terça-feira, março 25, 2014

A presença de Cristo na Eucaristia. Verdadeira, real e substancial

A presença de Jesus na Eucaristia: apenas uma entre várias formas de presença?

Escreveu João Paulo II na sua última Encíclica:

A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – «se chama “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem» (Carta Encíclica Mysterium fidei, 3 de Setembro de 1965, n. 41).
Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: «Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação» (Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 4).




Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. «Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu Corpo e o seu Sangue: a fé to assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa» (Catequeses mistagógicas, IV, 6).
(João Paulo II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 17 de Abril de 2003, n. 15)


Sobre este assunto, transcrevo abaixo (com ligeiras adaptações) um artigo do Cardeal Avery Dulles, publicado na revista Trinta Dias.
Avery Robert Dulles SJ (Auburn, 24 de Agosto de 1918 — New York, 12 de Dezembro de 2008), foi sacerdote da Companhia de Jesus e cardeal norte-americano, professor da Universidade Fordham, escritor e teólogo. Foi feito cardeal pelo Papa João Paulo II em 21 de Fevereiro de 2001, não tendo sido ordenado bispo.
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A presença de Cristo na Eucaristia. Verdadeira, real e substancial

Cardeal Avery Dulles, S.J.

Ao falar da presença de Cristo neste Sacramento, o Concílio de Trento usou três advérbios. Jesus está presente na Eucaristia “verdadeiramente, realmente e substancialmente” (Denzinger-Schönmetzer, n. 1651). Esses três advérbios são as chaves que abrem as portas do ensinamento católico e excluem os pontos de vista contrários, que devem, portanto, ser rejeitados (…) 
A presença real, investigada com grande acuidade durante a Idade Média, foi um dos pontos centrais de controvérsia entre os cristãos a partir do período da Reforma. Lutero, mesmo pondo em dúvida a transubstanciação, manteve firmemente a opinião sobre a natureza real e substancial da presença de Cristo, ainda que a maior parte dos outros protestantes não concordassem com isso, ao menos verbalmente. Nas últimas décadas, houve um pouco de confusão no âmbito católico quanto à presença real. A Conferência Episcopal Americana, assumindo como sua responsabilidade pastoral o necessário esclarecimento dessa questão, publicou, em 2001, uma pequena obra, muito útil: A presença real de Jesus Cristo no sacramento da Eucaristia: as perguntas e as respostas fundamentais.
No presente artigo, retomarei o fundamento teológico do ensino católico oficial. 
Depois da consagração, [ou durante a consagração do vinho, no Rito Romano «mais antigo»], o sacerdote, em todas as missas, proclama que a Eucaristia é mysterium fidei. A presença real leva a mente humana aos limites extremos de suas capacidades. No fim de tudo, somos obrigados a reco­nhecer que é um mistério inefável, e que deveria ser acolhido com admiração e assombro.


São Erardo eleva a hóstia consagrada - escultura em madeira de tília da segunda metade do século XIV atribuída ao ateliê do Duque de Estíria, Galeria Eslovena Narodna, Liubliana

É uma verdade que só a mente de Deus pode entender completamente. Todavia, algo deve ser dito, visto que Deus não se revelou simplesmente para nos envolver em mistério. Quer que imitemos a Santa Virgem, que reflectiu profundamente sobre as palavras que lhe foram dirigidas. 
Antes de mais nada, é preciso dizer que a Igreja aceita a presença real como matéria de fé, pois está incluída na Palavra de Deus, como confirmam a Sagrada Escritura e a Tradição. Jesus disse claramente: “Este é meu corpo... este é meu sangue” e, polemizando com os judeus, insistiu que não estava a usar uma metáfora. “A minha carne é verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim, e Eu nele” (João 6,55-56). 
Muitos discípulos acharam essas palavras árduas demais e deixaram-No, mas Jesus não modificou as suas afirmações para fazê-los voltar atrás. 
Os Padres e Doutores da Igreja confessaram com confiança a presença real, século após século, apesar de todas as objecções e mal-entendidos. Finalmente, em 1551, o Concílio de Trento forneceu uma exposição completa da doutrina católica da Eucaristia, dando muita importância à presença real. A partir de então, repetido por muitos papas e documentos oficiais, o que foi ensinado por Trento continua a ser ainda hoje normativo. O Catecismo da Igreja Católica não tem medo de citá-lo à letra (Catecismo da Igreja Católica, n. 1374; 1376-1377). 
Falando da presença de Cristo nesse sacramento, o Concílio de Trento usou três advérbios. Nele, o Senhor está contido, diz o Concílio, “verdadeiramente, realmente e substancialmente” (Denzinger-Schönmetzer, n. 1651). Esses três advérbios são as chaves que abrem as portas do ensinamento católico e excluem os pontos de vista contrários, que devem, portanto, ser rejeitados [1]. 
Dizendo, em primeiro lugar, que Cristo está verdadeiramente contido nas espécies eucarísticas, o Concílio afastou a ideia de que o sacramento seja meramente um símbolo ou uma figura que aponta para um corpo que está ausente, ou que talvez esteja em algum lugar no céu. Essa afirmação é feita contra o herege Berengário, do século XI, e contra alguns de seus seguidores protestantes do século XVI. 
Em segundo lugar, a presença é real. Ou seja, é ontológica e objectiva. Ontológica porque acontece no nível do ser; objectiva porque não depende dos pensamentos ou dos sentimentos do ministro ou dos comungantes. O corpo e o sangue de Cristo estão presentes no sacramento graças à promessa de Cristo e ao poder do Espírito Santo, ligados à execução correcta do rito por parte de um ministro validamente ordenado. 
Ensinando isto, a Igreja refuta a ideia de que a fé seja o instrumento que determina a presença de Cristo no sacramento. Segundo o ensinamento católico, a fé não torna Cristo presente, mas reconhece com gratidão essa presença, e permite que a sagrada comunhão traga os seus frutos de santidade. Receber o Sacramento sem fé é inútil, até pecaminoso, mas a falta de fé não torna a presença irreal. 
Em terceiro lugar, o Concílio de Trento diz-nos que a presença de Cristo no Sacramento é substancial. A palavra “substância” nunca é usada, neste caso, como um termo filosófico técnico, como na filosofia de Aristóteles. Essa palavra era usada na alta Idade Média muito antes que circulassem as obras de Aristóteles. 
“Substância”, no uso comum, denota a realidade fundamental da coisa, o que a coisa é em si. Derivada da raiz latina sub-stare, sig­nifica o que está sob as aparências, que podem mudar de uma hora para a outra, deixando o objecto intacto. 
As aparências podem ser enganadoras. Vocês poderiam não conseguir reconhecer-me, se eu me disfarçasse ou se estivesse gravemente doente, mas eu não deixaria de ser a pessoa que era; a minha subs­tância continua a mesma. Não há nada de obscuro, portanto, no significado de “substância” nesse contexto. 
“Substância”, ao significar o que uma coisa é em si, pode ser contraposta a “função”, que faz referência à acção. Cristo está presente por meio de seu poder dinâmico e de sua acção em todos os sacramentos, mas na Eucaristia a sua presença é, além disso, substancial. Por esse motivo, a Eucaristia pode ser adorada. É o maior de todos os sacramentos. 
Depois da consagração, o pão e o vinho, de uma forma misteriosa, tornam-se o próprio Cristo. O Concílio Vaticano II cita S. Tomás de Aquino, para dizer que este sacramento contém a inteira riqueza espiritual da Igreja, dado que a Igreja não tem outras riquezas espirituais a não ser Cristo e o que Ele lhe comunica [2]. 
O Concílio de Trento falou também da maneira como acontece essa presença de Cristo. Afirma que o pão e o vinho mudam; deixam de ser o que eram e transformam-se no que não eram. A inteira substância do pão e do vi­nho transforma-se na substância do Corpo e do Sangue de Cristo e, visto que Cristo não pode ser dividido, transformam-se também na sua alma e na sua divindade (Denzinger-Schönmetzer, n. 1640.1642). Cristo torna-Se presente inteiramente em cada uma das duas formas.
A mudança que acontece na consagração durante a missa é sui generis. Não se deixa circunscrever nas categorias de Aristóteles, que acreditava que toda a mudança substancial comportaria uma mudança nas aparências ou no que ele denominava acidentes. Quando eu como uma maçã, ela perde as suas qualidades perceptíveis, tal como a sua substância de maçã. Torna-se parte de mim mesmo. Mas, na consagração do pão e do vinho, durante a missa, as aparências externas continuam idênticas. 
A Igreja cunhou o termo “tran­substanciação” para designar o processo com o qual a inteira substância, e tão-somente ela, se tran­s­forma na substância do corpo e do sangue de Cristo. É preciso uma palavra especial para indicar um processo que é único e sem paralelo. Ao ensinar que as espécies continuam as mesmas, a Igreja indica que as propriedades físicas e químicas continuam a ser as do pão e do vinho. Não apenas parecem e pesam o mesmo; elas mantêm também o mesmo valor nutritivo que tinham antes da consagração [3]. Seria inútil tentar demonstrar ou refutar a presença real por meio de experimentações físicas, pois a presença de Cristo é espiritual ou sacramental, não física, no sentido de mensurável. 
Para esclarecer o ensinamento da Igreja a respeito da presença real, será útil, acredito, contrapô-lo a algumas posições erróneas. A presença de Cristo pode ser entendida de maneira demasiadamente carnal ou demasiadamente mística, demasiadamente grosseira ou demasiadamente ténue, demasiadamente ingénua ou demasiadamente figurada. 
O erro realista ingénuo pode ser ilustrado por meio da reacção dos judeus em Cafarnaum, que ficaram chocados com as palavras de Jesus. Evidentemente, eles pensaram que Ele estivesse a afirmar o canibalismo, que consideravam, com justiça, como um pecado horrível. Alguns cristãos compreendem a presença de Cristo na Eucaristia num sentido demasiadamente materialista, sem fazer uma adequada distinção entre sua presença natural e sua presença sacramental. Às vezes imaginam que Ele poderia sofrer, se a hóstia fosse profanada, ou que poderia sentir-Se sozinho no tabernáculo. Li em algum lugar sobre uma jovem estudante que tinha medo de comer um gelado depois de receber a comunhão, pois pensava que Jesus sentiria frio. 
Na alta Idade Média, alguns teólogos, seguindo Pascásio Radberto, afirmaram que Jesus, na Eucaristia, assumiria a forma do pão e do vinho como sua verdadeira forma. “Por que não poderia ser assim”, perguntavam, “visto que, na Ressurreição, apareceu como um peregrino e como um jardineiro que os seus discípulos não conseguiam reconhecer?”. O que vemos quando olhamos para a hóstia e o que tomamos durante a comunhão, diziam, é o corpo e o sangue de Cristo numa forma disfarçada. Alguns afirmavam até que, na consagração, os elementos perdem a natural capacidade nutritiva do pão e do vinho [4]. 
Para evitar a implicação de que, na glória, Cristo pudesse sofrer em razão da indignidade, alguns pensadores da alta Idade Média afirmaram que o corpo de Cristo no altar não era o mesmo do céu. De facto, falavam dos três corpos de Cristo: o seu corpo natural, que agora está no céu; o seu corpo sacramental, que está na Eucaristia; e o seu corpo eclesial, que é a Igreja [5]. Esta afirmação nunca foi condenada pela Igreja, mas já não é muito sustentada, talvez porque, contrariamente à ideia daqueles que a elaboraram, parece sugerir que o corpo na Eucaristia não é o mesmo que nasceu da Virgem Maria. Se fosse assim, não poderíamos cantar: “Ave verum corpus, natum de Maria Virgine”. 
S. Tomás de Aquino desenvolveu o que poderíamos definir como uma posição de mediação. Por um lado, evita falar da Eucaristia como um corpo especial (sacramental ou místico), mas, por outro lado, afirma que o corpo ressuscitado e glorificado de Cristo tem uma existência diferente no céu e no Sacramento. Contrapõe a existência de Cristo em si e a sua existência sob o véu do Sacramento como dois diferentes estados ou modos de ser. Segundo a sua maneira natural de existência, Cristo está no céu; segundo a maneira eucarística de existência, está no Sacramento [6]. O corpo de Cristo está realmente presente na Eucaristia, mas não no sentido em que os corpos estão num determinado lugar. As suas partes e dimensões não podem ser medidas em relação a outros corpos. A sua circunferência não é a da hóstia. 
Contra os realistas ingénuos, portanto, Santo Tomás afirma que quando olhamos para a hóstia não vemos a figura e as cores que propriamente pertencem ao corpo de Cristo, mas as da própria hóstia. Não estamos na mesma situação dos discípulos antes da Ascensão, aos quais Cristo apareceu no seu próprio corpo. Quando olhamos para a hóstia ou para o cálice sobre o altar, os aspectos ou os fenómenos visíveis são ainda os do pão e do vinho. 
S. Tomás apresenta a objecção segundo a qual alguns contaram ter visto o Menino Jesus ou seu preciosíssimo Sangue numa hóstia consagrada. Responde que Deus é capaz de realizar uma mudança milagrosa na hóstia, de forma tal que possa aparecer como um menino ou como sangue humano, mas o que aparece num caso como esse não podem ser as qualidades do próprio Cristo [7]. 
Olhando para a hóstia ou para o preciosíssimo Sangue, não podemos dizer que a cabeça está aqui e os pés, ali. A presença de Cristo nesse Sacramento assemelha-se à da alma no corpo. A minha alma não está parte na minha cabeça, parte no meu coração, parte nas minhas mãos, mas está inteiramente presente no todo e em cada uma das partes. E assim é a respeito de Cristo na Eucaristia. Quando uma hóstia é partida, cada fragmento contém Cristo plenamente, tanto quanto a hóstia inteira. Uma única gota do preciosíssimo Sangue contém d’Ele tanto quanto todo o conteúdo do cálice inteiro. S. Tomás dá o útil exemplo do reflexo de uma imagem no espe­lho. Quando o espelho se quebra, cada fragmento pode reflectir todo o objecto, tal como fazia o espelho inteiro [8]. 
Se a situação e as características da hóstia não são as de Cristo, surge a pergunta: podemos dizer que Cristo é transportado durante uma procissão ou que é posto no tabernáculo? Não comemos a sua carne, nem bebemos o seu sangue? Sim, diz S. Tomás, Ele é transportado, comido e bebido, mas não nas suas próprias dimensões. É transportado, comido e bebido na sua forma eucarística de existência, na medida em que a sua presença coincide com as propriedades palpáveis ou “acidentes” do pão e do vinho. Ele não é danificado fisicamente por nenhuma violência feita ao Sacramento, pois essas qualidades e dimensões não são propriamente suas. 
A presença de Cristo no Santíssimo Sacramento só pode ser reconhecida, portanto, pelo intelecto, que aceita a Palavra de Deus na fé [9]. A presença pode ser denominada sacramental porque as aparências do pão e do vinho indicam onde o Corpo e o Sangue de Cristo estão presentes. São sinais, ou seja, sacramentos de uma realidade que está presente neles. 
A presença eucarística, porquanto real, não elimina a ausência da qual Jesus fala quando se despede dos seus discípulos durante a última ceia. A Eucaristia é um memorial da presença histórica de Jesus na terra e penhor da sua volta na glória, quando formos capazes de O ver como Ele é. 
Pelo que foi dito, pode-se entender que a presença de Cristo nesse sacramento é única e misteriosa. Os mestres do espírito advertem-nos de que não sejamos curiosos demais, pois as nossas mentes poderiam facilmente confundir-se diante de tão excelso mistério. É melhor aceitar simplesmente as palavras de Cristo, da Sagrada Escritura, da Tradição, do Magistério da Igreja, que nos dizem o que é necessário saber: “Cristo está real mas invisivelmente presente na Eucaristia”. A sua presença é tal, que o pão e o vinho, depois da consagração, são verdadeira, real e subs­tancialmente o seu Corpo e seu Sangue, mas segundo uma forma de existência diferente de sua presença no céu. 
Falemos agora dos erros de minimização. O Concílio de Trento foi por vezes atacado por estar concentrado demais numa só das maneiras com as quais Cristo está presente na liturgia. Segundo Paulo VI e o Concílio Vaticano II - lembram-nos esses autores - Cristo está presente na liturgia em não menos de cinco formas: na assembleia, quando nos reunimos para a oração; na Palavra de Deus, quando é proclamada; no sacerdote, quando celebra a missa; nos sacramentos, quando são administrados; e, finalmente, na hóstia e no cálice oferecidos durante a missa. 
A presença nas espécies consagradas, afirmam esses autores, é apenas uma das cinco maneiras, e não deveria ser tomada como se fosse a única efectiva. De facto, dizem, deveria ser vista como subordinada à presença na Igreja, da qual é um sinal sacramental. Agostinho e Tomás de Aquino acaso não ensinaram que a finalidade do sacramento é criar a unidade da Igreja como corpo místico de Cristo? Alguns teólogos, a partir disso, começaram a dizer que a presença de Cristo está primariamente na assembleia reunida [10]. 
Segundo o ensinamento da Igreja, as múltiplas presenças de Cristo são efectivas e importantes, mas a presença na Eucaristia ultrapassa as outras. Cerca de quinze anos antes do Vaticano II, o Papa Pio XII chamou a atenção para quatro das maneiras como Cristo está presente na liturgia. Mas preocupou-se em precisar que essas maneiras de presença não estavam todas no mesmo nível. O Divino Fundador da Igreja, escrevia o Papa, “está presente [...] sobretudo sob as espécies eucarísticas” [11]. 
Paulo VI, na sua encíclica de 1965, forneceu uma relação semelhante, acrescentando à lista de Pio XII uma quinta maneira: a presença de Cristo na proclamação da Palavra [12]. Mas não deu espaço a dúvidas sobre qual pudesse ser a presença mais importante. Depois de ter sublinhado mais uma vez as múltiplas presenças de Cristo, dizia: “Outra é, contudo, e verdadeiramente sublime, a presença de Cristo na sua Igreja pelo Sacramento da Eucaristia. Por causa dela, é este Sacramento, comparado com os outros, mais suave para a devoção, mais belo para a inteligência, mais santo pelo que encerra; contém, de facto, o próprio Cristo, e é como que a perfeição da vida espiritual e o fim de todos os Sacramentos” (Mysterium fidei, 40).
Essa presença, dizia Paulo VI, é denominada real não porque as outras sejam irreais, mas porque é real por excelência (Mysterium fidei, 41). Como presença substancial de Cristo todo inteiro, a Eucaristia supera a sua presença transitória e virtual nas águas baptismais, nos outros sacramentos, na proclamação da Palavra e no ministro que representa Cristo nessas acções. 
Se esta autoridade não fosse suficiente, poderíamos notar que o Vaticano II, na sua constituição sobre a liturgia, afirma que Cristo está presente “sobretudo [maxime] nas espécies eucarísticas” (Sacrosanctum Concilium, 7). E o Papa João Paulo II, na sua encíclica de 2003 sobre a Eucaristia, disse que deveríamos ser capazes de reconhecer Cristo “onde quer que Ele se manifeste, com as suas diversas presenças, mas sobretudo no sacramento vivo do seu Corpo e do seu Sangue” [12]. 
Há uma diferença notável entre a presença de Cristo na Eucaristia e na assembleia ou nos seus membros. Os fiéis, em determinadas condições, são unidos misticamente a Deus pela graça. O Espírito Santo habita neles, mas eles mantêm a sua identidade pessoal. Não são transubstanciados; não deixam de ser eles mesmos para se transformarem em Cristo Senhor. 
A Igreja como Corpo Místico nunca pode elevar-se à dignidade de Cristo no seu Corpo específico, que nasceu da Virgem Maria, morreu na cruz e reina glorioso no céu. Esse Corpo está substancialmente presente na Eucaristia, mas não na comunidade cristã. Há uma notável diferença entre a adoração que damos a Cristo na Eucaristia e a veneração que damos aos santos. 
Alguns desses teólogos que minimizam, afirmam que, visto que a finalidade da Eucaristia é formar a Igreja como Corpo de Cristo, a sua presença eclesial é mais intensa e mais importante do que sua presença nas espécies consagradas [14]. O erro que reside nessa lógica pode ser entendido, se pensarmos na Encarnação. Jesus fez-Se homem e morreu na cruz pela nossa redenção, mas daí não resulta que Deus esteja mais intensamente presente na comunidade dos remidos do que no Filho encarnado, ou que a nossa devoção se deva concentrar mais nos cristãos do que em Cristo Senhor. 
Um segundo argumento empregado às vezes para exaltar a Igreja acima da Eucaristia, é que seria a Igreja, como sacramento geral, aquele que produz cada um dos sete Sacramentos, inclusive a Eucaristia. A Igreja, dizem, não poderia dar o que não tem. Mas esse argumento não leva em conta o facto de que a Igreja não produz os sacramentos por obra do seu poder. A Eucaristia, como os outros sacramentos, é um dom de Deus. Ao produzi-lo, a Igreja é subordinada a Cristo, o ministro principal. A Igreja, além disso, é formada pela Eucaristia. Os fiéis são um só corpo porque participam de um só pão, que é Cristo Senhor (cf. 1 Coríntios 10,17). Assim, poderíamos dizer, como disse o Papa João Paulo II na sua encíclica, que, se a Igreja faz a Eucaristia, não é menos verdade que a Eucaristia faz a Igreja (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 26). 
Uma terceira linha de pensamento que tende a minimizar a realidade da presença de Cristo na Eucaristia vem da fenomenologia personalista em moda no período do Vaticano II. Concentrando-se nas relações interpessoais, essa escola de pensamento faz coincidir a existência pessoal com os relacionamentos humanos. 
Os teólogos seguidores dessa tendência refutam a ideia de subs­tância, sobretudo quando é aplicada à Eucaristia, que consideram como uma refeição comum. Mesmo em nível natural, dizem, um almoço com os amigos é muito mais que comer e beber; é uma ocasião social para expressar e consolidar as relações humanas. Assim se dá, dizem, com a Eucaristia. Convidando-nos à sua ceia, o Senhor dá ao pão e ao vinho um novo significado e uma nova finalidade, como símbolos eficazes de seu amor que redime. Os elementos mudaram na medida em que adquirem uma nova importância e uma nova finalidade. Por esse motivo, continuam, deveríamos falar de “transignificação” e de “transfinalização”, mais que de “transubs­tanciação” [15]. 
Esses novos termos podem ser discutíveis e estorvar e, assim, do ponto de vista terminológico, não levam a nenhuma melhoria com relação ao termo “transubstanciação”. No que exprimem de positivo, os termos são inócuos. Na Eucaristia, a importância e a finalidade do pão e do vinho efectivamente mudaram: indicam e realizam a alimentação espiritual e a jubilosa comunhão com Cristo e com os cristãos. Mas a terminologia alternativa é carente porque não nos diz nada acerca do que acontece às espécies consagradas em si mesmas. 
Paulo VI, na sua encíclica Mysterium fidei, explicou que o pão e o vinho podem adquirir uma importância e uma finalidade radicalmente novas porque contêm uma nova realidade. A mudança do sig­nificado e da finalidade derivam de uma precedente mudança ontológica (cf. Mysterium fidei, n. 46). Podemos relacionar-nos pessoalmente com Cristo no Sacramento, e Ele connosco, pois Ele está realmente ali. A sua presença no Sacramento é real e pessoal, quer a pessoa creia e a reconheça, quer não. A Eucaristia não é apenas um sinal, mas uma pessoa que subsiste por direito próprio, como acontece às pessoas. 
Um teólogo holandês da década de 1960 perguntou-se se a presença real continuaria na hóstia consagrada, caso no mundo todos fossem mortos inesperadamente por algum desastre excepcional. Respondeu negativamente, com base no facto de que a presença pessoal não pode existir fora de um encontro recíproco de sujeitos livres e conscientes [16]. 
Esse teólogo parece confundir os dois sentidos de “presença”. “Presença”, de facto, pode significar duas coisas. Pode ser presença interior, como a alma está presente no corpo ou como Cristo está presente nas espécies eucarísticas. Ou pode significar presença para outros. Das duas, a presença interior é a mais fundamental. Restringir a presença real à segunda é redutivo. Nós distanciamo-nos da fé da Igreja Católica, que afirma que a presença real de Cristo na Eucaristia é objectiva e independente de sua percepção por parte de quem quer que seja. 
Continuam a ser levantadas questões sobre o termo “substância”, sobretudo porque o conceito clássico de substância, comum ao pensamento realista, não é muito aceite hoje. Desde o período de Descartes e Locke, o termo passou a significar algo auto-incluído e inerte, ao passo que antes tinha o significado de centro activo gerador de relações, que, por meio dos próprios acidentes, entra em relação dinâmica com outras criaturas. 
Naturalmente, hoje muita gente acha estranho dizer de uma pessoa que é uma substância. Mas, se o conceito clássico for abandonado, será preciso encontrar outro termo para indicar o que é uma coisa em sua realidade fundamental. Ao chamar substancial à presença eucarística de Cristo, a Igreja pretende dizer que a Eucaristia, na sua realidade, nada mais é que Cristo. 
A transubstanciação, como expliquei, é o processo por meio do qual uma substância, no caso, a do pão ou do vinho, se transforma numa outra substância, a do Corpo e do Sangue de Cristo, sem sofrer nenhuma mudança físico-química. O Concílio de Trento ensinou que o termo é muito adequado (cf. Denzinger-Schönmetzer 1652). Paulo VI, em 1965, disse que era ainda “adequado e preciso” e, como lembrei, achava-o superior a outros termos que haviam sido propostos (cf. Mysterium fidei, n. 46). Mas a Igreja não se vinculou definitivamente a ne­nhum vocábulo em particular. 
Uma mudança na terminologia continua a ser teoricamente possível. 
Houve ainda, como resultado das novas teologias eucarísticas propostas durante o Vaticano II e logo depois, uma temporária perda de interesse pelo Santíssimo Sacramento. Toda a atenção foi reservada à celebração da missa. Em muitas paróquias e casas religiosas, a bênção eucarística foi repentinamente abandonada. Em algumas igrejas, reservou-se um lugar modesto ao lugar da reserva do Santíssimo Sacramento, mais parecido com uma despensa do que com uma capela. Educadores de vanguarda no campo da religião repetiam aos fiéis que a finalidade do Santíssimo Sacramento era ser recebido na comunhão e não ser adorado, como se as duas coisas se excluíssem mutuamente. 
O magistério eclesiástico resistiu constantemente a essa tendência negativa, combatendo-a. Mesmo concordando que a finalidade primária da Eucaristia é tornar presente o sacrifício da cruz e dar alimento espiritual ao fiel, o Concílio de Trento insistiu em que o Santíssimo Sacramento deve ser honrado e adorado fora da liturgia da missa (cf. Denzinger-Schönmetzer n. 1643.1656). Negar isso equivale a negar a presença substancial de Cristo no Sacramento. 
Em 1965, o Papa Paulo VI falou de maneira clara e decidida em favor da guarda do Santíssimo Sacramento num lugar de honra na igreja. Exortou os pastores a que expusessem o Sacramento à solene adoração e a que fizessem procissões eucarísticas nos momentos oportunos; convidou depois os fiéis a visitá-lo frequentemente (cf. Mysterium fidei, n. 55.66-68).  
João Paulo II, nos seus muitos escritos como Papa, procurou promover a digna celebração da Eucaristia e a devoção à Eucaristia fora da missa. Na sua encíclica de 2003, exprime satisfação pelos muitos lugares nos quais a adoração do Santíssimo Sacramento é praticada com fervor, ao mesmo tempo em que deplora que em outros lugares essa prática tenha sido quase completamente abandonada (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 10).  
O culto eucarístico fora da missa, escreve, “é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. [...] Compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas” (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 25). 
O próprio Papa passava muitas horas diante do Santíssimo Sacramento e muitas de suas me­lhores intuições nasciam desses momentos de oração. Como Santo Afonso de Ligório, que ele cita a este respeito, o Papa estava convencido do valor da adoração de Jesus no Santíssimo Sacramento. A oração diante da Eucaristia fora da missa, escreve, permite-nos tomar contacto com a fonte da graça (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 25).  
Em boa parte graças a esse encorajamento papal, houve um notável crescimento da prática da Exposição do Santíssimo e da hora santa de adoração.
Essas práticas, longe de enfraquecer a fome da santa comunhão, estimulam-na. Prolongam e incrementam os frutos da participação activa na missa. Além disso, exprimem e fortificam a fé dos católicos no pleno significado da presença real. Permanecendo entre nós dessa forma sacramental, o Senhor mantém a sua promessa de estar com sua Igreja “todos os dias, até o fim dos tempos” (Mateus 28,20).

Ainda que o mistério da presença real leve ao limite as nossas possibilidades de compreensão, não é um quebra-cabeças. É um sinal consolador do amor, do poder e da genialidade do nosso Divino Salvador. Ele quis entrar em íntima união com os fiéis de todas as gerações, e quis fazê-lo de um modo que satisfizesse a nossa natureza de espíritos encarnados. 
O alimentar e o beber, formas profundamente carregadas da lembrança da história do antigo Israel, são significativos até para as pessoas incultas, em todos os tempos. Simbolizam oportunamente a alimentação e a restauração espiritual conferidos pelo Sacramento. 

Em outro nível, conduzem o pensamento à crucificação de Cristo, que derramou o Seu sangue pela nossa redenção. E, enfim, prefiguram o banquete eterno dos bem-aventurados na Jerusalém celeste. O simbolismo múltiplo da Eucaristia não pode ser separado da presença real. Esse simbolismo tem o poder singular de chamar a atenção da memória para o passado, transformar o presente e antecipar o futuro, pois contém verdadeira, real e substancialmente o Senhor da história.


NOTAS 

1 Para uma exposição desses três termos, cf. Max Thurian, The Mystery of the Eucharist: an Ecumenical Approach, Michigan, Eerdemans-Grand Rapids, 1984, pp. 55-58.
2 Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis, 5, que cita Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 65, a. 3, ad 1; cf. q. 79, a. 1c e ad 1.
3 Cf. Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 77, a. 6, “Podem as espécies alimentar?”. Santo Tomás se refere a 1Cor 11,21 e aos comentários que se faziam em seu tempo para mostrar que as espécies, tomadas em quantidade suficiente, podem satisfazer a fome e embriagar.
4 Essa linha de pensamento, que parte de Pascásio Radberto, é representada por Lanfranco e Guitmundo de Aversa. Cf. o artigo, “Guitmund of Aversa and the Eucharistic Theology of St. Thomas”, de Mark G. Vaillancourt, em The Thomist 69 (outubro de 2005).
5 Jean Borella, The Sense of Supernatural, Edinburgh, T&T Clark, 1998, pp. 71-77. Ele encontra a doutrina do “triplo corpo de Cristo” em Ambrósio, Pascásio Radberto e Honório de Autun. Henri de Lubac fala de Amalário de Metz e Godescalco de Orbais como representantes dessa doutrina medieval. Cf. o seu Corpus Mysticum: L’Eucharistie et l’Eglise au Moyen Age, 2ª ed., Paris, Aubier, 1949, p. 37. Esses teólogos não negaram a identidade real entre o corpo real e o corpo eucarístico de Cristo.
6 Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 76, a. 6. Para um lúcido comentário, cf. Anscar Vonier, A Key to the Doctrine of the Eucharist, 1923, pp. 132-133; segunda edição: Bethesda (EUA), Zaccheus Press, 2003.
7 Id., ibid., a. 8, ad 2 e ad 3.
8 Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 76, a. 3.
9 Id., ibid., q. 76, a. 7.
10 Judith Marie Kubicki atribui a Karl Rahner, Edward Schillebeeckx e Piet Schoonenberg a posição segundo a qual a Igreja como sacramento é “o primeiro lugar da presença de Cristo no mundo”. Cf. seu artigo “Recognizing the Presence of Christ in the Liturgical Assembly”, in: Theological Studies 65 (2004), pp. 817-837, na p. 821.
11 Pio XII, encíclica Mediator Dei, 20.
12 Paulo VI, encíclica Mysterium fidei, 36.
13 João Paulo II, encíclica Ecclesia de Eucharistia, 6.
14 Típico desse ponto de vista é o breve artigo “Changing Elements or People?”, de F. Gerald Martin, in: America 182 (4 de Março de 2000), p. 22. Reagindo contra a tendência a separar a presença real da santa comunhão, ele cai no erro oposto, desmerecendo a devoção ao Santíssimo Sacramento, como se ela se opusesse à comunhão frequente.
15 O termo “transfinalização” parece ter sido cunhado pelo marista francês Jean de Baciocchi, mas foi usado por muitos outros. O termo “transignificação” está associado em particular ao jesuíta holandês Piet Schoonenberg. Para boas informações sobre essas tendências, cf. Joseph M. Powers, Eucharistic Theology, Nova York, Seabury, 1967, pp. 111-179, e Colman O’Neill, New Approaches to the Eucharist, Staten Island, Alba House, 1967, pp. 103-126.
16 Piet Schoonenberg, “The Real Presence in Contemporary Discussion”, in: Theology Digest 15 (primavera de 1967), pp. 3-11, na p. 10.
17 Tomo esses dados de Amy L. Florian, “Adoro Te devote”, in: America 182 (4 de Março de 2000), pp. 18-21, na p. 18. 
  



quarta-feira, março 19, 2014

Muito mais do que um simples banquete

PAPA FRANCISCO
AUDIÊNCIA GERAL
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 5 de Fevereiro de 2014

Hoje, falar-vos-ei da Eucaristia. A Eucaristia insere-se no âmago da «iniciação cristã», juntamente com o Baptismo e a Confirmação, constituindo a nascente da própria vida da Igreja. Com efeito, é deste Sacramento do Amor que derivam todos os caminhos autênticos de fé, de comunhão e de testemunho.

O que vemos quando nos congregamos para celebrar a Eucaristia, a Missa, já nos faz intuir o que estamos prestes a viver. No centro do espaço destinado à celebração encontra-se o altar, que é uma mesa coberta com uma toalha, e isto faz-nos pensar num banquete. Sobre a mesa há uma cruz, a qual indica que naquele altar se oferece o sacrifício de Cristo: é Ele o alimento espiritual que ali recebemos, sob as espécies do pão e do vinho. Ao lado da mesa encontra-se o ambão, ou seja o lugar de onde se proclama a Palavra de Deus: e ele indica que ali nos reunimos para ouvir o Senhor que fala mediante as Sagradas Escrituras, e portanto o alimento que recebemos é também a sua Palavra.



Na Missa, Palavra e Pão tornam-se uma coisa só, como na Última Ceia, quando todas as palavras de Jesus, todos os sinais que Ele tinha realizado, se condensaram no gesto de partir o pão e de oferecer o cálice, antecipação do sacrifício da cruz, e naquelas palavras: «Tomai e comei, isto é o meu corpo... Tomai e bebei, isto é o meu sangue».

O gesto levado a cabo por Jesus na Última Ceia é a extrema acção de graças ao Pai pelo seu amor, pela sua misericórdia. Em grego, «acção de graças» diz-se «eucaristia». É por isso que o Sacramento se chama Eucaristia: é a suprema acção de graças ao Pai, o qual nos amou a tal ponto, que nos ofereceu o seu Filho por amor. Eis por que motivo o termo Eucaristia resume todo aquele gesto, que é de Deus e ao mesmo tempo do homem, gesto de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Por conseguinte, a celebração eucarística é muito mais do que um simples banquete: é precisamente o memorial da Páscoa de Jesus, o mistério fulcral da salvação. «Memorial» não significa apenas uma recordação, uma simples lembrança, mas quer dizer que cada vez que nós celebramos este Sacramento participamos no mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo. A Eucaristia constitui o apogeu da obra de salvação de Deus: com efeito, fazendo-se pão partido para nós, o Senhor Jesus derrama sobre nós toda a sua misericórdia e todo o seu amor, a ponto de renovar o nosso coração, a nossa existência e o nosso próprio modo de nos relacionarmos com Ele e com os irmãos. 

É por isso que geralmente, quando nos aproximamos deste Sacramento, dizemos que «recebemos a Comunhão», que «fazemos a Comunhão»: isto significa que no poder do Espírito Santo, a participação na mesa eucarística nos conforma com Cristo de modo singular e profundo, levando-nos a experimentar desde já a plena comunhão com o Pai, que caracterizará o banquete celestial, onde juntamente com todos os Santos teremos a felicidade de contemplar Deus face a face.

Estimados amigos, nunca daremos suficientemente graças ao Senhor pela dádiva que nos concedeu através da Eucaristia! Trata-se de um dom deveras grandioso e por isso é tão importante ir à Missa aos domingos. Ir à Missa não só para rezar, mas para receber a Comunhão, o pão que é o corpo de Jesus Cristo que nos salva, nos perdoa e nos une ao Pai. É bom fazer isto! E todos os domingos vamos à Missa, porque é precisamente o dia da Ressurreição do Senhor. É por isso que o Domingo é tão importante para nós! E com a Eucaristia sentimos esta pertença precisamente à Igreja, ao Povo de Deus, ao Corpo de Deus, a Jesus Cristo. 

Nunca compreenderemos todo o seu valor e toda a sua riqueza. Então, peçamos-lhe que este Sacramento possa continuar a manter viva na Igreja a sua presença e a plasmar as nossas comunidades na caridade e na comunhão, segundo o Coração do Pai. E fazemos isto durante a vida inteira, mas começamos a fazê-lo no dia da nossa primeira Comunhão. É importante que as crianças se preparem bem para a primeira Comunhão e que cada criança a faça, pois trata-se do primeiro passo desta pertença forte a Jesus Cristo, depois do Baptismo e do Crisma.


sábado, março 08, 2014

Jesus no deserto: jejum e solidariedade


Ao chegar de novo a Quaresma, voltei a ler o capítulo que René Laurentin dedica, no seu fascinante livro Vie authentique de Jésus Christ, ao jejum de Jesus no deserto e ao combate espiritual que se lhe seguiu, as suas tentações, esta misteriosa etapa da sua vida que a Igreja propõe sempre de novo à nossa oração e meditação no 1º Domingo da Quaresma.


Transcrevo em seguida apenas a parte do texto dedicada ao jejum de Jesus, por considerar que é, por si só, um extraordinário acontecimento salvífico. Hoje há a tendência de desvalorizar o jejum de alimentos, mas foi esse jejum precisamente aquele que Jesus fez.

Porquê? E qual o seu sentido? 
(Omito algumas passagens do texto por uma questão de brevidade. Também não transcrevo o passo em que R. Laurentin fala da «visão beatífica» de Cristo, por não partilhar da sua abordagem, e por ser uma matéria que exigiria uma discussão maior, que pode ficar para outra oportunidade).







O sopro do Espírito

“E logo o Espírito o impeliu para o deserto. Aí esteve quarenta dias” (Marcos 1, 12-13 e par.).
O deserto é o lugar da solidão, do despojamento: o corte com tudo o que alimenta o desejo humano, para dar todo o lugar a Deus somente.(…)
Jesus, feito homem na solidariedade, não começa por uma demonstração de poder, mas pelo vazio de um longo jejum.  
“Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome” (Mateus 4, 2; cf. Lucas 4, 2).
Jesus instalou-se na solidão: sem trabalho, sem contacto, sem ocupação rentável, na frustração de tudo o que é humano e na pura gratuitidade. O ambiente que o rodeia é rocha e areia, mas não demasiado longe de uma fonte em que mata a sede: irá até aos limites do organismo humano, que pode viver durante 40 dias sem recursos. Mas sem água, seria a morte, ao fim de seis dias. Portanto, bebe água! O Evangelho não diz nunca que se tenha abstido de água, e que assim tivesse feito um jejum miraculoso de super-homem.


A experiência do jejum

A prova do jejum é dura para a carne e o sangue, e mesmo para o espírito, porque a natureza tem horror do vazio. Jesus sabe-o bem. Todo o ser humano o teme, e mobila o seu tempo com um excesso de obrigações, trabalhos e distrações, relações humanas, combates e lutas pela vida. Feliz de quem sabe aceitar o vazio para se encher de Deus invisível. O jejum é um meio concreto e radical para o conseguir. Torna a vida disponível. Jesus desembaraça o tempo de tudo o que é inútil e de tudo o que é acessório, para reencontrar o Pai cara a cara: invisível e salvífico.(…)

Jesus não padece fome. Todo aquele que jejua em espírito e verdade não tem fome, por mais surpreendente que isso possa parecer. O desejo alimentar, como de resto o desejo sexual, não é uma fatalidade. É psicológico. As labaredas que se elevam na privação do desejo estão submetidas ao domínio de cada homem, que demasiado frequentemente as atiça em vez de as dominar: tanto na abstenção como no uso.

Os dias sucedem-se aos dias nesse quotidiano sem distracção, opressivo para a natureza humana. Mas o jejum abre na alma de Jesus novas possibilidades de oração. O vazio acende a fome de Deus. A vida daquele que jejua é extremamente lúcida e calma, atravessada por chamas subtis acesas pelo Espírito.

A privação não O deprime, mas eleva-O, num certo retardamento de todos os ritmos. Nessa prova, Jesus continua a crescer humanamente “em sabedoria e em graça” (Lucas 2, 51), e sobretudo em amor, pelo dom quotidiano que conforma todas as fibras do seu ser de carne ao ardor da sua divindade. N’Ele jorra um impulso novo, à escala da história humana extraviada, para compensar as suas falhas e a sua infelicidade. Esse impulso, alimentado unicamente pela oração, é sustentado pelo claro-escuro da sua união perfeita com Deus. 
Jesus ultrapassa todos os místicos, pois o seu estatuto próprio não é somente a união transformante (a perfeita identificação de amor e de vontade com Deus), mas a “união hipostática”. Ele é Deus em pessoa, e a sua existência humana não é a de uma pessoa criada, mas de um ser humano assumido por um EU divino[1], que tem sede de conformar o seu destino terrestre ao amor divino. (…)

A natureza não deixa de se Lhe fazer notar, no desconforto do deserto. No calor do dia, o seu corpo procura a sombra, e a frescura da noite acorda-o por vezes a tremer. Aprende, por dentro, por experiência, os recursos surpreendentes que habitam o organismo, e Lhe fazem encontrar durante tanto tempo os recursos energéticos disponíveis, sem novo contributo alimentar. (…) 
O seu corpo enfraquece, mas elimina aas toxinas e espiritualiza-se. Quanto às forças de que tem necessidade, o organismo sabe onde as ir buscar em boa ordem. Consome antes de mais as superfluidades, depois os músculos, mas respeita o cérebro, que continua lúcido e concentra ao forças do corpo agora mais leve.

O destino de Deus feito homem entre os homens, é a solidariedade. Outra coisa não é senão solidariedade. Não tem outra razão de ser. Deus não precisava para nada de ser fazer homem. Fez-Se homem para ser “em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hebreus 12, 7), em todas as coisas, “excepto no pecado” (Hebreus 4, 15).

Jesus assume toda a fraqueza humana, pois não salvará os homens pelo poder, mas só pelo amor, humildemente. O Amor é humilde. Não existe outra via de realização, tanto para Deus como para nós. Não se dispensou da ascese e das privações que abrem o homem a Deus.

Igualmente não se dispensou das provas da tentação.
A salvação da humanidade é um soltar de laços, que tem de desfazer o enleio generalizado das faltas e dos erros, das divisões e das paixões, das carências e das violências. Para isso, é preciso que a agulha perspicaz e perseverante do amor volte a tecer por dentro todos os fios que entrelaçaram a meada inextrincável do mundo pecador, como interpretava Santo Ireneu de Lyon, já no séc. II.

René Laurentin, Vie authentique de Jésus Christ, vol. I, Paris, Fayard, 1996, p. 77-80,





[1] Mais conforme com as formulações da fé seria, na minha opinião, dizer: uma natureza humana assumida por um Eu divino (o Verbo, o Filho eterno de Deus).