Figueiredo

I. Processo de recolha de informação

1. As sínteses diocesanas mostram como a célula paroquial é a estrutura fundamental da vida da Igreja em Portugal. É verdade que há uma feliz experiência em relação à existência de muitos e grandes movimentos no nosso país, embora, apesar de mobilizarem muitas pessoas, nem sempre são bem conhecidos no seu carisma e em algumas dioceses, como se revela nos relatórios, alguns têm dificuldade de integração. Fica patente que as paróquias, com a sua dimensão territorial, desempenham um papel fundamental na pastoral.

2. O que se pretendia com o processo sinodal era dinamizar as comunidades para uma avaliação dos desafios em estilo sinodal e não o estudo completo do que é, do que diz ser e do que faz a Igreja em Portugal: para tal seria necessário um estudo de outra envergadura. Algumas sínteses diocesanas assinalam os números de participantes no processo sinodal, que se pode dizer que é diminuto em relação ao número de católicos, representando, em média, a partir do que se pode apurar, uma participação de 1,14% dos católicos[2]. Assinalam-se algumas razões para isso: o desinteresse dos párocos, o desinteresse e desmotivação dos leigos, a situação pandémica, a dificuldade em relação à compreensão das perguntas, a dispersão em que muitas comunidades vivem.

3. Quanto ao processo segundo o qual se procedeu à recolha de informações, assinala-se a importância dos encontros presenciais, mas também o relevo que ganharam no contexto eclesial os meios digitais: usados quer em iniciativas para partilha e reflexão à distância, quer na simples recolha de respostas a questionários online. Referem-se alguns sinais tímidos da participação de pessoas que habitualmente não participam da vida eclesial, mas nos resultados não se assinalam quais as propostas de mudança das pessoas que habitualmente caminham numa comunidade cristã e quais são as propostas de quem não participa da vida eclesial, o que não permite uma leitura que atenda à complexidade dos dados e das experiências.

4. Ainda que a participação seja muito diminuta, muitas sínteses sublinham a alegria dos participantes em poderem realizar este caminho sinodal. Várias sínteses referem a importância do ambiente orante em que foram convidados a fazer a reflexão sinodal. Em alguns momentos, assinalou-se a importância da utilização do método do diálogo espiritual, que permitiu que as reflexões não fossem apenas uma apresentação de opiniões pessoais, mas um verdadeiro caminho de escuta do Espírito Santo e de atenção espiritual aos caminhos que Deus nos chama a percorrer. Isto mostra como o caminho sinodal não é um estudo sociológico, mas deve ser uma meditação à luz da fé que leve ao discernimento do que hoje nos é pedido como Igreja ser e fazer.

5. No processo de recolha de informação deve-se ainda apontar a preponderância de participantes que estão envolvidos diretamente na vida paroquial: membros de conselhos pastorais, leitores, acólitos, sacristães, cantores, catequistas, membros de instituições eclesiais, etc.. Há, é certo, experiências que foram além das redes paroquiais já existentes, mas são uma minoria. Tal dado demonstra como a participação dos católicos portugueses se restringiu muito à ação paroquial direta e levanta a questão do papel dos leigos na vida pública e de como respondem à vocação a ser «fermento na massa».

6. Várias dioceses chamaram a atenção para a complexidade das questões colocadas, que muitas vezes se apresentam numa linguagem de difícil compreensão para quem participou. Também surgem testemunhos de dioceses ou de paróquias dentro de algumas dioceses que procuraram adaptar a linguagem para que fossem mais facilmente compreendidas.

II. Apresentação dos resultados

7. Um dos elementos que surge em diversas sínteses é o facto de a sinodalidade já não ser uma novidade para a Igreja em Portugal: nos últimos anos várias dioceses empreenderam caminhadas sinodais, o que permitiu que as pessoas estivessem já ambientadas a métodos, não sem dificuldade, como também é assinalado. A este respeito é interessante verificar que apesar de tudo quanto se tem feito, algumas sínteses continuam a sublinhar a necessidade de formação para a sinodalidade: há não só resistências, mas sobretudo desconhecimento sobre a natureza e os objetivos de um processo sinodal. No âmbito de um sínodo para a sinodalidade, reconheceu-se que há falta de formação neste sentido, falta de prática e muitas vezes confusão, confundindo-se caminhar e trabalhar em conjunto com simples recolha de opiniões[3].

8. Várias sínteses diocesanas referem a alegria que os participantes sentiram por serem escutados e verem a sua perspetiva ser valorizada. Neste sentido, foi importante que se tenha reconhecido este processo como disponibilidade para escutar o que Deus quer dizer à Igreja e para que cada um se sinta membro ativo da Igreja. Este fator é importante, como acima fizemos notar, no próprio método do diálogo espiritual, proposto pelos documentos para a caminhada sinodal: mais do que falar de opiniões pessoais, o processo sinodal como tantas vezes insiste o Papa Francisco, tem de ter como protagonista o Espírito Santo, que faz ressoar a Sua voz. Portanto, mais do que um «estudo de opinião» sobre como se vê a Igreja, esta caminhada sinodal sinalizou a necessidade de se renovar o compromisso concreto com a missão evangelizadora da Igreja. De forma particular, pediu-se que as estruturas eclesiais estejam atentas à vida concreta das pessoas, nomeadamente nos horários praticados, na necessidade de as igrejas se encontrarem abertas e na disponibilidade para as pessoas serem recebidas pelos sacerdotes para o acompanhamento espiritual e, especialmente, para a confissão. Mas também no ir ao encontro das pessoas, nas suas necessidades espirituais e não só, o que em síntese significa o desejo de uma Igreja que seja sempre mais comunidade, para fazer frente à solidão e individualismo da sociedade.

9. A vida espiritual foi reconhecida como um elemento fundamental na vida dos cristãos e de toda a Igreja. As celebrações litúrgicas, de forma particular a Eucaristia, ocupam um lugar central na vida das comunidades cristãs, mas sente-se a necessidade de renovar essa centralidade e de aprofundar o significado da Liturgia. Em diversas sínteses assinalou-se também a necessidade de aprofundar a piedade popular.

10. Um aspeto que surge recorrentemente nas sínteses diocesanas é a necessidade da conversão pessoal de todos, dos pastores e dos leigos. Esta conversão surge como transformação na forma de estar em Igreja e na relação com os outros. Conduz a uma renovação na forma de vivência do serviço eclesial, que transforme a Igreja a partir de dentro, ou seja, a partir das pessoas. Por vezes é fácil querer uma renovação da Igreja, mais difícil é querer a própria conversão, que implica mudanças na própria vida. Esta caminhada sinodal indicou como necessária a renovação da vida espiritual dos católicos, de tal forma que estejam mais disponíveis para acolher a vontade de Deus, mais atentos a viver a vocação universal à santidade, mais solícitos em atender às necessidades dos irmãos. Também se mostrou a necessidade de empreender um caminho sério no diálogo ecuménico e no diálogo inter-religioso, que se reconhece como diminuto ou insuficiente.

11. Na reflexão sinodal, surge o reconhecimento da grande importância da missão caritativa da Igreja. Esta é vista também como um elemento cuja relevância é fortemente reconhecida pela comunidade civil. Além do atendimento às necessidades urgentes dos pobres e necessitados, algumas dioceses assinalaram a importância de ir mais a fundo e procurar caminhos de solução para as causas dessa pobreza. Além disso, não deixam de ser reconhecidos desafios, como a necessidade de tornar mais patente o caráter cristão da ação caritativa. Esta não é apenas uma extensão da responsabilidade estatal de socorrer aos mais necessitados, mas deve envolver todos os fiéis e comunidades, fazendo emergir a fecundidade da fé na caridade.

12. Reconhece-se o papel importante que a Igreja ainda exerce no contexto da sociedade civil, sendo muitas vezes solicitada, até por quem se encontra mais distante, para a realização de determinadas celebrações que são de caráter sacramental, como os batismos e os matrimónios, mas hoje muitas vezes apenas entendidos como eventos sociais. Juntam-se também os funerais a este tipo de celebrações, ainda reconhecidos por muitos, mesmo não crentes, como um momento central da vida social, em que é importante a presença da Igreja. Reconhecendo que há um grande contraste entre aquilo que a Igreja vive nestas celebrações e o que a larga maioria das pessoas entende, torna-se necessário tomar estes momentos como oportunidade de encontro e de evangelização: além de cuidar de aspetos formais, cuidar da preparação pessoal das famílias, sendo próximo e testemunhando a pertinência da Palavra de Deus para a vida das pessoas. Ainda sobre o relevo da Igreja na sociedade civil, não se deixou de mostrar alguma preocupação a respeito da imagem da Igreja católica que é veiculada, através de notícias de escândalos, como os abusos de menores ou a corrupção. Reconhece-se com dor o que isto implica, o compromisso por reconhecer os erros e purificar o interior da Igreja. Torna-se necessário renovar a imagem da Igreja: apesar de todos os pecados cometidos, ela tem futuro, é portadora de uma mensagem essencial para os dias de hoje, e está disponível para exercer a missão. À Igreja cabe testemunhar a presença libertadora e redentora de Jesus Cristo vivo, hoje como ontem.

13. As comunidades religiosas de consagrados, tanto masculinas como femininas, foram reconhecidas como importantíssimas na vida eclesial. A sua presença, pela oração e pela ação, mostra a necessidade que a Igreja tem desta dimensão da vida cristã no seu dia-a-dia, que não pode ser ignorada: sinalizam a caridade e a vida eterna a que todos somos chamados. Há uma necessidade de cuidar das vocações à vida religiosa, mostrar a sua beleza e a pertinência da sua missão na Igreja, que é desde sempre reconhecida como uma graça.

14. Diversas sínteses reconhecem o papel particular das famílias na vivência da fé cristã. Nestas se nasce para a fé e se aprende a participar na vida da Igreja. Também se assinala a dificuldade de compaginar a vida familiar com uma participação mais ativa na vida paroquial, o que por vezes causa algumas dificuldades. Surge, ainda, como um grande desafio, a proposta de uma vivência mais autêntica da doutrina e da moral católicas no seio das famílias, nomeadamente a respeito das questões da sexualidade conjugal.

15. Nas sínteses diocesanas, reconhece-se que, muitas vezes, se torna difícil o acolhimento dos que vivem uma vida moral a partir de outros valores. Surgiram várias participações que apelam a um maior acolhimento. Este parece ser, antes de mais, uma necessidade de cordialidade e amabilidade, na linha do que o Papa Francisco tem dito, e não a necessidade de mudar a doutrina ou de reinventar a pessoa humana, pois Jesus, que é a plena revelação de Deus, também é a plena revelação do homem. Trata-se do acolhimento de pessoas concretas, a partir do qual se começa a caminhar em conjunto rumo à santidade. Neste sentido, torna-se necessário esclarecer os diversos níveis de pertença à Igreja, para se evitar mal-entendidos: a Igreja abraça todos com amor e solicitude. Está no mundo para ser sinal da comunhão com Deus e, consequentemente, levar muitos a caminharem na vida com Cristo e a seguir as suas pisadas. O Evangelho de Jesus Cristo supõe uma antropologia, que não pode ser ignorada e da qual a Igreja deve ser arauto. A fidelidade a Jesus Cristo também deve ser fidelidade à Sua disponibilidade para a todos acolher, sem distinção, para o anúncio da proposta evangélica. A este respeito, também se sublinha como é importante a coerência de critérios a respeito da admissão aos sacramentos e ao múnus de padrinho e madrinha.

16. Especialmente na senda da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, surgem nas sínteses diocesanas várias referências ao papel dos jovens na Igreja. Reconhece-se que há muitos jovens para quem a Igreja não tem relevância, mas também se reconhece no interior da Igreja muitas experiências em que estes são os protagonistas e pretendem fazer caminho de vida cristã. Olha-se para a Jornada Mundial da Juventude como oportunidade de voltar a propor às camadas mais novas da sociedade a proposta cristã, de forma renovada e exigente. Percebe-se em diversos relatórios que é importante a vários níveis uma maior proximidade dos jovens e um melhor conhecimento dos anseios do seu coração. Para isso, há uma grande responsabilidade dos jovens católicos para que o anúncio da fé chegue aos seus coetâneos que ainda não conhecem a Jesus Cristo.

17. Várias sínteses reconhecem o papel importante da figura do sacerdote na vida da Igreja. A este respeito surgem testemunhos felizes de disponibilidade, entreajuda e incentivo à vida espiritual. Contudo, aparecem também testemunhos negativos, que assinalam atitudes clericalistas e autoritárias. A respeito do sacerdócio encontramos aspetos contraditórios: por um lado, pede-se que os padres estejam mais presentes na vida das pessoas, que se possam dedicar totalmente ao cuidado espiritual dos cristãos, que preparem melhor as homilias e que não estejam sobrecarregados com questões de gestão; por outro lado, pede-se que se repense o celibato como opção necessária para a ordenação, o que implicaria menos tempo para a vida pastoral, além de secundarizar a dimensão de consagração total do sacerdote. É necessário fazer emergir a beleza da vocação sacerdotal e ajudar a que ela seja considerada pelos jovens: num tempo em que tantas vezes o sacerdócio aparece ligado a muitas realidades negativas, é preciso reforçar a necessidade da santificação dos sacerdotes para mostrar o sacerdócio como caminho feliz de santificação e o celibato como identificação com Cristo.

18. Diversas sínteses assinalam a necessidade de reforçar o papel das mulheres na Igreja. Contudo, reconhece-se também o seu papel fundamental na vida das famílias, das paróquias e da sociedade. Sente-se necessidade de maior envolvimento nos processos de decisão e gestão.

19. Várias dioceses referem a necessidade de renovação da comunicação da Igreja. Em primeiro lugar, renovar o anúncio do Evangelho para realçar a beleza, a bondade e a verdade deste, com uma estratégia de comunicação adequada aos nossos tempos, nas diversas instâncias e nos vários meios. Há muita oferta, nomeadamente a nível digital, mas nem sempre quantidade significa qualidade. Em segundo lugar, com uma expressão eficaz das suas posições com a sociedade mais abrangente: algumas sínteses assinalam o desaparecimento da Igreja no âmbito público, ficando a sua referência muitas vezes resumida ou à ação sociocaritativa, ou a escândalos e outras notícias negativas. É necessário renovar a forma de comunicação da Igreja, assumindo posições claras e coerentes, com humildade e sem ressentimentos, transparecendo a alegria do Evangelho. Também se assinalou a necessidade de maior transparência em relação à gestão financeira das estruturas eclesiais.

20. Diversas sínteses chamam a atenção para a necessidade de formação na Igreja: quer dos pastores, quer dos leigos. De forma particular, realçam a necessidade de formação para lidar com os problemas do nosso tempo: se é importante escutar os desafios e angústias do coração das pessoas, também é importante anunciar a Palavra de Deus e o projeto de Deus para a humanidade. Esta necessidade de formação e de renovação dos métodos também é assinalada a respeito da catequese – quer na infância, quer catequese de adultos. Neste sentido, assinala-se a importância de um renovado aprofundamento das raízes da fé cristã: regressar à Sagrada Escritura e à Sagrada Tradição. Algumas sínteses dizem que seria importante uma melhor adequação do anúncio da fé às necessidades do ser humano. Outras há em que são feitas diversas propostas que, por vezes, ignoram a antropologia, a moral ou outros aspetos da doutrina católica, como, por exemplo, o pedido de admissão à comunhão sacramental de divorciados recasados, a aceitação das uniões entre pessoas do mesmo sexo, a ordenação de mulheres, etc., o que desde logo sinaliza a necessidade de formação[4]. Neste sentido, podem destacar-se vários aspetos em que é necessário revitalizar a formação humana, intelectual e espiritual dos católicos em geral: política, economia, ecologia, cultura. Ainda a respeito da formação cristã chamou-se a atenção para a necessidade de um esforço para, com a graça de Deus, se conseguir ter maior coerência entre o que se ensina e o que se vive.

III. Visão da Igreja atual e propostas de mudança

21. Para muitos dos participantes na caminhada sinodal, a Igreja é reconhecida como lugar de encontro com Deus e com os irmãos, ela é o lugar onde se procura a primeira resposta a necessidades sociais e é espaço de escuta e comunhão. Ao mesmo tempo, foi sentida a premência de maior aprofundamento espiritual: falta facilitar e encontrar novas formas de promover a vida de oração e a escuta da Palavra de Deus que conduzam à conversão de coração. A Igreja é uma realidade que está neste mundo e que pode ser sociologicamente pensada e, nessa sua dimensão, pode reformar-se sempre para ser mais clara a refletir Jesus Cristo, mas a sua natureza não se reduz ao que é deste mundo. Isso também tem implicações na forma como cada cristão vive a sua fé. Há necessidade de uma vida mais teologal, em que Deus ocupa verdadeiramente o centro e o primeiro lugar no coração das pessoas e na forma de ser Igreja. Neste sentido, torna-se importante um aprofundamento do sentido da vida litúrgica das comunidades: esta não pode ser um aspeto descuidado ou desligado da vida das pessoa, mas deve ser expressão do verdadeiro encontro com Deus e manifestação da Igreja como Corpo místico de Cristo.

22. A resposta sociocaritativa ocupa um lugar central na forma como a Igreja é vista e reconhecida como peça fundamental na sociedade. Destaca-se o papel relevante nas áreas da educação, saúde e apoio à terceira idade. A função social, não só no campo caritativo, mas também na vida mais ampla da sociedade portuguesa é igualmente reconhecida: a Igreja é vista como elemento estruturante da vida social, ainda que se peça uma maior disponibilidade e profundidade quando dialoga com os diversos âmbitos da mesma, da política à cultura.

23. A Igreja continua a ser vista como uma referência positiva no seio da sociedade, mesmo diante dos aspetos negativos que por vezes surgem na comunicação social, como os casos de abusos e de corrupção. Pede-se que a Igreja tenha uma estratégia comunicativa que testemunhe o seu desejo de purificação e permita que ela se apresente de forma positiva e verdadeira.

24. O acolhimento e a escuta de todos, como era patente nas perguntas da caminhada sinodal, aparecem como temas essenciais entre os desafios para a Igreja de hoje, mas também se faz notar poderem ser ambivalentes. Por um lado, reconhece-se que há um forte sentido de acolhimento do outro nas comunidades cristãs, que se entendem como família dos filhos de Deus, onde, portanto, qualquer pessoa pode encontrar um lugar para ser escutada e amada. Por outro lado, algumas respostas evidenciaram a dificuldade que pode haver no acolhimento de pessoas que não vivem de acordo com a proposta moral da Igreja ou que por questões culturais ou sociais são diferentes do resto da comunidade. A Igreja (e cada cristão em particular) deve dizer a todos que se interessa por quem quer que encontre no caminho e o deseja ajudar sinceramente: que ninguém possa dizer que não é amado na Igreja, ou, como diz o Papa Francisco, que ninguém seja descartado na Igreja. Neste âmbito, surge nas sínteses alguma confusão entre acolhimento das pessoas e participação plena da vida sacramental. Os sacramentos são vistos como ocasiões sociais e não como dons de Deus para caminhar na graça divina, os quais requerem uma preparação catequética e espiritual e pressupõem um caminho de conversão.

25. Na esteira do que se passa na sociedade, também na Igreja os temas financeiros e de gestão requerem maior transparência nas formas de decisão e gestão. Todos se devem sentir pertença de todos e verdadeiramente comprometidos pela vida uns dos outros. A resposta à vocação batismal deve efetivar-se, cada vez mais, como busca da santidade, na escuta dos apelos de Deus e como resposta à Sua vontade, que abraça todas as realidades da vida, inclusive a económica.

26. Como se viu no capítulo anterior, as sínteses assinalam a importância de ir ao encontro dos jovens, acompanhando-os e tornando-os, também eles, protagonistas da evangelização. É necessário que os jovens se sintam verdadeiramente em casa quando caminham em Igreja. Verificou-se a necessidade de escutar os mais jovens e de haver uma grande disponibilidade para os acompanhar nos vários momentos das suas vidas. Assinala-se a importância das famílias como forma de viver essa proximidade para com os mais jovens, recordando que as comunidades cristãs são chamadas a ser família de famílias.

27. No que diz respeito aos padres: pede-se que estes cuidem da sua vida espiritual e que a Igreja como um todo procure que se promova a santificação dos sacerdotes. Pede-se para os sacerdotes, mas, como alguns dizem, também para os leigos, uma maior atenção à formação permanente no âmbito humano, espiritual, afetivo, intelectual e cultural. Os seminários também devem cuidar particularmente desta abertura à formação contínua nos candidatos ao sacerdócio, que se prolongará ao longo de toda a sua vida.

28. Pede-se uma maior atenção e cuidado à forma como a Igreja comunica, quer internamente, quer externamente. Sem abdicar do que é a sua vida íntima e o testemunho de Jesus Cristo, a Igreja deve ser capaz de corresponder à exigência e rigor que são pedidos nos nossos dias, de forma a poder crescer a sua credibilidade. Uma outra forma de comunicação é o modo como os espaços eclesiais se apresentam: pede-se um maior cuidado nos espaços cultuais, assim como estes devem ser expressão do acolhimento de todos, também das pessoas que têm dificuldades de deslocação.

29. A piedade popular deve ser assumida como dimensão importante da realidade eclesial da Igreja em Portugal. Dada a relevância dos santuários, procissões, peregrinações, romarias e festas de padroeiros, esta não deve ser combatida, mas assumida como oportunidade para a evangelização. Como afirmou o Papa Francisco, a piedade popular é «verdadeira expressão da atividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo»[5]. As expressões populares de piedade, de forma particular de cariz mariana, são elementos que enriquecem a vida da Igreja, e devem incluir uma dimensão mais clara de fidelidade e compromisso de vida cristã.

30. Fruto da caminhada sinodal, mostra-se muito necessária a ativação plena das estruturas sinodais já previstas na vida das comunidades cristãs: os Conselhos para os Assuntos Económicos e os Conselhos Pastorais. Não basta, porém, instituir estes conselhos, é necessária a formação para a participação nestes órgãos, de forma a viver uma sinodalidade no seu sentido mais profundo, ou seja, enquanto expressão da comunhão e participação na vida de Igreja.

31. Transversal a todas as sínteses, está o apelo a uma renovação séria da visão da Igreja tal como ela é vivida. É necessária uma redescoberta das intuições fundamentais do II Concílio do Vaticano: a Igreja entendida como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo. Sacramento da comunhão com Deus e da humanidade renovada no Sangue de Cristo. Torna-se necessário ultrapassar uma visão unicamente institucional e sociológica da Igreja, para, sem as negar, se chegar à sua perspetiva teológica e teologal. Recordamos as palavras de primeira homilia do Papa Francisco depois da sua eleição: «Podemos caminhar o que quisermos, podemos edificar um monte de coisas, mas se não confessarmos Jesus Cristo, está errado. Tornar-nos-emos uma ONG sociocaritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor»[6]. Uma perspetiva da Igreja que abdique destas dimensões fundamentais será uma visão parcial, que, por isso, falhará sempre, porque não entenderá a Igreja como ela é sonhada e querida por Deus.

 

***

 

Pretendemos, em espírito sinodal e com fraterna liberdade, discordar da forma e até do conteúdo do «Relatório de Portugal» apresentado pela equipa sinodal da Conferência Episcopal Portuguesa, porque francamente nos pareceu que não faz justiça ao que as dioceses disseram. Propomos uma perspetiva diferente a respeito da Igreja em Portugal. Como é dito a respeito das sínteses diocesanas no material enviado pelo secretariado romano para o Sínodo dos Bispos, acreditamos que também este relatório pode ser usado «como pedra de toque para o percurso» que, enquanto discípulos missionários de Cristo, somos chamados a percorrer na Igreja em Portugal. O presente relatório foi enviado a todos os Bispos da Conferência Episcopal Portuguesa.

 

[1] As sínteses diocesanas estão disponíveis nas páginas das respetivas dioceses, exceto de duas, que pedimos a membros das mesmas.

[2] A partir das sínteses que fornecem essa informação, foi possível apurar que em média houve uma participação de 1,14% dos católicos no processo sinodal e, em média, também, 42% das paróquias participaram. Das Dioceses que transmitem algum tipo de informação estatística a respeito da participação, podemos assinalar o seguinte: Algarve: participaram 47 de 82 paróquias; Aveiro: assinala a participação de 5.000 pessoas em 300 grupos paroquiais e outros; Beja: assinala que receberam contributos de 21 paróquias (mas nem todas de grupos propriamente paroquiais), num total de 118 paróquias; Coimbra: assinala-se a participação de 3.000 pessoas; Évora: não distingue se o número de 66 contributos corresponde a participações individuais ou paroquiais, mas assinala que a Arquidiocese conta com 156 paróquias; Funchal: assinala a participação de 1.500 diocesanos; Guarda: assinala que receberam mais de 1.500 respostas, significando um universo de cerca de 2.000 pessoas; Lamego: assinala que participaram no processo cerca de 80% das paróquias, num total de respostas que envolve entre 2.500 a 3.000 pessoas; Lisboa: assinala a participação de 15.000 pessoas; Porto: receberam respostas de 194 paróquias num total de 477; Santarém: assinala que receberam contributos de 54 das 113 paróquias da Diocese; Setúbal: assinala que participaram 40 das 57 paróquias, num total de 6.475 participantes; Viana do Castelo: assinala um total de 2.453 participantes; Vila Real: assinala a participação de 2.000 pessoas; Viseu: assinala que receberam sínteses de 38 paróquias (mais 9 de outras realidades eclesiais) num total de 208 paróquias; Ordinariato Castrense: assinala que receberam 957 respostas.

[3] A democracia fica no âmbito da decisão de maiorias, enquanto a sinodalidade indica uma forma de ser Igreja enquanto participação e corresponsabilidade, como indica o documento A sinodalidade na Igreja da Comissão Teológica Internacional: «Neste contexto eclesiológico, a sinodalidade indica o modo de viver e de agir (modus vivendi et operandi) específico da Igreja, Povo de Deus, que manifesta e realiza em concreto o seu ser comunhão quando caminha em conjunto, quando se reúne em assembleia e quando todos os seus membros participam ativamente na sua missão evangelizadora» (n.º 6).

[4] A este respeito pode-se recordar a resposta do Papa Francisco quando na viagem de regresso a Roma depois de peregrinar ao Santuário de Fátima em 2017 lhe perguntaram como é que num país de matriz católica como Portugal se aprovavam leis contrárias às posições da Igreja. Respondeu o Papa: «Creio que é um problema político, mas também que a consciência católica por vezes não é uma consciência totalmente aderente à Igreja; e que, por trás disso, falta uma catequese matizada, uma catequese humana... Um exemplo duma catequese séria e matizada é o Catecismo da Igreja Católica. Creio que é falta de formação e também de cultura» (Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/may/documents/papa-francesco_20170513_voloritorno-fatima.html).

[5] Papa Francisco, Exortação apostólica Evangelii gaudium, n.º 122.

[6] Papa Francisco, Homilia, 14 de março de 2013.

quarta-feira, fevereiro 10, 2021

A eutanásia é uma prática nazi?

    

A eutanásia é uma prática nazi?


Os Estados deveriam legislar de modo coerente com a consideração da vida humana como intangível e inviolável


Não é raro ler ou ouvir dizer que a eutanásia, que o Parlamento português recentemente despenalizou, é uma prática nazi.

Não há dúvida de que no regime nazi aconteceu o primeiro programa político de eutanásia legalizado, estudado e posto em pratica. As investigações que foram anexadas às atas do processo de Nuremberga, comprovam que, entre 1939 e 1941, foram eliminadas mais de 70 000 vidas, consideradas como “existências privadas de valor vital”.

No entanto, os argumentos defendidos pelos atuais defensores da eutanásia não são coincidentes com os do regime nazi. E, por isso, não parece poder dizer-se que a eutanásia que hoje se pratica, ou se pretende praticar, tenha uma matriz nazi. 

As motivações defendidas hoje são completamente diferentes, e podem resumir-se às seguintes: o valor da minha vida depende só de mim e da minha vontade. Se já não conseguir aguentar esta vida, em razão de um sofrimento físico ou psicológico insuportável, peço que me tirem a vida. É um direito que não me pode ser negado. Nenhuma lei se pode opor à minha vontade de morrer. Quero livremente que me tirem a vida

Na base e por detrás das motivações pessoais, o mais decisivo neste modo de pedir ajuda para morrer, é a perda do valor “objetivo” da pessoa, que é o verdadeiro fundamento das leis que despenalizam a eutanásia. Na defesa e na legalização da eutanásia materializa-se o triunfo absoluto e definitivo do individualismo e do subjetivismo. 

O individualismo e o subjetivismo, há muito dominantes nas sociedades ocidentais, não poderiam deixar de conduzir, logicamente, não só à defesa do direito à eutanásia como também à sua despenalização e consequente legalização, como recentemente aconteceu entre nós e num pequeno número de outros países.

Diante desta pretensão, que deverão fazer as sociedades?

Os legisladores que fazem e aprovam as leis, ou os Chefes de Estado que as promulgam, têm naturalmente o dever de defender as sociedades do individualismo exacerbado, e tudo fazer para que seja reconhecido o valor objetivo e não apenas subjetivo da pessoa, o que deverá levantar à volta da vida humana uma barreira de absoluta inviolabilidade. Assim o dispõe, como se sabe, a Constituição da República Portuguesa, que, no seu artigo 24º, diz expressamente que "a vida humana é inviolável".

A introdução de uma exceção de eutanásia na lei não pode ser feita sem prejudicar gravemente o direito à vida, que é o primeiro dos “direitos do homem”. “O Código Penal tem uma função expressiva, e deve a esse título traduzir os valores de uma sociedade, que está ao seu nível mais alto quando se trata da vida e da morte”, como escreveu Robert Badinter, famoso jurista francês, conhecido pela sua luta pela abolição da pena de morte.  

E por isso, os Estados, como Portugal, obrigados pela sua própria Constituição, se quiserem ser coerentes com a letra e o espírito da sua Lei Fundamental, deverão impedir e continuar a criminalizar a prática da eutanásia, porque, em razão da inviolabilidade da vida humana inocente, a ninguém pode ser dado o direito de provocar a extinção da vida de outrem, mesmo a seu pedido.




As culturas em que, por influencia do Cristianismo, se reconheceu, filosófica e juridicamente, o valor da pessoa, consideraram sempre o suicídio e particularmente a eutanásia não só como uma grave ofensa a Deus, Criador do homem, mas também como um trágico abuso de poder, um poder usurpado, e que por isso, eticamente, e também juridicamente, cada homem tem o dever de renunciar a exercer sobre a sua própria vida, e, muito mais ainda, sobre a vida de outrem, o que se aplica a todos aqueles, nomeadamente médicos, que provocam a morte por meio da eutanásia.

Ao manter a criminalização da eutanásia, os Estados estarão, em primeiro lugar, a ser coerentes com o que promulgaram nas suas Leis Fundamentais, assumindo o seu dever de defender a vida humana, desde a conceção – o que tragicamente já não acontece na maioria dos países – até ao seu fim natural.

Ao fazê-lo, isto é, ao legislar de modo coerente com a consideração da vida como intangível e inviolável, estarão também a assumir a defesa de alguns dos mais frágeis entre os seres humanos, sobretudo das crianças gravemente enfermas e incuráveis, dos idosos profundamente dependentes, dos doentes terminais, dos deficientes profundos, dos que perderam a capacidade de comunicar ou até perderam a consciência de si mesmos, e que, por isso, correm o gravíssimo risco de serem considerados como indignos de viver, e, portanto, perigosamente sujeitos, como já vemos suceder em alguns países, a uma pena de morte implacável, mesmo que se lhe dê o eufemístico de nome de eutanásia, ou morte sem dor nem sofrimento.

Aberta a porta da eutanásia, esta extensão da sua prática aos que tenham a infelicidade de possuir ou exibir “existências privadas de valor vital”, será inevitável. 

E não será preciso muito tempo para disso termos a prova. Dolorosamente. 

Mas afinal, será isto tão diferente da eutanásia que se praticou no regime nazi?


Cón. José Manuel dos Santos Ferreira









  





sexta-feira, abril 03, 2020

Uma Ladainha em tempo de pandemia


A Ladainha do Santíssimo Nome de Jesus

Cristograma IHS, uma das representações mais frequentes do Santo Nome de Jesus.
Vitral na Igreja de São Martinho, em  Montmorency, na França



Terão sido S. Bernardino de Sena (1380-1444) e S. João de Capristano (1386-1456), ambos franciscanos, a estar na origem do primeiro esboço da Ladainha do Santíssimo Nome de Jesus.
Sendo especialmente apropriado recitá-las no Tempo de Natal, tendo em conta que a memória do Santíssimo Nome de Jesus se celebra no dia 3 de Janeiro, não o será menos no final da Quaresma e na Semana Santa, em que queremos honrar o nosso Salvador pela sua agonia e pela sua Paixão, pela sua morte e sepultura, e também, já na alegria da Páscoa, pela sua Ressurreição e Ascensão.
No momento em que se abate sobre o mundo uma tremenda pandemia, dirigimo-nos, nesta Ladainha, a Jesus poderosíssimo, Pai do século futuro (cf. Isaías 9, 6), isto é, Senhor do tempo e da eternidade, entregando-Lhe humilde e confiadamente a humanidade de hoje e a de amanhã.


Ladainha do Santíssimo Nome de Jesus

Senhor, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.

Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.

Pai Celeste, que sois Deus, tende piedade de nós.
Filho Redentor do mundo, que sois Deus, tende piedade de nós.
Espírito Santo, que sois Deus, tende piedade de nós.
Santíssima Trindade, que sois um só Deus, tende piedade de nós.

Jesus, Filho de Deus vivo, tende piedade de nós.
Jesus, Esplendor do Pai, tende piedade de nós.
Jesus, Pureza da luz eterna, tende piedade de nós.
Jesus, Rei da glória, tende piedade de nós.
Jesus, Sol de justiça, tende piedade de nós.
Jesus, Filho da Virgem Maria, tende piedade de nós.
Jesus, amável, tende piedade de nós.
Jesus, admirável, tende piedade de nós.
Jesus, Deus forte, tende piedade de nós.
Jesus, Pai do século futuro, tende piedade de nós.
Jesus, poderosíssimo, tende piedade de nós.
Jesus, pacientíssimo, tende piedade de nós.
Jesus, obedientíssimo, tende piedade de nós.
Jesus, manso e humilde de Coração, tende piedade de nós.
Jesus, que amais a castidade, tende piedade de nós.
Jesus, que nos amais, tende piedade de nós.
Jesus, Deus da paz, tende piedade de nós.
Jesus, Autor da vida, tende piedade de nós.
Jesus, Modelo das virtudes, tende piedade de nós.
Jesus, Zelador das almas, tende piedade de nós.
Jesus, nosso Deus, tende piedade de nós.
Jesus, nosso Refúgio, tende piedade de nós.
Jesus, Pai dos pobres, tende piedade de nós.
Jesus, Tesouro dos fiéis, tende piedade de nós.
Jesus, Bom Pastor, tende piedade de nós.
Jesus, Luz verdadeira, tende piedade de nós.
Jesus, Sabedoria eterna, tende piedade de nós.
Jesus, Bondade infinita, tende piedade de nós.
Jesus, nosso Caminho e nossa Vida, tende piedade de nós.
Jesus, Alegria dos Anjos, tende piedade de nós.
Jesus, Rei dos Patriarcas, tende piedade de nós.
Jesus, Mestre dos Apóstolos, tende piedade de nós.
Jesus, Doutor dos Evangelistas, tende piedade de nós.
Jesus, Fortaleza dos Mártires, tende piedade de nós.
Jesus, Luz dos Confessores, tende piedade de nós.
Jesus, Pureza das Virgens, tende piedade de nós.
Jesus, Coroa de todos os santos, tende piedade de nós.

Sede-nos propício, perdoai-nos, Jesus.
Sede-nos propício, ouvi-nos, Jesus.

De todo o mal, livrai-nos, Jesus.
De todo o pecado, livrai-nos, Jesus.
Das ciladas do demónio, livrai-nos, Jesus.
Do espírito de impureza, livrai-nos, Jesus.
Da morte eterna, livrai-nos, Jesus.
Do desprezo das vossas inspirações, livrai-nos, Jesus.
Pelo mistério da vossa Santa Encarnação, livrai-nos, Jesus.
Pelo vosso Nascimento, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa Infância, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa Vida Divina, livrai-nos, Jesus.
Pelos vossos trabalhos, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa agonia e paixão, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa cruz e abandono, livrai-nos, Jesus.
Pelas vossas angústias, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa Morte e sepultura, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa Ressurreição, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa Ascensão, livrai-nos, Jesus.
Pela instituição da Santíssima Eucaristia, livrai-nos, Jesus.
Pela vossas alegrias, livrai-nos, Jesus.
Pela vossa glória, livrai-nos, Jesus.

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, perdoai-nos, Jesus.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, ouvi-nos, Jesus.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós, Jesus.

Jesus, ouvi-nos.
Jesus, ouvi-nos.
Jesus, atendei-nos.
Jesus, atendei-nos.


Oremos:
Senhor Jesus Cristo, que dissestes: “Pedi e recebereis; procurai e achareis; batei e abrir-se-vos-á”, concedei-nos, Vos pedimos, um grande desejo do Vosso divino amor, a fim de que Vos amemos de todo o coração, por palavras e obras, e nunca cessemos de Vos louvar. Fazei-nos ter sempre, Senhor, o mesmo temor e amor pelo Vosso Santo Nome, pois não deixais de governar aqueles que estabeleceis na firmeza do Vosso amor. Vós que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Amen.



A reverência e a afeição com que os cristãos tratam o Santo Nome de Jesus remontam aos primeiros tempos do Cristianismo. Esta devoção estende-se também ao cristograma IHS (um monograma do Santo Nome), derivado da palavra grega IESOUS (ΙΗΣΟΥΣ), "Jesus", ou da frase latina Iesus Hominum Salvator, "Jesus, Salvador da humanidade". 


domingo, novembro 26, 2017

Quando um país se consagra a Cristo Rei

Do blog Christo Nihil Praeponere - "A nada dar mais valor do que a Cristo", transcrevo o seguinte texto: 

Em cerimónia realizada no Santuário da Divina Misericórdia, em Cracóvia, os bispos católicos da Polónia fizeram, na presença do presidente do país e de inúmeros peregrinos, a entronização de Jesus Cristo como Rei da Polónia. O acto público aconteceu durante a Missa do dia 19 de Novembro de 2016, e reuniu do lado de fora do templo cerca de 6 mil fiéis. O mesmo rito foi repetido no dia seguinte, domingo, em catedrais e paróquias de toda a Polónia.


Estátua de Cristo Rei (com mais de 52 m), existente em Swiebdzin (Polónia) (inaugurada em 21.11.2010)


Não é a primeira vez que os bispos polacos proclamam oficialmente o reinado de Nosso Senhor em seu país. As últimas cerimónias aconteceram em Jasna Góra, em 1997, e em Łagiewniki, no ano 2000. Que um rito solene como esse conte com a participação de um chefe de Estado, no entanto, é um facto inédito para a Polónia. O presidente Andrzej Duda, católico convicto, participou em toda a Missa acompanhado por sua mãe e por alguns ministros de seu governo.
"A razão providencial e mais próxima para esse acto deve ser encontrada nas revelações supostamente recebidas pela serva de Deus Rozalia Celakówna", explica o padre Paul McDonald. "De acordo com ela, o Senhor pediu para ser devidamente entronizado como Rei da nação polaca, de um modo especial e não apenas nos corações dos polacos. Isso salvaria a Polnia da próxima guerra que viria".
À parte essa revelação privada, no entanto, também o Magistério da Igreja tem um ensinamento bem claro a respeito da soberania de Cristo sobre os povos. Uma das manifestações mais importantes nesse sentido é a Carta Encíclica Quas Primas, escrita pelo Papa Pio XI e publicada em 11 de Dezembro de 1925. Nela é possível ler frases como as seguintes:
" Não recusem os chefes das nações prestar testemunho público de reverência e de obediência ao império de Cristo juntamente com os seus povos, se quiserem, com a incolumidade do seu poder, o incremento e o progresso da pátria."
" Se os homens, pública e privadamente, reconhecem o poder soberano de Cristo, necessariamente virão benefícios incríveis à inteira sociedade humana, como liberdade justa, tranquilidade e disciplina, paz e concórdia. A dignidade régia de nosso Senhor, tal como, de alguma maneira, torna sagrada a autoridade humana dos príncipes e dos chefes de Estado, assim enobrece os deveres dos cidadãos e a sua obediência."
"O dever de venerar publicamente Cristo e de lhe obedecer diz respeito não somente aos particulares, mas também aos magistrados e governantes."
Isso significa dizer que Nosso Senhor deve reinar sobre os corações, mas também sobre toda a sociedade. Se somos realmente diferentes dos animais; se possuímos de facto uma alma, para além de nosso organismo físico, rejeitar publicamente a religião significaria deformar a própria natureza humana, chamada que é a amar a Deus com todo o seu ser, tanto individualmente quanto em conjunto. Os media e a classe intelectual vêem com maus olhos acções desse tipo porque já foram contaminadas pelo vírus do "laicismo". Esquecidas do verdadeiro significado da expressão "Estado laico" — que consiste na justa e sadia separação entre a esfera civil e a espiritual —, o que elas querem, na verdade, é um "Estado ateu", que não faça menção alguma do nome de Deus, desprezando com isso a própria razão, e ignore completamente a religião de seus súbditos, transformando-se assim numa verdadeira tirania.
De facto, as tragédias do século XX — que os Papas, como Pio XI, fizeram questão de denunciar — mostram que o silêncio a respeito do Criador conduz fatalmente à divinização das criaturas, àquilo que os antigos chamavam de "idolatria". Não é que as pessoas deixem de acreditar em Deus; o que elas fazem é substituir o verdadeiro por deuses falsos: o Estado, o dinheiro, o sexo, a fama etc.

Considerando tudo isso, reconhecer Cristo como Rei significa, ao mesmo tempo, um grande "não", especialmente por parte das autoridades civis. Com isso, elas estariam a declarar: "Não, não vamos tomar o lugar de Deus"; "Não vamos aprovar leis que contrariem a realidade das coisas, tal como foram criadas por Deus"; " Não vamos construir outra Torre de Babel com os nossos actos de governo"; "Não vamos incentivar a destruição da natureza humana com leis iníquas". Para o bem de todos os homens, portanto, que se repita em muitos outros lugares, em todo o mundo!, essa consagração realizada na Polónia. E, como exclamavam os mártires católicos do México, «que viva Cristo Rey!»

quarta-feira, maio 10, 2017

Fatima: visões ou aparições?


Partilho o texto sobre este assunto publicado no «Observador»:

http://observador.pt/opiniao/fatima-visoes-ou-aparicoes/



FÁTIMA: VISÕES OU APARIÇÕES?
Leopoldo de Almeida - Martins Barata, Altar de Nossa Senhora de Fátima - Igreja de Santo Eugénio, Roma (1951)
 

 

Pode haver visões ou aparições? Como se distinguem? E que aconteceu em Fátima? Foram aparições ou simplesmente visões?

O filósofo francês Jean Guitton (1901-1999), num livro intitulado Os misteriosos poderes da fé, escrito em diálogo com o jornalista e escritor Jean-Jacques Antier, (edição francesa de 1997 e tradução portuguesa de 2000), observa que as pessoas com fé tendem a admitir que as visões ou aparições são possíveis e que até já aconteceram muitas vezes, ao passo que os descrentes ou céticos dirão que não têm qualquer consistência ou realidade, nem sequer podem existir. Para estes, aquilo a que chamamos visão ou aparição não é mais do que um estado doentio em que o protagonista se apercebe de uma sensação sem que esta tenha nenhuma causa real na sua origem. Para os crentes, porém, a aparição ou visão é uma experiência real (p. 283 da edição portuguesa).

Admitindo que possam existir, como se distinguem «visões» de aparições»?

O mesmo filósofo distingue entre visões exteriores e visões interiores. “As visões exteriores, ou visões sensíveis, ou aparições, implicam a representação de uma entidade sobrenatural – por exemplo a Virgem Maria – sob uma forma percetível aos sentidos”. Aqui, “o objeto apresenta-se no espaço real e aqueles que acompanham o vidente podem vê-lo ou não. Pelo contrário, as visões interiores são circunscritas exclusivamente à consciência do vidente, e as eventuais testemunhas não as veem” (p. 284).

A distinção essencial é, portanto, entre “visão interior, cujo objeto está circunscrito à consciência do sujeito, e a visão exterior (ou aparição), cujo objeto se apresenta sensivelmente no espaço real” (p. 285).

O teólogo francês Louis Bouyer, no seu Dicionário de Teologia, define assim o conceito de aparição: “Chama-se aparição a uma manifestação de Deus, dos anjos ou até de seres humanos que já morreram, (santos ou não), que se apresenta de uma forma que impressiona os sentidos”. E conclui: “Deus, os anjos e os santos podem manifestar-se a nós, se tal for a vontade divina, tanto por uma simples impressão sobrenatural feita sobre a nossa imaginação, como pela apresentação objetiva aos nossos sentidos de uma realidade corporal ou material de origem milagrosa” (trad. espanhola de 1990, p. 84).

E em Fátima, para aqueles que acreditam, houve visões ou aparições?

O filósofo português Carlos Henrique do Carmo Silva, num artigo publicado por ocasião do 80º aniversário dos acontecimentos de Fátima (“Aparições e experiências místicas: reflexão sobre o fenómeno de Fátima e contributo para uma sua renovada meditação espiritual”, Didaskalia, Lisboa 1998), caracteriza o que aqui aconteceu como “um celeste contacto” (p. 21), expressão que, só por si, alude à mesma “realidade objetiva” de que falam os autores anteriormente citados.

Uma aparição é, portanto, “um celeste contacto”, que ali está, “no espaço exterior”, sob a forma de “uma realidade corporal ou material”, mas indubitavelmente – e nem poderia ser de outra maneira – “de origem milagrosa”.

Assim sempre se considerou terem sido os acontecimentos de Fátima: isto é, “aparições”, e não simplesmente “visões” da Virgem Santa Maria.

“Na idílica, porém rústica, paisagem da Cova da Iria, como já nos Valinhos, e no pastoreio a que se dedicavam Lúcia, Francisco e Jacinta, surgem recortes de uma outra Presença que lhes aparece e se torna sensível”. Assim resume Carlos Henrique do Carmo Silva estes acontecimentos, fazendo notar logo de seguida que “se toma aqui a aparição não como uma visão (de diversas «imagens invisíveis», de um magma fantasmático, ou de uma clarividência confusa, semelhante à da consciência onírica...), mas na aceção do aparecer visível de uma figura, um recorte presencial que distintamente se sobrepõe ao regime do mundo da perceção habitual” (p. 37 e nota 82).

As aparições de Fátima são esta presença objetiva e exterior da Virgem, manifestada aos três Videntes, presença tão objetiva como a das árvores ou das casas, ou das próprias ovelhas que pastoreavam, distinta destas ou de quaisquer outras realidades, porém, por ser sobrenatural e de origem miraculosa.

Em sentido contrário, porém, temos um texto assinado pelo Cardeal J. Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, ao tempo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sob o título de Comentário Teológico, e incluído num conjunto de Documentos sobre «A Mensagem de Fátima», com data de 26 de junho de 2000.

O Comentário começa por recordar a distinção perfeitamente tradicional entre os três tipos de visões:

“A antropologia teológica distingue, neste âmbito, três formas de perceção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a perceção externa corpórea; a perceção interior; e a visão espiritual”.

Mas, depois de ter reconhecido a existência de três tipos de visão, o Comentário limita consideravelmente o seu alcance, pois, segundo ele, quer a visão seja interna ou externa, o vidente deforma necessariamente o que viu.

O Comentário exclui em seguida categoricamente que os acontecimentos de Fátima (ou de Lourdes) possam ser visões exteriores ou sensíveis, e classifica-as deliberadamente entre as visões interiores:

“É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da perceção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa”.

Para o provar, dá um exemplo que parece incontestável:

“Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da visão do inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do «segredo».

Mas também não se tratou de uma simples visão espiritual ou intelectual:

“De igual modo, é claro que não se trata duma «visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a perceção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível”. 

E acrescenta:

“Este ver interiormente não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjetiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se de verdadeiros «objetos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual. (…) A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis”.

E insiste:

(…) As imagens por eles [os pastorinhos de Fátima] delineadas (…) também não se hão de imaginar como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade pura, como esperamos vê-lo um dia na união definitiva com Deus”.

O Comentário nega, portanto, a realidade dos fenómenos exteriores, e não vê, nas visões de Fátima, senão uma perceção interior dos videntes. Para ele, em Fátima como em Lourdes, as figuras vistas pelos videntes não se encontram exteriormente no espaço!

A descrição da Virgem pelas crianças não seria, portanto, mais do que uma imagem daquilo que eles captaram interiormente. Por outras palavras, Nossa Senhora não teria vindo a Fátima: os visitantes não tiveram senão uma perceção interior da sua presença.

Esta leitura do Cardeal Ratzinger pode ser contestada?

Pode, claramente, em primeiro lugar porque, embora seja um texto oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, não é uma “Instrução” nem uma “Notificação”, como tantas que o Cardeal Ratzinger assinou, recebendo depois a aprovação do Papa, que ordena em seguida a sua publicação. Veja-se como termina, por exemplo, uma “Instrução sobre as orações para alcançar de Deus a cura”, publicada em 14 de Setembro de 2000: “O Sumo Pontífice João Paulo II, na Audiência concedida ao abaixo-assinado Prefeito, aprovou a presente Instrução, decidida na reunião ordinária desta Congregação, e mandou que fosse publicada.

Este modo solene de conclusão com a aprovação papal não existe neste caso, o que se compreende, porque o texto em apreço não pretende ser mais do que um “Comentário”, que intencionalmente não se reveste de especial autoridade no âmbito do Magistério da Igreja. Será legítimo, portanto, se houver razões para isso, pensar de modo diferente ou até discordar sobre matérias que nele se abordam, sem prejuízo do grande respeito que nos merecerá sempre o seu Autor.

Julgo, porém, que existem muitas razões para discordar da classificação dos acontecimentos de Fátima neste género intermédio, isto é, como sendo simples visões interiores, ainda que genuínas e de origem sobrenatural.

A verdade é que a Ir. Lúcia era de uma opinião totalmente contrária: ela estava certa de ter visto realmente a Virgem Maria, como esperava um dia vê-la no Céu. Em 1924, na comissão de inquérito canónico, foi-lhe feita esta pergunta: “Tens a certeza de que viste realmente uma Senhora em cima da carrasqueira e de que não te enganaste?”

E Lúcia respondeu: “Tenho a certeza de que a vi e de que não me enganei; ainda que me matassem, ninguém me faria dizer o contrário”.

“E quem era essa Senhora?”

Respondeu: “Antes de ela dizer que era a Senhora do Rosário, não sabia quem era; agora estou convencida de que era Nossa Senhora” (Documentação Crítica de Fátima, doc. 82, p. 324).

No decurso da sua vida, a Ir. Lúcia não teve só visões sensíveis ou aparições, mas foi sujeita aos três tipos de visões acima referidos. As inspirações que receberá do Céu em resposta às suas interrogações serão frequentemente uma perceção interior. Já a visão de Tuy (13 de Junho de 1929) deverá, pelo contrário, integrar-se no segundo tipo, pois a Ir. Lúcia diz que viu, e não há nenhuma razão para duvidar do seu testemunho. Mas as personagens ou objetos desta imagem não estavam presentes fisicamente, em particular Deus Pai: portanto, dificilmente pode tratar-se de uma visão sensível.

A visão do inferno pode igualmente ser inserida nesta categoria, visto que, como nota o Comentário do Cardeal Ratzinger, o fogo não se ateou na Cova da Iria! Claro que o inferno não esteve, fisicamente, diante dos pequenos videntes: eles viram-no graças àquela luz que emanava das mãos da Virgem.

Mas o facto de a visão do inferno ser da categoria das visões imaginativas, não prova que o resto da visão o seja, pois, como diz Adolfo Tanquerey, numa obra clássica sobre o assunto, nada impede que haja diversas perceções diferentes no decurso de uma mesma aparição. Esta dupla perceção já se produziu, aliás, na primeira aparição de 13 de Maio de 1917. Pelo reflexo vindo das mãos da Virgem, os pastorinhos viram-se em Deus: esta visão é muito provavelmente uma visão interior, que vem acrescentar-se à visão sensível da Senhora. Nas aparições de 1917, é fácil discernir as visões interiores, pois elas são precedidas de um gesto de abertura das mãos da Virgem e por um raio de luz que emana das suas mãos, como para materializar a graça da visão dada.

Mas as visões de Nossa Senhora são seguramente visões sensíveis. É seguro que a Virgem Maria apareceu aos pastorinhos sob uma forma exterior sensível. O carácter ofuscante das aparições é também uma prova da realidade do corpo glorioso da Santíssima Virgem. A Lúcia foi muitas vezes obrigada a baixar os olhos, tão viva era a luz que emanava da Virgem. O Cón. Formigão perguntou-lhe:

– Por que razão não raro baixas os olhos deixando de fitar a Senhora?

– É que ela às vezes cega (Documentação Crítica de Fátima, p. 58)

Na narrativa que fez da aparição de 13 de Outubro, disse:

“Veio no meio dum esplendor. Desta vez também cegava. De vez em quando eu tinha de esfregar os olhos” (J. de Marchi, Era uma Senhora mais branca que o sol, p. 177).

Também os fenómenos físicos que acompanharam os acontecimentos de Fátima e foram observados por numerosas testemunhas, não podem ser frutos de uma visão imaginativa. O seu número é impressionante. Esses fenómenos exteriores manifestam sem qualquer dúvida possível a presença efetiva de uma pessoa celeste.

Não só os videntes, mas também muitos daqueles que tiveram a graça de assistir (exteriormente) às aparições observaram esses fenómenos físicos, e isto em todas as aparições e não somente por ocasião do milagre do sol. Em parte nenhuma fora de Fátima, a Virgem rodeou a sua vinda e autenticou a sua presença de tantos sinais tão extraordinários. E essas testemunhas eram particularmente numerosas: cerca de 50 na 2ª aparição, 3 a 4000 na 3ª, 18 a 20.000 na 4ª, 25 a 30.000 na 5ª e cerca de 70.000 na última, estando alguns por vezes a vários quilómetros do lugar das aparições!

Por ocasião dos acontecimentos de Fátima, as testemunhas mais próximas puderam observar diversos fenómenos dificilmente atribuíveis a visões interiores. Mas outros fenómenos puderam ser observados por um grande número de testemunhas exteriores.

Foram eles os seguintes:

        I – Relâmpagos, que sempre antecedem as Aparições. Trovões, no momento preciso da Aparição, ou no seu termo, e cuja origem parecia provir da azinheira.

        II – Curvatura do arbusto, como se tivesse estado coberto por um manto, e com as folhas todas inclinadas na mesma direção (na segunda Aparição).

        III – Perfume, de essência nova e desconhecida, evolando-se do ramo da azinheira cortado dos Valinhos, e sentido pela senhora Maria Rosa e circunstantes, após a quarta Aparição.

        IV – Nubescente globo luminoso, avançado de Este para Oeste, e deslizando majestosamente através do espaço, até tocar a azinheira (na quinta Aparição).

        V – Nuvem branca ou matizada, e de vista agradabilíssima, que várias vezes se formou em torno dos Videntes, com vaporizações de fumo ascendente até cinco ou seis metros de altura. E, isto, por três vezes bem distintas, na mesma Aparição.

        VI – Chuva evanescente de rosas, com rosinhas brancas, maiores vistas de longe, e que, pouco a pouco, se vão tornando mais pequenas, com o aproximarem-se do chão, até desaparecendo de todo.

        VII – Diminuição da luz solar em pleno meio-dia, sem nuvens nem eclipses. Viam-se a Lua e as estrelas. Este fenómeno verificou-se em todas as Aparições, à excepção da última. Quanto à primeira Aparição, não se sabe.

        VIII – Milagre do Sol, que, segundo os testemunhos, consta de três fases:

a) O Sol torna-se opaco, com reflexos de madrepérola; pode-se fixar sem dificuldade, havendo ausência absoluta de nuvens e de eclipse;

b) Irradiações de cores, com rotação em feixes irisados que se difundem por todo o céu, semelhantes a fogo-de-artifício,

c) Movimento do disco solar, como que aumentando, ao princípio e dando a sensação de se precipitar sobre a terra; em seguida, movimento de translação do disco sobre o firmamento, de relance, tanto em linha retilínea, como quebrada.

“Em geral, podemos dividir, em duas classes, todos estes fenómenos: a primeira consta de fenómenos instantâneos; a segunda, de fenómenos estáveis. Os primeiros foram os relâmpagos e os trovões; os segundos, todos os outros. Compreende-se desta forma que Fátima se tenha imposto e triunfado..." (Sebastião Martins dos Reis, “Síntese crítica de Fátima”, Junta Distrital de Lisboa, Boletim Cultural, 1987/68. p. 86-88).  

O Cardeal J. Ratzinger foi eleito Papa em 2005. O seu pensamento sobre Fátima mudou?

Os seguintes pronunciamentos falam por si:

1. “Decorre hoje o nonagésimo aniversário das APARIÇÕES de Nossa Senhora em Fátima. Com o seu veemente apelo à conversão e à penitência é, sem dúvida, a mais profética das APARIÇÕES modernas. Vamos pedir à Mãe da Igreja, Ela que conhece os sofrimentos e as esperanças da humanidade, que proteja nossos lares e nossas comunidades”. (Papa Bento XVI, 13/5/2007)
2. "Prova disto mesmo é este lugar bendito. Mais sete anos e voltareis aqui para celebrar o centenário da primeira VISITA feita pela Senhora «vinda do Céu», como Mestra que introduz os pequenos videntes no conhecimento íntimo do Amor Trinitário e os leva a saborear o próprio Deus como o mais belo da existência humana." (Papa Bento XVI, 13/5/2010)

3. "Com a família humana pronta a sacrificar os seus laços mais sagrados no altar de mesquinhos egoísmos de nação, raça, ideologia, grupo, indivíduo, VEIO DO CÉU a nossa bendita Mãe oferecendo-Se para transplantar no coração de quantos se Lhe entregam o Amor de Deus que arde no seu. Então eram só três, cujo exemplo de vida irradiou e se multiplicou em grupos sem conta por toda a superfície da terra, nomeadamente à passagem da Virgem Peregrina, que se votaram à causa da solidariedade fraterna. Possam os sete anos que nos separam do centenário das APARIÇÕES apressar o anunciado triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da Santíssima Trindade. (Papa Bento XVI, 13/5/2010)

4. «O meu pensamento vai para Nossa Senhora de Fátima, de quem hoje recordamos a última APARIÇÃO. À Celeste Mãe de Deus vos confio, caros jovens, para que possais generosamente responder à chamada do Senhor.» (Papa Bento XVI, 13/10/2010).