domingo, dezembro 07, 2014

João Baptista tinha razão




Podia-nos parecer que o Evangelho do 2º Domingo do Advento pertence a um outro tempo e não tem nada a ver connosco. Nem sequer aparece Jesus, mas apenas João Baptista, que pode parecer uma figura um pouco estranha e demasiado severa para o nosso gosto. Fechamos este texto e lemos outro?
Não, porque neste Evangelho Deus também nos fala, e diz-nos o que também nós, hoje, precisamos de ouvir. 

Pieter Bruegel o Velho, A pregação de S. João Baptista (1566)
(Museu das Belas Artes de Budapeste)

Antes de apresentar João Baptista, S. Marcos transcreve algumas frases da Sagrada Escritura extraídas de dois profetas, embora só cite Isaías. Mas uma das frases é de outro profeta, chamado Malaquias. É ele que põe na boca de Deus estas palavras: “Vou enviar à tua frente o meu mensageiro, que há-de preparar o caminho diante de mim” (Mal 3, 1).
Por sua vez, Isaías diz: “Uma voz clama no deserto: «Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas» ” (Is 40, 3).
Um autor antigo, chamado Porfírio (233-304), grande inimigo dos cristãos, critica S. Marcos por aquilo que considera a sua confusão e a sua ignorância, mas aqui não se trata de ignorância nem de confusão. Como explica S. Jerónimo, grande conhecedor da Sagrada Escritura, S. Marcos só se preocupa com citar Isaías, porque a essência do que diz Malaquias está mais bem exposta no texto de Isaías.
Quanto a João Baptista, foi o último mensageiro de Deus antes de vir Jesus, e foi ele que preparou, no deserto, os caminhos para Jesus poder chegar aos corações de muitos.
E foi ele que teve a coragem de fazer uma daquelas coisas que mais custa fazer a um simples ser humano: dizer aos outros que precisam de se arrepender dos seus pecados e começar a viver uma vida diferente.
E é aqui que está a grande actualidade deste Evangelho. Vivemos num mundo em que há violências, fraudes, abusos, crimes de toda a espécie. As pessoas que são acusadas de ter cometido ilícitos graves que caem sob a alçada da lei, procuram provar a sua inocência (ou a sua menor culpabilidade) à face da lei, para serem absolvidas ou terem penas menores. E também quem comete erros na escola, na família ou no trabalho procura, normalmente, justificar-se.
Mas quase não há a noção do arrependimento. E quase se perdeu a noção do perdão que pode ser pedido a Deus.
Mas a Palavra de Deus diz-nos que, diante de Deus, não adianta desculpar-nos ou justificar-nos. É muito melhor pedir a Deus desculpa, pedir a Deus perdão, e pedir-Lhe que nos justifique, isto é, que nos torne de novo, pelo seu poder, justos aos seus olhos.
É esta uma das dimensões essenciais do Advento. Se não a vivermos, faremos do Natal só uma aparência.
O tempo de Natal é útil para manter uma certa aparência de boas relações ou um certo clima de boas relações durante algum tempo, o que sempre é melhor que nada, ou pelo menos é melhor que o seu contrário.
Mas, quem não se contentar com as aparências e desejar viver a vida com verdade, terá de ir mais longe. Terá de reconhecer que João Baptista continua a ter razão, e que continuamos a precisar de receber o perdão dado por Deus. Só Deus é suficientemente poderoso para poder perdoar verdadeiramente.
Existe na Igreja um canal e instrumento do perdão, que é o sacramento da Reconciliação ou Penitência a que habitualmente se chama Confissão, pela declaração das faltas que implica. Pode às vezes custar tanto como descer às águas frias do Jordão, mas tem um efeito regenerador e também consolador. Faz- nos um grande bem, muitas vezes devolve-nos a alegria perdida, mas não podemos pensar só em termos pessoais, não podemos esquecer ou desvalorizar o bom efeito que também pode causar à nossa volta.
Se alguém, embora reconhecendo-se pecador, procura a verdade da sua vida no rosto de Cristo, e Lhe pede, através da Igreja, a água pura do perdão, também a sua presença no mundo pode ser um factor de mudança.
E assim poderemos levar à nossa volta, neste Natal, uma alegria mais sentida e verdadeira, uma atenção sincera aos outros, e não momentânea, mas habitual, e uma esperança que nada pode fazer extinguir, porque nos vem de saber que vai chegar, e já chegou, Aquele que nos traz a consolação de Deus.
Como propósito concreto, proponho que cada um fixe desde já o dia e a hora da sua Confissão (ou das suas Confissões) de Advento, e procure nunca vir sozinho: há sempre um amigo, um colega, uma familiar que só precisa de uma pequena ajuda para vir também.
E para que este propósito resulte, rezemos ao Espírito Santo, no Qual, como anunciou João Baptista, fomos baptizados, e por Quem queremos continuar a ser modelados, para transmitir à nossa volta a imagem fascinante de Cristo, fonte do perdão e da graça que renova a nossa vida.

domingo, setembro 21, 2014

Cada qual avalie o que faz


O que a parábola dos trabalhadores da vinha (Mateus 20 1, 16) nos ensina, é que a economia não é o mais importante. Não é apenas de dinheiro ou de bens que vive o homem. Claro que é importante que a economia funcione, e que os países consigam prosperidade e riqueza, mas, mesmo assim, a economia não é tudo.
Os trabalhadores da undécima hora. Evangeliário bizantino do séc. XI
Muito mais importante é perceber qual o sentido da vida, e como se deve viver nesta vida, de modo a sermos dignos do dom inestimável que é existir e estar neste mundo criado por Deus.

O dono da vinha pagou a todos por igual. Não foi injusto para com os primeiros, a quem pagou exactamente o que tinha acordado, e foi extremamente generoso com os últimos, com quem não acordou nada, e a quem deu muito mais do que, em bom rigor, poderiam merecer, pelo reduzido tempo que trabalharam. Mas decidiu dar, também a estes, o mesmo que aos outros, e estava no seu pleno direito.
Portanto, deu a todos um denário. Este valor não representa a vida eterna, mas sim os bens deste mundo. Aqui na terra todos devem ter pelo menos o mínimo para viver. O dono da vinha teve o cuidado de que os últimos, os mais pequenos, os que ninguém tinha contratado até à última hora, tivessem pelo menos esse mínimo. E não permitiu que discutissem o seu sentido de justiça. Lá por os seus olhos serem bons, não havia nenhum motivo para os outros serem vesgos.

Assim é Deus. Não se rege pela simples justiça. Tem outros critérios. Tal como a economia não é tudo, também a justiça não é tudo. Sem ferir a estrita justiça, pode-se ir mais longe, e exercer a caridade e a misericórdia.

Portanto, não nos devemos contentar com a justiça. A justiça, às vezes, pode ser muito injusta, ou desumana. É preciso muitas vezes saber ir além da justiça, dar aquilo de que o outro necessita, mesmo que, aparentemente, e talvez sem culpa própria, o não mereça. Deus connosco não é apenas justo. Sem deixar de o ser, Deus quer ser connosco misericordioso, e sê-lo-á sempre, se encontrar em nós aquele mínimo de boas disposições, de arrependimento e de conversão, sem o qual nem a sua misericórdia se poderá exercer.

Assim aconteceu com o próprio S. Mateus, chamado por Jesus quando estava sentado no seu posto de cobrança dos impostos. Certamente já havia nele um mínimo de atracção e fascínio por Jesus, e também uma secreta inquietação pela falta de sentido da vida que levava. Por isso, quando Jesus lhe disse: “Segue-Me”, ele “levantou-se e seguiu-O” (Mateus 9, 9).

Jesus não chamou os que mereciam, os que eram mais fortes, mas inteligentes, mais capacitados, mas “os que Ele quis”, para ficarem com Ele e para os enviar (Marcos 3, 13-14).

E assim acontece com os que chama para o sacerdócio ou para a vida religiosa, em que chama apenas alguns em especial, ou para a evangelização, a que todos são chamados.
Comentando esta Parábola, o Papa S. João Paulo II escreveu um dia numa Exortação Apostólica sobre a vocação e missão dos leigos:

“O convite do Senhor Jesus «Ide vós também para a minha vinha» continua, desde esse longínquo dia, a fazer-se sentir ao longo da história: dirige-se a todo o homem que vem a este mundo. (…) «Ide vós também». A chamada não diz respeito apenas aos Bispos, aos sacerdotes, aos religiosos e religiosas, mas estende-se aos fiéis leigos: também os fiéis leigos são pessoalmente chamados pelo Senhor, de quem recebem uma missão para a Igreja e para o mundo. Lembra-o S. Gregório Magno que, ao pregar ao povo, comentava assim a parábola dos trabalhadores da vinha: «Considerai o vosso modo de viver, caríssimos irmãos, e vede se já sois trabalhadores do Senhor. Cada qual avalie o que faz e veja se trabalha na vinha do Senhor» (S. Gregório Magno, Hom. in Evang. I, 19) (Christifideles laici, n. 2).


E o Papa Francisco escreveu na Exortação Apostólica Evangelii gaudium:
Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (n. 114).
Portanto, voltando ao grande Papa S. Gregório I (falecido em 12 de Março de 604), “cada qual avalie o que faz e veja se trabalha na vinha do Senhor”.
Veja se fala de Deus com palavras e com a vida, se anuncia Jesus, perfeito Deus e perfeito homem, se convida os desconfiados a voltar à Igreja, para aqui poderem pedir e receber o perdão de Deus e voltar a receber, em resposta à sua fome e sede de sentido, de verdade e de amor, o verdadeiro Pão da vida.
 

segunda-feira, julho 07, 2014

O celibato não é uma “mera questão disciplinar”

Celibato e paternidade pastoral



Na conclusão da homilia que proferiu na Missa de ordenação de dois novos sacerdotes, no dia 29 de Junho de 2014, Solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, na Igreja de Santa Maria de Belém, D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa, falou do celibato sacerdotal, deixando muito claro que o celibato não é uma “mera questão disciplinar”. 
Aqui está o texto, na parte relativa ao celibato: 
Caríssimos irmãos: A verdade da Igreja e da sua missão no mundo articula-se inevitavelmente aqui, quando a teologia se faz escatologia, acolhimento e anúncio do que Deus nos dá definitivamente em Cristo. E é importante verificar, caríssimos ordinandos, que não é por acaso que a frase litúrgica citada - «enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador» - será dita por vós em cada Missa que celebrardes, e precisamente como sacerdotes celibatários. 

Detenhamo-nos um pouco neste último ponto, já que alguma opinião o desvaloriza ou dispensa. Deixai-me dizer até que, sendo verdade que, mesmo na Igreja Católica, há casos de ordenação sacerdotal de homens casados, o celibato não se reduz, como por vezes se ouve, a uma “mera questão disciplinar”. Muito pelo contrário, sendo realmente uma graça, ele assinala para a Igreja toda, na vida consagrada ou ligado ao ministério sacerdotal, aquela dimensão final em que Jesus Cristo, também ele celibatário, nos introduz já e culminará por fim. 

O celibato e a virgindade consagrada alargam o horizonte e o coração, quer para a paternidade pastoral dos sacerdotes, quer para a universal maternidade da Igreja. Assim o disse, com muita clareza e aviso, o Papa Francisco, a 6 de Julho do ano passado, a um grupo de seminaristas, noviços e noviças, além doutros jovens em caminho vocacional: «Vós, seminaristas e freiras, consagrais o vosso amor a Jesus, um amor grande; o coração é para Jesus, e isto leva-nos a fazer o voto de castidade, o voto de celibato. Mas o voto de castidade e o voto de celibato não acaba no momento em que se emite, continua... Um caminho que amadurece, amadurece, amadurece até à paternidade pastoral, até à maternidade pastoral, e quando um sacerdote não é pai da sua comunidade, quando uma religiosa não é mãe de todos aqueles com os quais trabalha, torna-se triste. Eis o problema. Por isto vos digo: a raiz da tristeza na vida pastoral consiste precisamente na falta de paternidade e maternidade que vem de viver mal esta consagração que, ao contrário, nos deve conduzir à fecundidade. Não se pode imaginar um sacerdote ou uma religiosa que não sejam fecundos: isto não é católico! Não é católico! Esta é a beleza da consagração: a alegria, a alegria...» (L'Osservatore Romano, ed. port., 14 de Julho de 2013, p. 5).  

Todas as realidades criaturais são boas e necessárias para crescermos na terra. Mas para crescermos da terra ao céu. A própria vida familiar é um valor primeiríssimo, que Jesus restaurou segundo o “princípio”, mas como pedagogia do fim: daquele fim em que já nem eles se casam nem elas são dadas em casamento, pois todos seremos igualmente irmãos na única família de Deus (cf. Mc 12, 25). Esquecer isto é esquecer quase tudo e tomar como fim o que é princípio e meio. 

Por isso, Jesus não constituiu família humana, para abrir no mundo a família dos filhos de Deus. E assim mesmo o seguiu Paulo, que deu ao apostolado a mais expressiva das realizações. Consequentemente, foi-se afirmando a vida celibatária e virginal entre muitos cristãos e cristãs, monges e monjas, clérigos também e em número crescente, antes até das normas canónicas o preverem. 

Esquecer este facto não é apenas ignorar a história. É atenuar o que não pode ser atenuado, como desafio escatológico, definitivo e completo da vocação cristã. Isso mesmo que o sensualismo dominante da subcultura contemporânea não aceita, mas que o cristianismo autêntico mantém e oferece, como dizia o Apóstolo das Gentes, «a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, há-de dar a todos aqueles que tiverem esperado com amor a sua vinda»: um amor bastante, um amor final, para ser infindo.

sábado, maio 31, 2014

Princípios que não são negociáveis

Bento XVI ao Partido Popular Europeu 

Após as eleições europeias, com os seus conhecidos resultados, que parecem manifestar o escasso apreço que as instituições europeias merecem aos cidadãos, é oportuno ler o Discurso do Papa Bento XVI aos participantes no Congresso promovido pelo Partido Popular Europeu, em 30 de Março de 2006, muito em particular a sua vigorosa referência “aos princípios que não são negociáveis”, princípios que não são verdades de fé, mas “estão inscritos na natureza humana e, portanto, são comuns a toda a humanidade”:





Ilustres Parlamentares

Senhoras e Senhores!

Sinto-me feliz em receber-vos por ocasião dos Dias de Estudo sobre a Europa organizados pelo vosso grupo parlamentar. Os Pontífices Romanos prestaram sempre uma especial atenção a este Continente. Por conseguinte, a audiência de hoje é oportuna e insere-se numa longa série de encontros entre os meus predecessores e os movimentos políticos de inspiração cristã. Agradeço ao Deputado Pöttering as palavras que me dirigiu em vosso nome e manifesto-lhe, assim como a todos vós, as minhas cordiais saudações.

Actualmente a Europa deve enfrentar questões complexas de grande importância, como o crescimento e o desenvolvimento da integração europeia, a definição cada vez mais completa da política de proximidade no seio da União e o debate do seu modelo social. Para alcançar estes objectivos, será importante inspirar-se, com fidelidade criativa, na herança cristã que contribuiu de modo particular para forjar a identidade deste continente. Valorizando as suas raízes cristãs, a Europa será capaz de oferecer uma orientação segura às opções dos seus cidadãos e das suas populações, fortalecendo a sua consciência de pertencer a uma civilização comum, e alimentará o compromisso de todos para enfrentar os desafios do presente para o bem e para um futuro melhor.

Portanto, aprecio o reconhecimento, da parte do vosso grupo, da herança cristã da Europa que oferece orientações éticas preciosas para a busca de um modelo social que satisfaça adequadamente as exigências de uma economia já globalizada e responda às mudanças demográficas, garantindo crescimento e progresso, tutela da família, iguais oportunidades na instrução dos jovens e solicitude pelos pobres.

Além disso, o vosso apoio à herança cristã pode contribuir de modo significativo para derrubar aquela cultura tão difundida na Europa que limita na esfera privada e subjectiva a manifestação das próprias convicções religiosas. As políticas elaboradas partindo desta base não só implicam o repúdio do papel público do cristianismo, mas, mais em geral, excluem o compromisso com a tradição religiosa da Europa, que é tão clara apesar das suas variedades confessionais, ameaçando desta forma a própria democracia, cujo vigor depende dos valores que promove (cf. Evangelium vitae, 70). A partir do momento que esta tradição, precisamente no que podemos definir a sua união polifónica, transmite valores que são fundamentais para o bem da sociedade, a União Europeia só pode receber um enriquecimento do compromisso com ela. Seria um sinal de imaturidade, ou até de debilidade, optar por se opor a ela ou por ignorá-la, em vez de dialogar com ela. Neste contexto, é necessário reconhecer que uma certa intransigência secular demonstra ser inimiga da tolerância e de uma visão sadia da sociedade. Portanto, sinto-me feliz pelo facto de o tratado constitucional da União Europeia prever uma relação estruturada e permanente com as comunidades religiosas, reconhecendo-lhes a sua identidade e o seu contributo específico.

Sobretudo, tenho esperança de que a realização eficaz e correcta deste relacionamento comece agora, com a cooperação de todos os movimentos políticos independentemente das suas orientações. É preciso não esquecer que, quando as Igrejas ou comunidades eclesiais intervêm no debate público, manifestando dúvidas ou recordando certos princípios, isso não constitui uma forma de intolerância ou uma interferência[1], porque tais intervenções são unicamente destinadas a iluminar as consciências, permitindo que elas se movam livre e responsavelmente segundo as exigências autênticas de justiça, mesmo quando isso pudesse entrar em conflito com situações de poder e com interesses pessoais.

No que se refere à Igreja Católica, o interesse principal das suas intervenções no campo público é a tutela e a promoção da dignidade da pessoa e, por conseguinte, ela chama conscientemente a uma particular atenção aos princípios que não são negociáveis. Entre eles, hoje emergem os seguintes: 

  • tutela da vida em todas as suas fases, desde o primeiro momento da concepção até à morte natural; 
  • reconhecimento e promoção da estrutura natural da família, como união entre um homem e uma mulher baseada no matrimónio, e a sua defesa das tentativas de a tornar juridicamente equivalente a formas de uniões que, na realidade, a danificam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu carácter particular e o seu papel social insubstituível;  
  • tutela do direito dos pais de educar os próprios filhos.

Estes princípios não são verdades de fé, ainda que recebam ulterior luz e confirmação da fé. Eles estão inscritos na natureza humana e, portanto, são comuns a toda a humanidade. A acção da Igreja de os promover não assume, por conseguinte, um carácter confessional, mas dirige-se a todas as pessoas, prescindindo da sua filiação religiosa. Ao contrário, esta acção é tanto mais necessária quanto mais estes princípios forem negados ou mal compreendidos porque isto constitui uma ofensa contra a verdade da pessoa humana, uma grave ferida infligida à própria justiça.

Queridos amigos, ao exortar-vos a ser testemunhas credíveis e coerentes destas verdades fundamentais através da vossa actividade política e mais basilarmente através do vosso compromisso de levar uma vida autêntica e coerente, invoco sobre vós e sobre a vossa obra a permanente assistência de Deus, em cujo nome concedo a minha Bênção Apostólica a vós e a quantos vos acompanham.





[1] O texto do site da Santa Sé tem aqui um erro de tradução, que corrijo em função das outras versões, nomeadamente a italiana, que pode ser lida aqui

quarta-feira, maio 28, 2014

Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos (III)


Continuamos a publicação do artigo do Cardeal Stickler, Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos, cuja primeira e segunda partes podem ser lidas aqui e aqui.


IV. O CELIBATO NA DISCIPLINA DAS IGREJAS ORIENTAIS

Foi dirigida contra a Igreja Latina a crítica de que, contra uma suposta atitude mais liberal no início, foi evoluindo a posições cada vez mais severas na sua disciplina celibatária. Como prova desta afirmação apela-se para a prática da Igreja Oriental, que teria mantido a original disciplina da Igreja primitiva. Por esta razão, diz-se, a Igreja Latina deveria retornar à disciplina original, especialmente por causa do grave peso que o celibato é hoje para a situação pastoral da Igreja universal.
A resposta a esta declaração e às correspondentes propostas depende da verdade ou não dessa condição da Igreja primitiva. O resultado da análise histórica que temos feito sobre a prática real celibatária no Ocidente, suscita sérias dúvidas sobre a suposta exactidão de tal parecer. Devemos, portanto, procurar uma clarificação do verdadeiro desenvolvimento do celibato na Igreja Oriental. E é isso que tentamos fazer nesta quarta parte da nossa exposição.
O testemunho de Epifânio de Salamina
Em sua defesa da origem apostólica do celibato, C. Bickell recorreu principalmente a testemunhos orientais. Vamos agora olhar para a história celibatária no Oriente, apenas em linhas gerais, já que não podemos analisar todos os testemunhos disponíveis. Mas, de tudo o que se disse até agora (e do que acrescentaremos adiante) podemos ter um panorama aceitável da verdadeira situação naquela Igreja.
Uma importante testemunha é o bispo de Salamina (posteriormente denominada Constância) na ilha de Chipre, Epifânio (315 – 403). Ele é considerado um bom conhecedor e defensor da ortodoxia e da Tradição da Igreja, uma vez que ele viveu quase todo o século quarto. Embora em alguns pontos, especialmente na luta contra as ideias, como na questão de Orígenes, demonstrou um menor zelo, os seus testemunhos sobre os factos e as condições de seu tempo, especialmente sobre questões disciplinares da Igreja, não pode ser facilmente posto em dúvida.
Sobre a questão do celibato, ou continência dos ministros sagrados, faz um típico relato dos acontecimentos. Na sua obra principal, chamado Panarion, escrita na segunda metade do século IV, afirma que Deus mostrou o carisma do novo sacerdócio por meio de homens que tinham renunciado ao uso do único casamento antes da Ordenação, ou que sempre viveram virginalmente. Isso, diz ele, é a norma estabelecida pelos Apóstolos com sabedoria e santidade.
No entanto mais importante ainda é a constatação que faz no “Expositio fidei”, acrescentada à obra principal. A Igreja, diz ele, apenas admite ao ministério episcopal e sacerdotal (também diaconal) aos que renunciam, através da continência, à sua própria esposa ou ficam viúvos. Assim – continua - se vive onde se mantêm fielmente as disposições da Igreja. Pode notar-se que, em diferentes lugares, sacerdotes, diáconos e subdiáconos continuam gerando filhos. Mas isso não está em conformidade com a norma vigente, mas é uma consequência da debilidade humana, que sempre tende ao que é mais fácil. E depois – continua a explicar - os sacerdotes são escolhidos especialmente entre os que são celibatários ou monges. Se entre eles não se encontram suficientes candidatos, são eleitos entre os casados que tenham renunciado ao uso do casamento, ou entre aqueles que, após um único matrimónio, ficaram viúvos.
Estas afirmações de um homem conhecedor de muitas línguas e que viajou muito para o Oriente – dividido já por muitas doutrinas – no primeiro século de liberdade da Igreja, são um bom testemunho tanto da norma como da situação real da questão do celibato na Igreja Oriental dos primeiros séculos.
São Jerónimo


Ordenação presbiteral de S. Jerónimo (Sacristia da Igreja de Santa Maria de Belém - Mosteiro dos Jerónimos)

A segunda testemunha é já conhecida. São Jerónimo foi ordenado sacerdote em Antioquia, por volta do ano 379, e ao longo de seis anos conheceu a doutrina e a disciplina oriental, bem como eclesiásticos e comunidades monásticas. Após ter vivido três anos em Roma, retornou, através do Egipto, à Palestina, onde permaneceu até a sua morte, por volta do ano 420. Esteve sempre em contacto estreito e activo com a vida de toda a Igreja, graças às suas relações com muitos homens importantes do Ocidente e Oriente, e também graças ao seu vasto conhecimento de várias línguas.
O seu testemunho explícito sobre a continência do clero já foi ilustrado na terceira parte. Recordemos agora novamente a sua obra Adversus Vigilantium, na qual, contrariamente àquele sacerdote da Gália meridional que desprezava o celibato, invocou a prática das Igrejas do Oriente, do Egipto e da Sé Apostólica, onde, segundo afirma, só aceitam clérigos virgens ou continentes, ou, se são casados, que tenham renunciado ao uso de casamento. Com isto conhecemos um testemunho sobre a posição oficial da Igreja, também sobre a continência dos ministros sagrados.
No que diz respeito à legislação dos Sínodos orientais, deve-se salientar que os Concílios regionais anteriores a Niceia, ou seja, os de Ancira e Neo-Cesareia e o post-niceno de Gangra (340), falam efectivamente de ministros casados, mas não nos dão informações fiáveis sobre a licitude de uma vida não continente após a Ordenação, que vá para além de uma situação excepcional.
Também nos sínodos particulares das diversas Igrejas cismáticas do Oriente que foram estabelecidas depois das controvérsias cristológicas, e nas quais – como no Ocidente – houve um claro afastamento da prática da disciplina celibatária, encontramos igualmente um testemunho, pela sua atitude oficial contrária à ortodoxia.
A questão do eremita Pafnucio.
O Concílio de que devemos ocupar mais amplamente, em relação ao nosso tema, é o primeiro Concílio Ecuménico, realizado em Niceia, no ano 325.
A única disposição sobre o celibato dos ministros neste primeiro Sínodo da Igreja Universal é o cânon 3, que proíbe que aos bispos, sacerdotes, diáconos, e, em geral, a todos os clérigos, que tenham em suas casa mulheres, introduzidas ali por subterfúgio. A única excepção é para a mãe, a irmã, a tia e outras que estejam para além de qualquer suspeita. Como sempre, entre as mulheres que estão autorizadas à convivência com os sacerdotes, não se encontram as esposas. O facto de que no primeiro posto dos eclesiásticos sujeitos à proibição de coabitação estavam os bispos – para os quais, na Igreja Oriental, era sempre obrigatória a continência no uso de um casamento anterior (o que continua válido até hoje) – permite-nos perguntar se entre os Padres do Concílio era firme a convicção de tal obrigação de continência.
Em favor de uma convicção e de uma situação contrária para o caso dos sacerdotes, diáconos e subdiáconos, invoca-se uma notícia sobre um eremita e bispo do deserto no Egipto, chamado Pafnucio.  Diz-se que esse personagem teria levantado a sua voz no Concílio para dissuadir aos Padres de sancionar uma obrigação geral de continência. Isso deveria ser deixado, segundo a sua opinião, para a decisão das Igrejas particulares; e diz-se que tal conselho teria sido aceito pela assembleia.
No entanto, o conhecido historiador da Igreja, Eusébio de Cesareia, que esteve presente como Padre conciliar e era favorável aos arianos, não faz qualquer referência a este episódio. Certamente não de menor importância para toda a Igreja, as primeiras notícias do facto só nos chegam cem anos depois do Concílio, e através de dois escritores eclesiásticos bizantinos: Sócrates e Sozómeno. Sócrates indica que a sua fonte é um homem muito idoso, que tinha estado presente no Concílio e que teria contado vários episódios sobre factos e personagens do mesmo. Crê-se que Sócrates nasceu em torno de 380 e escutou essa narração, quando ele mesmo era bastante jovem, de uma pessoa que, no ano 325, não podia ser uma criança, e que não pode ser considerado como um testemunho consciente dos eventos do Concílio. Disto podemos concluir facilmente que a mais elementar crítica das fontes traz sérias dúvidas sobre a autenticidade desta narração, carecida de garantias mais firmes.
Estas dúvidas, na verdade, já foram levantadas precocemente no Ocidente, como já foi dito, pelo Papa Gregório VII e Bernoldo de Constança. Em tempos mais recentes merece atenção o comentário de Valésio, editor das obras de Sócrates e Sozómeno, que relatou esta história em 1668, e que Migne imprimiu na sua Patrologia Grega, vol. 67. O humanista de Valois, membro de uma família de pessoas doutas, diz explicitamente que a história de Pafnucio é suspeita, porque entre os Padres do Concílio provenientes do Egipto não aparece tal bispo. E a correspondente passagem de Sozómeno repete que a história de Pafnucio deve ser uma fábula inventada, principalmente porque entre os Padres que assinaram as Actas do Concílio de Niceia, não existe nenhum com este nome. Na tradução latina de Cassiodoro e Epifânio (História Tripartida) deste episódio, é recolhido apenas um fragmento de dezasseis linhas da História da Sozómeno.
Recentemente, o estudioso alemão Friedhelm Winckelmann investigou esse incidente e concluiu que ele foi inventado, pois a referência à pessoa de Pafnucio apareceu mais tarde. O nome dele só aparece em manuscritos tardios das Actas do Concílio, e alguns textos do século IV apenas o conhecem como confessor da fé. Posteriormente algumas lendas hagiográficas o elevaram a mestre e foi citado como Padre do Concílio de Nicéia.
Mas o argumento mais convincente contra a autenticidade desse relato parece residir no facto de que precisamente a Igreja Oriental, que deveria ter o maior interesse nele, ou não tinha conhecimento do mesmo, ou não o usou em nenhum documento oficial, por estar convencida da sua falsidade. E o mesmo pode ser deduzido do facto de que não há qualquer menção ou utilização relativa Pafnucio, tanto nos escritos polémicos sobre o celibato dos ministros sagrados, como nos grandes comentadores do Século XII – Aristeno, Zonaras, Balsamon – do Syntagma canonum adauctum – ou seja, do códice maior de direito da Igreja Oriental, estabelecido pelo Concílio Trullano de 691. Isso seria, de facto, mais fácil do que recorrer à manipulação de textos históricos bem conhecidos, como veremos adiante.
Será necessário esperar até ao século XIV para que apareça o relato no Syntagma alfabeticum, de Mateus Blastares, que, contudo, parece que o considerou interessante para o Oriente só através do Decreto de Graciano. No Ocidente, essa falsificação foi recebida de modo completamente acrítico, ao menos pela canonística, que se baseou, em parte, para reconhecer uma determinada disciplina celibatária particular, diferente da Igreja Oriental. O Concílio Trullano II, ao fixar oficialmente as regras sobre o celibato válido na Igreja oriental, não fez qualquer referência a Pafnucio.
A fragmentação do sistema disciplinar no Oriente
Isso leva-nos ao ponto central na história do celibato ministerial na Igreja Bizantina e nas Igrejas Orientais a ela associadas. Algumas considerações preliminares ajudarão a entender a questão correctamente.
Como vimos até agora, um compromisso tão oneroso, humanamente falando, como o celibato, sempre teve que pagar ao longo da história o tributo da debilidade humana. Já Santo Ambrósio de Milão o testemunhou, afirmando que nem sempre correspondia o cumprimento com o preceito, sobretudo nas regiões mais remotas; também no Ocidente, o mesmo assinalava Epifânio de Salamina falando do Oriente. Adverte-se, portanto, com claridade, que há uma necessidade de permanente atenção e uma ajuda constante para manter essa prática. No Ocidente, os Concílios regionais e os Papas não cessaram de intervir, exortando à observância do celibato e para sustentá-la em todas as suas formas, garantindo o cumprimento do compromisso assumido, tão necessário para a Igreja.
Tudo indica, porém, que essa atenção constante se perdeu no Oriente. Isso pode ser comprovado, por um lado, pela história dos Concílios regionais orientais. Certamente se pode notar o efeito benéfico dos esforços comuns a toda a Igreja Universal, presentes nos Concílios Ecuménicos convocados no primeiro milénio, no Oriente. Mas esses esforços referem-se especialmente a questões dogmáticas e doutrinais. Os problemas disciplinares e de natureza pastoral eram enviados às assembleias das Igrejas particulares, tanto para responder às diferentes circunstâncias das diferentes regiões, como, sobretudo, por razão da organização patriarcal (Constantinopla, Antioquia, Alexandria, Jerusalém). Isso dava, e implicava, certa autonomia de governo, ainda mais acentuada pela separação de muitas Igrejas particulares, vítimas em maior ou menor grau de heresias, especialmente cristológicas, que agitavam o Oriente. Por essa razão, o Oriente como tal, não pôde chegar a uma atitude sistematicamente concorde em questões disciplinares, nem sequer sobre questões comuns de disciplina geral eclesiástica, como o celibato dos ministros sagrados. Cada Igreja particular emanava as suas próprias regras, muitas vezes diferentes, em função da diversidade de convicções.
Faltava, portanto, uma autoridade universal, reconhecida como tal por todo o Oriente, que poderia proporcionar uma efectiva coordenação da disciplina geral e que poderia tomar medidas eficazes de controlo, vigilância e execução.
Esta situação reflecte-se claramente naquelas recompilações de normas da Igreja Oriental, que contêm as prescrições dos Concílios Ecuménicos e dos Concílios particulares dos primeiros séculos. Mas a legislação dos séculos sucessivos não foi incluída na recompilação comum formada anteriormente, o Syntagma canonum. Em lugar das disposições papais, que foram tão importantes para a coordenação geral da disciplina no Ocidente, foram recolhidos fragmentos de textos dos principais Padres Orientais, que eram de natureza ascética. Também foram recolhidas leis imperiais em matéria eclesiástica, fruto do Césaro-papismo reinante na Igreja Bizantina, que eram realmente normas vinculantes que davam certa uniformidade nos pontos disciplinares de que tratavam.
Da disciplina ocidental, tanto particular como geral, o Oriente aceitou, na sua recopilação mais comum de direito eclesiástico, apenas a da Igreja Africana que era mais conhecida e mais próxima, ainda que pertencesse ao Ocidente romano. Além disso, a colecção mais importante e extensa, o Codex canonum ou Codex canonum Ecclesiae africanae in causa apiarii – causa na qual tinha sido interpelado o Oriente – foi introduzido no seu Syntagma.
Pela posição e influência exercida no Oriente pelos imperadores, existem os chamados Nomocânones, recopilações nas quais eram reunidas leis eclesiásticas e leis estatais de matéria eclesiástica; a observância dessas leis nos territórios orientais da Igreja, que ainda estavam sujeitos ao imperador, estava sob a responsabilidade deste.
Devido a esta situação na Igreja oriental, explica-se também a falta de uma acção eficaz geral contra a tentação sempre presente de ceder na observância do dever do celibato dos ministros sagrados. O que se manteve em quase todo o Oriente, pelo menos para os bispos, foi a antiga tradição da continência completa, incluindo aqueles que se tinham casado antes da Ordenação, pois muitos haviam sido eleitos entre os monges. Entretanto, foi-se lentamente julgando impossível deter o uso, cada vez mais estendido, do matrimónio contraído antes da Ordenação por parte de sacerdotes, diáconos e subdiáconos, e, ainda muito menos recuperável, a obrigação da continência completa. Isso significa que, de facto, se cedeu ante a situação.
Não se deve surpreender de que as primeiras leis que sancionaram esta situação foram leis imperiais, posto que, não inspiradas certamente em considerações teológicas, tratavam de regular as condições civis concomitantes com o ministério sagrado. De facto, enquanto o Código Teodosiano (ano 434) mostrou que a continência pode ser guardada, ainda que se permita à mulher habitar com o marido também depois da Ordenação, pois o amor à castidade não exige expulsá-la de casa (sempre que o comportamento dela antes da Ordenação do marido tenha demonstrado que ela é digna dele), a legislação do Imperador Justiniano I em matéria eclesiástica, por sua parte, tanto no Código (ano 534) como nas “Novellae” (535-536), manifesta uma atitude diversa. Ainda se mantém a proibição de admitir na Ordem sagrada ao que se tivesse casado mais de uma vez, assim como a de casar-se depois da Ordenação, e isto para todos os graus, desde o subdiaconado em diante. Mas agora permite-se a coabitação com a esposa aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos com o fim de que possam continuar usando do matrimónio, sempre que houvesse sido contraído uma só vez e com uma virgem.
A Legislação do II Concílio Trullano.
Qual foi, então, a legislação da própria Igreja Oriental frente às essas disposições imperiais? Como já foi referido, no Oriente há uma actividade que é desenvolvida em conjunto com a Igreja Ocidental sobre questões de fé, mas nunca chegou a uma legislação comum em matéria disciplinar.
Uma vez que o Concílio Trullano I, dos anos 680/81, não tinha emitido disposições disciplinares, o imperador Justiniano II convocou um segundo Concílio “em Trullo”, no Outono de 690. Nele se tentou reunir toda a legislação disciplinar da Igreja bizantina, e decidir as necessárias actualizações e complementos, incluindo a legalização de situações carentes, de facto, do necessário suporte normativo. Isso foi feito através da promulgação de 102 cânones, que foram acrescentados mais tarde ao antigo Syntagma adauctum, transformando-se dessa forma no último Código da Igreja Bizantina.
Toda a disciplina actualizada no que respeita ao celibato foi fixada de forma vinculativa e com sanções adjuntas em sete cânones (3, 6, 12, 13, 26, 30, 48). Este Concilio II “em Trullo”, também chamado Quinisexto, foi um Concílio da Igreja Bizantina, convocado e frequentado somente por bispos seus, e mantido pela sua autoridade, que se apoiava de modo decisivo na autoridade do imperador. A Igreja Ocidental não enviou delegados (embora o apocrisiário, isto é, o legado de Roma em Constantinopla, tenha assistido a esse Concílio), e nunca reconheceu este Concílio como ecuménico, apesar das repetidas tentativas e pressões, especialmente por parte do imperador. O Papa Sérgio (687-701), que procedia da Síria, negou o reconhecimento. João VIII (872-882) só reconheceu as disposições que não eram contrários à prática de Roma em vigor até aquele momento. Qualquer outra referência por parte dos Romanos Pontífices aos cânones “trullanos” não deve ser considerada como outra coisa além de uma consideração, com um reconhecimento mais ou menos explícito do direito particular da Igreja Oriental.
Então, de que fontes derivam as decisões “trullanas” sobre disciplina celibatária bizantina, vinculantes até hoje? Para responder adequadamente a esta pergunta, é necessário considerar antes tais disposições.
Cân. 3: Decide que todos os que depois do baptismo tinham contraído um segundo matrimónio ou tinham vivido em concubinato, bem como aqueles que se tinham casado com uma viúva, uma divorciada, uma prostituta, uma escrava ou uma actriz, não poderiam tornar-se nem bispos, nem sacerdotes, nem diáconos.Cân.  6: Declara que aos sacerdotes e diáconos não estão autorizados a casar-se após a Ordenação.Cân. 12: Ordena que os bispos não podem, após a Ordenação, coabitar com a sua esposa e, por conseguinte, não podem mais usar do matrimónio;Cân. 13: Estabelece que, ao contrário da prática romana que proíbe o uso do matrimónio, os sacerdotes, diáconos e subdiáconos da Igreja oriental, em virtude de antigas prescrições apostólicas, podem conviver com as suas esposas e usar dos direitos do casamento para a perfeição e ordem correcta, excepto nos tempos em que prestam o serviço no altar e celebram os sagrados mistérios, devendo ser continentes durante este tempo. Esta doutrina havia sido afirmada pelos Padres reunidos em Cartago: “os sacerdotes, diáconos e subdiáconos devem ser continentes durante o tempo do seu serviço ao altar, tendo em vista o que foi transmitido pelos Apóstolos e observado desde os tempos antigos, também nós o custodiamos, dedicando um tempo para cada coisa, especialmente à oração e ao jejum. Assim, pois, os que servem no altar devem ser em tudo continentes durante o tempo do seu serviço sagrado para que possam obter o que se pedem a Deus com toda simplicidade”. Portanto quem ouse privar mais além do que estabelecem os cânones apostólicos, aos ministros in sacris, quer dizer, aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos, da união e comunhão com as legítimas esposas, deve ser deposto, bem como aquele que, sob o pretexto de piedade, expulsa a sua esposa e insiste na separação.Cân. 26: Decreta que um sacerdote que por ignorância houvesse contraído casamento ilícito tem de se conformar com a sua situação anterior, mas abstendo-se de todo ministério sacerdotal. Esse matrimónio deve ser dissolvido e toda a comunhão com a esposa está proibida.Cân. 30: Permite que os que, com consentimento mútuo, querem viver continentes, não devem habitar juntos; isso é válido também para os sacerdotes que residem em países bárbaros (isso é entendido como os que vivem no território da Igreja Ocidental). Esse compromisso assumido é, no entanto, uma dispensa dada a esses sacerdotes pela sua pusilanimidade e pelos costumes das pessoas envolventes.Cân.: 48: Manda que a mulher do bispo que, após consentimento mútuo, se separou, deve ingressar num mosteiro depois da Ordenação do marido e deve ser mantida por ele. Pode também ser promovida a «diaconisa».
Destas disposições conciliares resulta o seguinte: o Oriente conhece bem a disciplina celibatária do Ocidente. Apela, como no Ocidente, como apoio à prática diferente, a uma tradição que remontaria até os Apóstolos. De facto, a Igreja Bizantina concorda na legislação trullana com a Igreja Latina nos seguintes pontos, que como no Ocidente, se fundamentam nos textos sagrados do Novo Testamento: o casamento antes da sagrada Ordenação deve ser apenas um, e não com uma viúva ou com outras mulheres que a lei exclui. Não é legítimo um primeiro ou sucessivo casamento após a Ordenação. Os bispos não podem continuar a ter convivência matrimonial com a esposa, mas devem viver em plena continência, e por isso as mulheres não podem viver com eles, mas devem ser mantidas pela Igreja. O Oriente exige ainda o ingresso das esposas num mosteiro ou a ordenação dessas como «diaconisas».
A diferença substancial da prática da Igreja Oriental refere-se só aos graus da Ordem sagrado inferiores ao episcopado. Para estes, a abstenção do uso do matrimónio exige-se somente durante o tempo do serviço efectivo no altar, que então estava limitado ao domingo ou a um outro dia da semana.
Encontramos aqui, portanto, uma volta à prática vigente no Antigo Testamento que a Igreja havia rejeitado sempre explicitamente com razões claras. Pelo contrário, a convivência e o uso do matrimónio durante o tempo livre do serviço directo não somente é defendido aqui com grande resolução, mas qualquer atitude contrária é castigada com gravíssimas sanções. A compreensível excepção para os sacerdotes que residem na Igreja latina é declarada como uma dispensa que se concede só por causa da evidente debilidade humana de tais sacerdotes e pelas dificuldades que provém do ambiente, entre as quais está certamente o facto da geral prática de continência do clero ocidental.
Motivos da nova disciplina adoptada: a mudança dos textos
Os Padres do Concílio II Trullano não podiam encontrar nos seus documentos motivos para a distinção entre as duas posições. Provavelmente não queriam fazer referência ao Antigo Testamento porque, como já vimos, nos argumentos ocidentais e, sobretudo nas disposições dos Romanos Pontífices a favor da completa continência, se rejeitava explicitamente e com razões convincentes este paralelismo como inadequado em relação ao sacerdócio do Novo Testamento. Mas tinham menos motivos ainda para apelar à legislação imperial que se  havia antecipado às decisões eclesiásticas diante uma situação possivelmente já generalizada.
Posto que em Constantinopla se tivesse consciência da falsidade do relato de Pafnucio, já não restava qualquer possibilidade d3 recorrer a testemunhos da antiguidade cristã, que não procedesse da Igreja de Constantinopla, mas de uma Igreja vizinha à deles, cujos cânones disciplinares tinham sido já incluídos no próprio Código geral. Assim havia sucedido com os cânones do Código africano que tratavam expressamente da continência clerical e também faziam referência aos Apóstolos e à tradição antiga da Igreja.
Uma vez que tais cânones afirmavam a mesma disciplina, isto é, da completa continência, para bispos, sacerdotes e diáconos, devia ser modificado o texto autêntico dos cânones africanos. Não era algo perigoso, pois no Oriente realmente muito poucos podiam verificar o latim genuíno do texto original.
Deste modo as palavras do cânon 3 de Cartago: “gradus isti tres (…) episcopos, presbyteros et diaconos (…) continentes in omnibus”, foram substituídos no cânon 13 do Concílio Trullano por estas outras: “sub­diaconi (…) diaconi et presbyteri secundum easdem rationes a consorti­bus se abstineant”, sendo que as palavras “easdem rationes”, opostas às palavras do texto original de Cartago, representavam as mudanças introduzidas pelos Padres trullanos.
Mas em todos estes textos, documentalmente manipulados, se conserva, ou melhor, se busca a referência aos Apóstolos e à Igreja antiga para dar ao celibato bizantino e oriental, através destes testemunhos autorizados, o mesmo fundamento que tinha a tradição ocidental, explicitamente indicado por ela em Cartago e noutros lugares.
Que podemos dizer diante deste procedimento trullano? Os Padres orientais sentiam-se, não há dúvidas, autorizados para decretar disposições particulares para a Igreja Bizantina, posto que desde havia muito tempo antes tinham insistido na sua autonomia jurídica no âmbito da administração e da disciplina. Somente se sentiam obrigados pelas decisões doutrinais da Igreja universal estabelecidas em Concílios Ecuménicos nos quais também eles tinham participado. Pode-se, desde já, reconhecer naqueles Padres – que estabeleciam as normas de validade geral na sua Igreja – o direito de levar em conta só a situação de facto na questão do celibato dos ministros sagrados, para a qual viam possibilidade de reforma frutuosa. Que isso fosse possível num campo em que, como o caso do celibato, está implicada a Igreja Universal, é outra questão. Mas o que sem dúvida podemos negar é o direito a fazê-lo com este método, ou seja, mediante uma manipulação dos textos que transforma a verdade na sua contrária.
Para a Igreja Católica Ocidental, esta atitude dos Padres trullanos pode ser considerada com uma prova a mais, e não sem importância, a favor da própria tradição celibatária, que se considera apostólica e se fundamenta realmente sobre uma consciência comum à Igreja Universal antiga; por isso a tradição celibatária ocidental deve ser considerada verdadeira e justa.
Devemos ainda perguntar-nos o que diz a história sobre essa mudança dirigida a obter uma base de apoio para as novas e até agora definitivas obrigações do celibato na Igreja Oriental. Os comentários dos canonistas da Igreja Bizantina a essa leitura dos cânones africanos permitem compreender que conheciam o texto original autêntico, e que desde o século XVI em adiante – como, por exemplo, o comentário de Mateo Blastares – recolhiam dúvidas sobre a exactidão das referências dos Padres do Concílio Trullano II aos textos africanos. Os intérpretes modernos das disposições trullanas sobre o celibato admitem a inexactidão das referências, mas ao mesmo tempo afirmam que o Concílio tinha autoridade para mudar qualquer lei disciplinar para a Igreja Bizantina, e para adaptá-la às condições dos tempos. Fazendo uso desta autoridade podiam também mudar o sentido original dos textos para fazê-los concordar com o parecer e a vontade do próprio Concílio. Mas com toda certeza não era objectivamente lícito alterar o original atribuindo a esse uma autenticidade falsa.
A historiografia do Ocidente reconheceu há muito tempo e manifestou também por escrito, desde o século XVI, a manipulação feita pelo Concílio Trullano II sobre os textos africanos ralativos à continência dos ministros sagrados. Cito, por exemplo, o Cardeal Barónio (1538 -1607) e, sobretudo, os editores das diversas colecções de textos conciliares, entre os quais se destaca J. D. Mansi.
Falta-nos ainda fazer uma referência às marcas da genuína disciplina celibatária antiga que permaneceu até aos nossos dias na nova disciplina trullana, quer dizer, à constante preocupação da Igreja pelo perigo grave e contínuo para os ministros sagrados e sua continência, que é a coabitação com mulheres que estejam acima de qualquer suspeita. Na sequência do já referido cânone 3 do Concílio de Niceia, de 325, os mesmos cânones trullanos, examinados anteriormente, tratam dele repetidamente. Semelhante preocupação se deve somente pela solicitude geral para salvaguardar a castidade e a continência dos ministros sagrados em ambas as Igrejas.
O facto de haver conservado para os bispos da Igreja Oriental a mesma severa disciplina sobre a continência que se praticou sempre em toda a Igreja, pode ser considerada como um resíduo na legislação trullana de uma tradição que sempre considerou unidos a todos os graus da Ordem Sagrada numa mesma obrigação de completa continência.
Também não se compreende porque se conservou, com todo rigor, na Igreja Oriental a condição de admitir um único matrimónio entre os candidatos ao sacerdócio casados. Como já vimos (e veremos mais detalhadamente) essa condição tem só um significado razoável em função de um empenho definitivo na continência completa.
É ainda pouco compreensível a proibição absoluta de se contrair matrimónio depois da sagrada Ordenação, que se mantém mesmo quando aos ministros sagrados, desde o sacerdote até abaixo, está permitido o uso do matrimónio.
No que se refere às inovações oficialmente introduzidas pelo Concílio Trullano na questão da continência dos clérigos, que reconduzem o conceito neotestamentário do ministro sagrado ao conceito levítico do Antigo Testamento, devemos perguntar como se poderia continuar a fazer isso, quando o serviço efectivo do altar se estendeu, também na Igreja Oriental, a todos os dias da semana. Se fossem consideradas as razões adoptadas para o uso do matrimónio por parte dos sacerdotes vetero-testamentário, deveria ter voltado à completa continência dos sacerdotes, diáconos e subdiáconos tal como se praticava no Ocidente, em atenção às disposições do mesmo Concílio Trullano. Mas isso não se fez em nenhuma parte, e desse modo o serviço do altar e o ministério do Santo Sacrifício foram desligados da continência, apesar de que sempre haviam estado unidos a ela, pois eram considerados o seu motivo último.

Nas Igrejas particulares unidas à Bizantina, que aceitaram a disciplina trullana, não se verificou nos séculos seguintes nenhuma mudança na práxis do celibato dos ministros sagrados. Às comunidades orientais que se uniram a Roma foi concedido po­der continuar na sua tradição celibatária diferente. Mas o retorno dos “uniatas” à práxis latina de continência completa não só não encontrou oposição, mas também foi positiva e favoravelmen­te aceita. O reconhecimento da diversidade de disciplina conce­dido pelas autoridades centrais de Roma pode ser considerado como um nobre respeito, mas dificilmente como aprovação oficial da mudança da antiga disciplina da continência. Essa opinião pa­rece estar sustentada pela reacção oficial que teve a Santa Sé frente ao Concílio Trullano II, como já assinalamos anteriormente.