domingo, novembro 20, 2016

A vitória da cruz

Crucifixo do retábulo da Igreja do Seminário dos Olivais (porm.)

(…) Entre os personagens da paixão com os quais nos podemos identificar dou-me conta que não mencionei um, aquele que mais espera que sigam o seu exemplo: o bom ladrão.

 
O bom ladrão faz uma completa confissão de pecado; diz ao seu companheiro que insulta Jesus: «Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo que as nossas acções mereciam; mas Ele nada praticou de condenável» (Lucas 23, 40s.). O bom ladrão demonstra-se um excelente teólogo. De facto, só Deus sofre absolutamente como inocente; outro ser que sofre deve dizer: «sofro justamente», porque embora não seja responsável pela acção que me é atribuída, nunca sou totalmente sem culpa. Só o sofrimento das crianças inocentes se assemelha com o de Deus e por isso é tão misterioso e sagrado.
 


Quantos delitos atrozes permaneceram nos últimos tempos sem um culpado, quantos casos sem solução! O bom ladrão lança um apelo aos responsáveis: fazei como eu, denunciai-vos, confessai a vossa culpa: experimentareis também vós a alegria que senti quando ouvi a palavra de Jesus: «Hoje estarás comigo no paraíso!» (Lucas 23, 43). Quantos réus confessos podem confirmar que foi assim também para eles: passaram do inferno para o paraíso no dia que tiveram a coragem de se arrepender e confessar a própria culpa. Conheci alguns. O paraíso prometido é a paz da consciência, a possibilidade de se olhar no espelho ou para os próprios filhos sem sentir desprezo por si mesmo.

 

Não leveis para o túmulo o vosso segredo; provocar-vos-ia uma condenação muito mais temível do que a humana. O nosso povo não é cruel com quem errou, mas reconhece o mal feito, sinceramente, não só pelos cálculos. Ao contrário! Está pronto a ter piedade e acompanhar o arrependido no seu caminho de redenção (que em muitos casos se torna breve). «Deus perdoa muitas coisas, por uma obra boa», disse Lúcia ao Inominado no livro «Os Noivos». Ainda mais, é preciso dizer, ele perdoa muitas coisas por um acto de arrependimento. Prometeu solenemente: «Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão brancos como a neve. Mesmo que sejam vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã» (Isaías 1, 18).

 

Retomemos agora, ouvimos no início, a nossa tarefa neste dia: com voz de alegria exaltemos a vitória da cruz, entoemos hinos de louvor ao Senhor. «O Redemptor, sume carmen temet concinentium»: E tu, ó nosso Redentor, acolhe o cântico que te elevamos.


 

sábado, abril 02, 2016

«Não sejas incrédulo, mas crente»


Estamos no 2º Domingo da Páscoa. Como sempre, na 1ª leitura da Missa durante o Tempo Pascal, abrimos os Actos dos Apóstolos e lançamos um olhar fascinado para a vida da primitiva Igreja. É um tempo de milagres, de intensa caridade e também de grande expansão. E hoje, continua a ser assim? Vivemos o mesmo entusiasmo dos primeiros cristãos? E será que no futuro o número de cristãos continuará a aumentar?
Assim tem acontecido, graças a Deus. De facto, há cerca de um ano, o Vaticano apresentou a mais recente edição do Anuário Estatístico da Igrejao qual revela que entre 2000 e 2013 o número de católicos passou de 1045 milhões para 1254 milhões, um aumento de 20%. O maior crescimento aconteceu em África, com um aumento de 34%. A Europa, infelizmente, confirma a tendência de ser a área com menor dinâmica de crescimento, com mais 6,5 milhões de batizados desde 2005, num total de 287 milhões de católicos (um crescimento de 2,3%).

Não devemos deixar de reflectir serenamente sobre este assunto à luz da Palavra de Deus que hoje ouvimos. A 1ª leitura dizia-nos que “cada vez mais gente aderia ao Senhor, pela fé”. Quando lemos os Actos dos Apóstolos, vemos que S. Lucas se refere muitas vezes a este crescimento constante e progressivo da Igreja: é como se ele estivesse já a ver o cumprimento das parábolas do grão de mostarda e do fermento, que Jesus contou. Mas foi mesmo assim que aconteceu: logo naqueles primeiros tempos depois da ressurreição e ascensão de Jesus, houve muitas conversões. Só no Dia de Pentecostes, depois de ouvirem Pedro, pediram o baptismo cerca de três mil pessoas (Actos 2, 41).
No entanto, no passo que hoje ouvimos, S. Lucas dizia também que havia ainda pessoas hesitantes, receosas: os discípulos estavam “unidos pelos mesmos sentimentos”, isso notava-se exteriormente, “o povo enaltecia-os”, mas “nenhum dos outros se atrevia a juntar-se a eles”. Quem são estes “outros”? A quem se refere S. Lucas? Deviam ser alguns que estavam ainda dominados pelo temor dos chefes do povo, que tinham condenado Jesus à morte. Tinham medo de ser perseguidos, e por isso não davam o passo final da conversão a Jesus Cristo, não aceitavam o dom da fé, não aderiam à Igreja.
Creio que também nós encontramos hoje muitas pessoas hesitantes, que não se decidem a dar este passo decisivo da conversão e a aderir plenamente a Jesus pela fé. Quais serão os motivos desta hesitação? Às vezes há pessoas que têm dificuldades ou interrogações quanto a certos aspectos da fé ou da doutrina cristã. Não é de estranhar, porque o mistério de Deus é uma luz que supera as nossas capacidades. Mas, quando isto acontece, devemos saber ouvir, desenvolver um diálogo aberto e sincero, e depois procurar esclarecer serenamente essas dificuldades com a ajuda do Espírito Santo.
No entanto, noutros casos, o que falta a muitas pessoas é a coragem de mudar de vida, ou antes, o que lhes falta é a coragem de passar a viver de um modo novo, como é próprio dos que acreditam em Jesus ressuscitado. Há pessoas que gostariam de viver segundo o Evangelho, mas pensam que não são capazes. Gostariam de ser mais generosos, mas sentem que continuam a ser egoístas. Desejariam vencer este ou aquele defeito, mas continuam a fracassar. Desejariam ser melhores, na vida de família, no trabalho, na amizade, na caridade, no desprendimento e em tantas outras virtudes, mas muitas vezes reconhecem que falham. E então desistem. Deixam-se levar por uma certa resignação, convencem-se de que não há nada a fazer, perdem a esperança, e com a perda da esperança, quase perdem a fé, ou chegam mesmo a deixar morrer a fé nos seus corações.
Como vencer este desânimo, como superar esta dificuldade, que leva tantas pessoas, na prática, a viver uma vida cristã frouxa e hesitante? Só há uma maneira: é aceitar aquele convite que o próprio Jesus ressuscitado fez a Tomé, quando apareceu de novo aos seus discípulos, “oito dias depois” do seu primeiro encontro com eles, no Domingo de Páscoa. Jesus disse a Tomé: “«Não sejas incrédulo, mas crente»”. Estas palavras de Jesus, que hoje ouvimos no Santo Evangelho, não são uma repreensão a Tomé, não são uma censura, mas sim uma exortação premente à fé, e dirigem-se também a cada um de nós. “«Não sejas incrédulo, mas crente»”, diz-nos também hoje Jesus.
REMBRANDT, A incredulidade de S. Tomé (1634)

É um convite à fé, é um desafio, sim, mas devemos reconhecer que, antes de o ser, é um dom. Jesus ressuscitado dá-nos a graça da fé, pela qual, apoiando-nos no testemunho daqueles que O viram, acreditamos pessoalmente em Jesus, mesmo sem O ter visto. Como é evidente, ninguém acredita com a fé dos outros, mas, apoiando-nos na experiência e no testemunho dos outros, em particular dos Apóstolos, que viram Jesus, cada um de nós pode dizer, com toda a verdade, diante de Jesus, como S. Tomé: “«Meu Senhor e meu Deus»”.
E, quando o fazemos, somos felizes. O próprio Jesus quis deixar-nos esta certeza e esta firme consolação: “«Felizes os que acreditam sem terem visto»”. Estas foram as últimas palavras ditas por Jesus no Cenáculo, no termo das suas aparições em Jerusalém. S. João diz expressamente que o seu Evangelho foi escrito para acreditarmos “que Jesus é o Messias, o Filho de Deus”, e para que, acreditando, tenhamos a vida “em seu nome”. Na verdade, é uma enorme graça ter fé. É ela que nos permite conhecer Jesus Cristo, e nos abre ao perdão dos pecados e à efusão do Espírito Santo.
Pela fé, vencemos o medo, o desânimo e as tentações contra a esperança. A 2ª leitura levava-nos a escutar estas palavras reconfortantes de Jesus, ouvidas um dia pelo autor do Apocalipse: “«Não temas»”. Estas palavras convidam-nos a dirigir o olhar para Jesus Cristo, para experimentarmos a sua presença, que nos enche de paz, em todas as circunstâncias. Mesmo nos momentos mais difíceis, Jesus diz-nos: “«Não temas!»”E acrescenta: “«Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Estive morto, mas eis-me vivo pelos séculos dos séculos»” Se Deus te chama a uma vida vivida na verdade e na caridade: “«Não temas!»” Se te chama a uma vida de consagração ao seu serviço: “«Não temas!»” Se te envia a falar de Jesus aos outros: “«Não temas!»” Se, por causa disso, te criticam ou até te perseguem: “«Não temas!»”. Ele é o Primeiro, ou seja, a fonte do ser, e o Último, isto é, o fim da história. D’Ele parte e para Ele converge toda a vida humana. É a fonte inesgotável da vida, que venceu a morte para sempre.
Quando Jesus apareceu aos discípulos, na tarde do Domingo de Páscoa, “mostrou-lhes as mãos e o lado”: as mãos com que foi preso ao madeiro, e o lado, ou o peito, trespassado pela lança do soldado.  Do peito trespassado de Jesus sai uma vaga de misericórdia para toda a humanidade. Neste 2º Domingo da Páscoa, que é o Domingo da Divina Misericórdia, confiamos a Jesus o mundo inteiro e todos os homens da Terra, para que se acenda no coração de todos a luz da fé em Jesus Cristo ressuscitado, e com ela a esperança e a caridade, que nos tornam felizes, já hoje, e um dia plenamente, por toda a eternidade.