terça-feira, abril 30, 2013

Estou a amar como Jesus?


Os Actos dos Apóstolos levam-nos a assistir ao final da primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé: desde a última cidade que visitaram, que se chamava Derbe, regressam a Antioquia, na Síria, de onde tinham partido. Quais eram os sentimentos dos dois apóstolos, no fim desta emocionante viagem missionária? O texto dos Actos mostra-nos claramente que, de volta a Antioquia, Paulo e Barnabé traziam o coração cheio de alegria e gratidão: quando partiram, iam “confiados na graça de Deus”; agora, ao regressar, “convocaram a Igreja”, e “contaram tudo o que Deus fizera com eles, e como abrira aos gentios a porta da fé” (Actos 14, 27). Tinha sido uma viagem cheia de frutos, à sua palavra muitas pessoas se tinham convertido, mas Paulo e Barnabé atribuem a Deus todas estas conversões, pois Deus é que tinha actuado, e eles tinham sido nas suas mãos instrumentos dóceis e fiéis.

E nós, que coisas fazemos para ajudar a abrir a muitas pessoas “a porta da fé”?

Quando damos catequese ou realizamos qualquer outro apostolado, quando falamos de Jesus aos nossos amigos ou abordamos temas de fé com tantas outras pessoas, confiamos na graça de Deus e na acção do Espírito Santo?

Procuramos não ser um obstáculo à acção de Deus e, pelo contrário, ser instrumentos dóceis nas suas mãos?

Tal como os pastorinhos de Fátima, rezamos e oferecemos sacrifícios pelas pessoas que desejaríamos que se convertessem a Jesus?

Quando surgem obstáculos ou dificuldades, pedimos ajuda a Deus, e continuamos alegres e confiantes, sem desistir nem desanimar?

Muitas pessoas desanimam, ao considerarem como é violento e injusto o mundo em que vivemos. Terrorismo, guerras, violências, roubos, abusos, ambição desordenada, desonestidade, imoralidade, e tantos outros males, são traços demasiado acentuados do mundo actual.

Não são os únicos, mas às vezes parecem sufocar o que há de bom na vida humana. O mal às vezes parece que é mais forte do que o bem e a verdade. O maligno parece às vezes que é o senhor do mundo. Quem irá prevalecer? Quem irá vencer definitivamente?

A Palavra de Deus também nos dá a resposta a esta pergunta. Lendo o Apocalipse, somos convidados a ver, na luz da fé, o que viu, com olhar profético, S. João: “Eu, João, vi um novo céu e uma nova terra… Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu da presença de Deus…” (Apocalipse 21, 1-2). É uma visão bela e grandiosa, que alenta a nossa esperança. Embora continuasse a viver num mundo muito violento e injusto, João viu em Deus “um novo céu e uma nova terra”, isto é, um Universo novo, ou antes, renovado, radicalmente transformado.

Haverá uma renovação física do Universo, para que ele próprio participe, à sua maneira, na glória de Cristo ressuscitado? Há vários passos do Novo Testamento que nos transmitem esta mensagem. No entanto, não sabemos quando nem como acontecerá essa renovação. O que sabemos, com toda a clareza, como diz o Apocalipse, é que haverá uma renovação moral e espiritual: o mundo novo e definitivo será um mundo sem maldade e sem pecado, em que a vitória de Cristo ressuscitado se estenderá a todas as dimensões da vida.

Deus acendeu nos nossos corações a esperança deste mundo novo, e não devemos deixar que a chama desta esperança se apague em nós. Não nos devemos resignar ao mundo, tal como ele existe hoje.

Este mundo não é definitivo, não nos «enche as medidas», e precisa de ser, desde já, profundamente purificado.

E pedimos por intercessão do Imaculado Coração de Maria, que esta purificação comece por nós, pelos nossos corações e por toda a nossa vida. Que a nossa vida seja já hoje renovada, convertida, pela graça de Cristo, e assim sejamos fermento de um mundo novo, transformado pela presença de Deus e pela sua inesgotável misericórdia.

Jesus não nos convida a uma vida ‘mediana’, em que apenas se procura não cometer grandes erros, nem grandes desvios, mas sim a uma vida entregue, segundo a medida do seu amor levado “até ao fim” (João 13, 1). As diversas religiões e sabedorias da humanidade é que são animadas por ideais de harmonia, equilíbrio, bom senso, mas a fé cristã é completamente diferente. Nós não somos chamados a um certo ‘equilíbrio’, mas sim uma entrega total, porque Jesus, ao morrer por nós, deu-nos a prova máxima do amor (João 15, 3).



E por isso, Jesus não nos manda ser apenas ‘boas pessoas’, mas diz-nos: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”(João 13, 34).
 
Jerôme Nadal (ed.), Jesus lava os pás aos Apóstolos (1595)
 

Há muitos graus e formas de amor, e nem todas igualmente verdadeiras. Mas o amor a que Jesus nos chama é “novo”: “como Eu vos amei”. A Paixão de Jesus mostra-nos de um modo profundamente emocionante como foi, e até onde chegou este amor. Nunca ninguém amou como Jesus. Parece impossível atingir a perfeição e a intensidade do amor de Jesus. No entanto, o amor de Jesus é o modelo, a fonte, a inspiração e o referencial de todo o amor humano.

Todos nos podemos perguntar: estou a amar como Jesus? Ou o meu amor é apenas terreno, mundano fechado, egoísta? Os que são casados ou os que são solteiros, os noivos que preparam o seu casamento ou os jovens que estão no Seminário, os doentes e os sãos, os idosos e os mais novos: todos somos chamados a amar como Jesus. O amor de Jesus é dom, mais do que posse, é esquecimento de si, para pensar no outro, e é muitas vezes renúncia, feita com alegria, para fazer os outros mais felizes.

O amor de Jesus leva os namorados a guardar-se na pureza e castidade, até ao dia em que, pela mão de Jesus, cada um se dê ao outro para sempre. Leva os casais a uma fidelidade de coração e de todo o ser, que não se discute e nunca está em questão. E leva até alguns a renunciar a um amor humano, para servir com alegria e por amor, na Igreja, os outros irmãos.

“Como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”. Segundo conta um autor do séc. III, Tertuliano, os primeiros cristãos tomaram tão a sério estas palavras de Jesus, que os gentios exclamavam, admirados: «Vede como eles se amam!» (Apologeticum 39, 7, CCL 1, 151).

Nós acreditamos no amor de Jesus, e acreditamos que é possível vivê-lo. Isto não significa que sejamos perfeitos: continuamos a ser imperfeitos e pecadores. Mas pedimos-Lhe que nos dê um coração novo, capaz de viver o seu mandamento novo, e assim antecipar, à nossa volta e no mundo em que vivemos, esse tempo que ansiosamente esperamos, em que o próprio Deus fará novas “todas as coisas”.

 

terça-feira, abril 23, 2013

É possível mudar de sexo? Quem «muda de sexo» pode casar»?


É possível mudar de sexo?
 
O texto que se segue é um resumo do livro de D. Elio Sgreccia, Manual de bioética: I. Fundamentos e ética biomédica. Aspectos médico-sociais, S. Paulo, Ed. Loyola, 2ª edição, 2002, pp. 499-525. (Ver aqui algumas passagens do livro sobre o assunto em apreço).
 
 

Lamentavelmente, a edição portuguesa deste mesmo livro, Manual de bioética, Lisboa, Principia Editora, 2009, (que é uma obra fundamental), não inclui este capítulo.
 
 

O Cardeal Elio Sgreccia é Presidente Emérito da Pontifícia Academia para a Vida.
 
 

Reproduzo o resumo de Dom Estêvão Bettencourt (OSB), adaptando o texto. (Dom Estêvão Bettencourt foi director e redactor da primeira revista sobre Apologética Católica do Brasil, a Pergunte e Responderemos (PR), publicação mensal do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, desde 1957 até 2008. Veja aqui uma lista dos seus artigos).
 
 

TRANSEXUALISMO

Distingam-se quatro pontos: 1) noção de transexualismo; 2) origem desta tendência; 3) liceidade da intervenção cirúrgica; 4) o matrimónio dos transexuais.

1. Transexualismo: Que é?

A fim de chegar a uma definição clara, considerem-se as modalidades de sexo:

1.      Sexo cromossómico, determinado pela presença ou ausência do cromossoma Y na bagagem genética da célula embrional do indivíduo. Indivíduos que têm um Y com um ou mais X são do sexo masculino; os que não têm Y são geneticamente femininos. Estes dados são resultado objectivo da fecundação.

2.      Sexo gonádico: baseia-se nas características histológicas da gónada. O sexo masculino possui tecido testicular, ao passo que o feminino possui tecido ovariano.

3.      Sexo dos canais genitais (ou ductal). O canal de Muller é próprio da mulher, o canal de Wolf é próprio do homem.

4.      Sexo fenotípico ou genital: é determinado pelas características dos genitais externos.

Na sexualidade física normal existe harmonia e concordância entre esses componentes citados; existem anomalias que determinam um estado de intersexualidade quando há discordância entre os caracteres genéticos, gonádicos, fenotípicos ou canais do sexo. As anomalias podem ser as seguintes:

a)     Pseudo-hermafroditismo: quando há discordância entre os caracteres fenotípicos ou genitais e os gonádicos e cromossómicos, e isso pode-se dar em duas situações:

1)     Pseudo-hermafroditismo feminino: os genitais são masculinos (mais ou menos diferenciados) enquanto as gónadas e a bagagem cromossómicas são femininas, no caso, p. ex., da síndrome androgenital congénita;

2)     Pseudo hermafroditismo masculino: os genitais são femininos, mas as gónadas e a bagagem cromossómica são masculinas, i. é, testiculares (síndrome de Morris ou do testículo feminilizante);

b)     Hermafroditismo verdadeiro (muito raro): há tecidos ovarianos e testiculares contemporaneamente. Também neste caso pode haver duas hipóteses; o caso geral é o que apresenta um fenótipo predominantemente masculino, ainda que haja genitais externos rudimentares, às vezes com a concomitância de "menstruações" depois da puberdade sob a forma de hematúria, devido à presença de um útero rudimentar.

Alguns distúrbios estão relacionados também com defeitos genéticos: p. ex., a síndrome de Klinefelter é devida à presença de 47 cromossomas com fórmula XXY ou em forma de mosaico XX-XY; o indivíduo apresenta genitais externos normalmente desenvolvidos no sentido masculino ou hipoplásticos associados a oligospermia ou a aspermia. A síndrome de Turner, ao contrário, é devida à presença de 45 cromossomos (falta o X), com fenótipo feminino e ausência de ovários férteis.

Essas várias formas de anomalias que dizem respeito aos componentes físicos do sexo e estão também compreendidas na legislação referente à rectificação do sexo não configuram o que se define como transexualismo propriamente dito. O transexualismo define-se como um conflito entre o sexo físico "normal" nos seus componentes atrás relacionados e a tendência psicológica que é sentida numa direcção oposta. Na quase totalidade dos casos, trata-se de indivíduos de sexo físico masculino que, psicologicamente, se sentem mulheres e tendem a identificar-se com o sexo feminino. São muito raros os casos em sentido contrário, ou seja, de indivíduos fisicamente mulheres que pretendem tornar-se homens.

O transexualismo apresenta-se como uma síndrome na qual existe uma "pulsão" psicológica, aparentemente primária (ou, de qualquer modo, surgida em tempos remotos), de pertencer ao sexo oposto ao genético, endócrino, fenotípico e obviamente também ao do registo civil, pulsão essa que é acompanhada por um comportamento psicossexual de tipo nitidamente oposto ao previsto pelo sexo anatómico, e que se associa ao desejo obsessivo de "libertar-se" dos atributos genitais que possui e de adquirir os do sexo oposto. Quando essa "pulsão" é de longa data e profundamente amadurecida, há uma fase de "irreversibilidade" que leva o indivíduo à intervenção cirúrgica correctiva: obviamente isso é mais fácil e traz resultados estético-funcionais apreciáveis quando o que é masculino se "corrige" para o feminino, sendo muito menos fácil e válida a direcção oposta.

Para explicar melhor essa anomalia, é bom distingui-la ainda de outras duas formas, que têm também raiz psicológica: o homossexualismo e o travestismo.

Na homossexualidade não se sentem os aspectos físicos do sexo num sentido ambíguo e conflituante; são usados em vista da satisfação erótica posta num indivíduo do mesmo sexo. O homossexual não deseja mudar de sexo, mas simplesmente ter relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo.

O travestismo é uma síndrome na qual não há desejo profundo de mudança de sexo, mas a simples instauração de uma necessidade psíquica de usar roupas do outro sexo como condição necessária para conseguir a excitação sexual: a relação sexual tende a acontecer com indivíduos do sexo oposto.

2. Transexualismo: origem

Duas são as teorias que debatem a origem do transexualismo.

1) Seria devido a carências endócrinas e a mecanismos neuro-hormonais.

2) A maior parte dos autores defende, pelo contrário, a origem socio-psicogénica do transexualismo: seriam os estímulos extrínsecos provenientes do ambiente social e familiar no qual o paciente vive os que determinariam, por sua precocidade e absoluta persistência, a orientação sexual do transexual. A génese dessa anomalia seria devida a um processo de identificação da criança com a mãe e a irmã (híper-protectoras e possessivas) na ausência de uma consistente figura paterna, processo esse levado ao ponto de induzir o impulso de se tornar mulher.

A idade da instauração da anomalia, numa e noutra hipótese, remontaria aos primeiríssimos tempos da infância (1-2 anos).

A importância ética das diferentes origens estaria no facto de que a eventual origem orgânica das anomalias justificaria melhor, segundo alguns, a solicitação de intervenção correctiva mediante terapia médico-cirúrgica, enquanto a origem psicossocial comportaria consequentemente a legitimidade e a necessidade apenas de uma terapia psicológica, na hipótese de que seja eficaz.

Sobre a irreversibilidade de anomalia parece ser suficiente, mas não definitiva, a concordância entre os autores: a grande maioria considera que a anomalia não é reversível no sentido de possibilidade de harmonizar a psique com a configuração do sexo fenotípico; sobre este ponto parece haver concordância entre as afirmações tanto dos defensores da origem orgânica como dos defensores da origem psicossocial.

Parece confirmado cientificamente que a execução da intervenção médico-cirúrgica não leva a superar o conflito precedente, não recompõe a harmonia com o novo sexo, mas até parece agravar a sensação de frustração:

·        Passando à avaliação das consequências das intervenções, é preciso considerar antes de mais nada, realisticamente, que até a mais perfeita operação não realiza nunca uma autêntica e verdadeira mudança de sexo. A permanência da próstata e das vesículas seminais no transexual masculino e a impossibilidade de uma cópula fisiológica por parte do pénis artificial no transexual feminino não permitem falar de genitais respectivamente femininos e masculinos.

·        A pseudo-vagina é apenas uma imitação do órgão feminino, ainda que se adapte à cópula, e mais ainda o é o pénis postiço; assim sendo, por mais argumentações que se apresentem, não se pode sustentar que, sob o ponto de vista anatómico, o sexo tenha mudado.

Mais ainda. Como se demonstrou, haverá indivíduos mais anormais que antes. Realmente, enquanto antes da intervenção o contraste limitava-se à dissociação entre soma e psique, depois da intervenção isso fica mais complicado, por haver no mesmo soma um contraste entre os elementos de um sexo (genitais externos adaptados) e os do outro sexo (cromossómico e até hormonal). Tudo isso, para além da situação jurídica, não deixa de ter repercussão na vida do transexual. De facto, por meio de pesquisas realizadas, ficou claro que a intervenção cirúrgica nem sempre satisfaz às expectativas do transexual. Dificilmente se consegue a perfeita inserção do indivíduo no contexto social, sobretudo pela dificuldade que tem de resolver os problemas sexuais, uma vez que existe frequentemente a rejeição do parceiro pela sua situação, elemento este que cria ulteriores frustrações. E em alguns casos, vê-se que há reconsideração sobre a intervenção...

3. Intervenção cirúrgica nos casos de autêntico transexualismo

É o caso em que as dificuldades éticas são mais graves. Os que defendem a licitude da intervenção de adequação do sexo físico ao sexo psíquico fundamental apoiam suas razões nas seguintes motivações e situações de facto:

1. A situação psicológica é irreversível e, por isso, o que se tem de tentar é a terapia cirúrgica, i. é, a correcção física;

2. Deve-se optar pela procura da harmonia da pessoa, considerando-se essencial e prioritário a componente psicológica, a qual, neste caso, propende de maneira consciente e irreversível para a correcção do sexo físico. O princípio de totalidade deveria ser construído em função da componente psicológico e da opção psicológica;

3. A razão, não claramente professada, mas subentendida em todas as outras e predominante no momento cultural actual é a da reivindicação de liberdade em matéria de sexo, analogamente ao que acontece no caso do aborto, da esterilização, da manipulação genética e da fertilização in vitro: em todos esses casos, reivindica-se o domínio do indivíduo sobre a "própria" corporeidade e sobre a vida física em geral.

Em resposta a esses argumentos, seja dito:

a) A simples razão da irreversibilidade do mal-estar psíquico não dá sustentação à licitude da terapia cirúrgica.

Admitamos, por hipótese, que se trate de comprovada irreversibilidade. O princípio moral da "terapêutica" exige condições precisas para poder ser licitamente aplicado; estes são: que a intervenção tenha um bom percentual de sucesso, que a intervenção seja realmente terapêutica no sentido de ser dirigida ao bem de todo o físico, eliminando uma parte doente, que a intervenção seja o remédio para uma situação actual, de outro modo incurável, e respeite o bem superior e moral da pessoa. Ora, no nosso caso, estas condições não se verificam nem simultaneamente - como é moralmente exigido - nem individualmente.

É preciso lembrar que, do ponto de vista técnico, removedor-reconstrutivo, esse tratamento de "rectificação de sexo" no transexual é normalmente praticado através de várias fases sucessivas; antes de mais nada, procede-se a uma terapia hormonal que tem influência sobre alguns caracteres externos da sexualidade (configuração externa das mamas), a seguir se põe em prática uma psicoterapia que predisponha para a feminilização - caso mais frequente -acompanhando-a com a mudança dos hábitos do novo sexo, e enfim se pratica a intervenção removedora-reconstrutiva dos órgãos genitais externos. A intervenção tem um aparente sucesso no caso mais frequente da feminilização do transexual homem. Esta última fase comporta a mutilação dos genitais masculinos, a castração, a esterilização e a privação não só da função procriadora, mas até mesmo de uma verdadeira função copulativa.

Agora se entende que, como já ficou dito antes, a intervenção na parte física, para a finalidade de "mudança", não ajusta o sexo ao que é desejado; antes, introduz uma nova distonia no físico entre elementos cromossómico-gonádicos e órgãos externos; ficam estes totalmente sem inervação "procrioceptiva", permanecendo próteses artificiais e não órgãos de sentido e de expressão emotiva e funcional.

Nem se satisfaz o aspecto psicológico, como reconhecem todos, pois os distúrbios aumentam, e os indivíduos que estavam fixados numa solução do conflito, quando este não desaparece, quer porque a adequação física não é "sentida" como satisfatória, quer pela rejeição do eventual companheiro, muitas vezes acabam se suicidando.

Portanto, a intervenção cirúrgica não se justifica moralmente e é, por isso, ilícita.

b) Opção entre "sexo da mente" e "sexo do corpo". Além dos dados até aqui propostos, note-se o seguinte:

Na visão cristã, o corpo humano na sua objectiva conformação e significação de masculinidade e feminilidade exprime "objectivamente" a atitude de toda a pessoa e não apenas o seu aspecto fisicista provisório ou exterior. "Na visão cristã do homem reconhece-se uma especial função do corpo, pois este contribui para a revelação do sentido da vida e da vocação humana. A corporeidade é, de facto, o modo específico de existir e de operar próprio do espírito humano. Este significado é, em primeiro lugar, de natureza antropológica: 'o corpo revela o homem, exprime a pessoa' e é, por isso, a primeira mensagem de Deus ao próprio homem, como que uma espécie de 'sacramento primordial', entendido como um sinal que transmite com eficácia no mundo visível o mistério invisível escondido em Deus desde toda a eternidade". ([2]) Afirma a propósito João Paulo II: "Quando falamos do significado do corpo, fazemos referência em primeiro lugar à plena consciência do ser humano, mas entendemos também toda experiência efectiva do corpo em sua masculinidade-feminilidade e, em todo caso, a sua permanente predisposição para essa experiência" ([3]). O que o Santo Padre afirma coincide com o que é afirmado pelo Concílio sobre a natureza antropológica da corporeidade e da sexualidade e o torna mais explícito, como teremos ocasião de explicar mais adiante. Estas reflexões têm validade racional e objectiva mesmo no simples terreno filosófico.

c) A liberdade sexual como liberdade de escolha do sexo.

Não se pode ignorar que a pressão sociocultural é forte nesse sentido e, depois dos ensinamentos de Freud sobre o determinismo psicológico a propósito da sexualidade, depois das mensagens de Marcuse sobre a "liberalização do sexo" como pressuposto da revolução social e sobre a "sexualidade polimorfa", depois do clima de radicalismo a propósito de liberdade individual, depois de tudo isso, não é de causar espanto que as leis prossigam seu caminho de adequação aos impulsos de liberalização sem respeito à vida física, como aconteceu com o aborto, como está acontecendo com a esterilização.

Não nos deteremos nesse impulso cultural incentivado pelo hedonismo, por alguns estudos de sociólogos e de etólogos, impulso que poderia ser, por sua vez, um fato de difusão da patologia do transexual.

Com o que estamos dizendo, é lógico que não queremos insinuar uma atitude de rejeição diante da situação de sofrimento dessas pessoas, que devem, isso sim, ser ajudadas com métodos de psicoterapia e de apoio humano, como as outras pessoas que sofrem ou são deficientes, mas queremos apenas, talvez, deixar clara uma posição que lhes quer economizar ulterior sofrimento e julga não ser possível subverter a ordem ética da pessoa.

4. O Matrimónio dos transexuais

Nos casos de verdadeiro transexualismo, como consequência de tudo o que afirmamos a propósito da não-licitude da intervenção médico-cirúrgica para a mudança de sexo físico do transexual, acontece que o sexo modificado, posteriormente à intervenção, não é o verdadeiro sexo da pessoa. Além disso, nesses casos, a distonia entre psique e soma é tão forte e estruturada que a liberdade de decisão e, mais ainda, a harmonia entre sexualidade física, sexualidade psicológica e orientação comportamental ficam profundamente perturbadas.

Por isso não há dificuldade em se afirmar que o matrimónio, eventualmente exigido e celebrado depois de uma intervenção médico-cirúrgica, com um sexo que sob o ponto de vista físico é fictício e desfigurado, deve ser declarado arbitrário; tanto mais porque o distúrbio psicofísico deve ser considerado gravemente perturbador da liberdade de escolha e de consentimento. O caso não é muito diferente, a nosso ver, do de um homossexual que pedisse para se casar com uma pessoa do mesmo sexo.

O facto de o eventual parceiro estar a par da intervenção de modificação do sexo físico e ter aceitado esse tipo de união não muda o juízo moral objectivo, mas apenas exime de ulterior ilícito do dolo substancial.

 
Acrescento uma breve conclusão.
Do exposto resultam claramente, além de muitos outros aspectos:
1.                  A ilicitude de qualquer intervenção médico-cirúrgica para uma «mudança de sexo».
2.                 A evidente nulidade de qualquer matrimónio intentado por pessoas nestas circunstâncias, porque os órgãos modificados não passam de próteses artificiais e não órgãos de sentido e de expressão emotiva e funcional, constituindo, em termos canónicos, um evidente caso de impedimento de impotência antecedente e perpétuo.




[1] Elio Sgreccia, Manual de Bioética, 2 vols., tradução de Orlando Soares Moreira. - Ed. Loyola, São Paulo, 686 pp. e 455 pp. respectivamente.

[2] Congregação para a Educação Católica, Orientamenti educativi..., n. 22; JOÃO PAULO II, Audiência geral (12.09.1979), in Insegnamenti di Giovanni Paolo II, II, 2, p. 288; id., Audiência geral (20.02.1980), in Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1, p. 430.

[3] JOÃO PAULO II, Audiência geral (25.06.1980), in Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1, p. 1833.

 

domingo, abril 21, 2013

Pode ser Jesus a chamar


Um dia, Jesus andava a caminhar junto ao Templo de Jerusalém, no pórtico de Salomão, e foi rodeado por um grupo de homens. Recordemos o texto de S. João:

“Era inverno. Jesus passeava no templo, no pórtico de Salomão. Os judeus rodearam-No e perguntaram-Lhe: Até quando nos deixarás na incerteza? Se tu és o Cristo [isto é, o Messias], diz-nos claramente. Jesus respondeu-lhes: Eu vo-lo digo, mas não acreditais. As obras que faço em nome de meu Pai, estas dão testemunho de mim. Entretanto, não credes, porque não sois das minhas ovelhas” (João 10, 22-26).


Jerôme Nadal (ed.), Os Judeus rodeiam Jesus no Pórtico de Salomão (porm.)


Comenta Santo Agostinho: “Esses não procuravam a verdade, mas estavam a tramar uma cilada. Se era inverno e estavam cheios de frio, por que é que não faziam nada para se aproximarem daquele fogo divino? Aproximar-se significa acreditar. Quem crê, aproxima-se. Quem nega, afasta-se. A alma não se move com os pés, mas com o afecto do coração. Neles, tinha-se apagado totalmente o fogo da caridade, e ardia somente o desejo de fazer mal. Estavam muito distantes embora estivessem ali. Não se aproximavam pela fé, mas estavam à sua volta, perseguindo-O. Queriam ouvir dizer do Senhor: E sou o Messias. Mas do Messias tinham uma opinião somente humana” (Homilia 48 sobre o Evangelho de S. João, n. 3)

Jesus entristeceu-Se profundamente pela sua dureza de coração e pela sua falta de fé, e disse-lhes: “Vós não acreditais, porque não sois das minhas ovelhas” (João 10, 26).

No entanto, Jesus sabia que havia outros que ouviam com amor as suas palavras, como as ovelhas que reconhecem com alegria a voz do pastor, e vão com ele para toda a parte. E sobre estes, disse: “As minhas ovelhas escutam a minha voz. Eu conheço as minhas ovelhas, e elas seguem-Me. Eu dou-lhes a vida eterna” (João 10, 27-28).

Os que hoje são pastores em nome de Jesus –o Papa, os Bispos e os sacerdotes – é isto que têm de oferecer às suas ovelhas: a vida eterna. É para aí que as têm de encaminhar: para vida eterna. Tudo o resto é secundário. Tudo o resto é relativo. Volto ao comentário de Santo Agostinho: “Aqui está a pastagem. (…) A vida eterna é apresentada como uma boa pastagem. A erva não seca, onde tudo está sempre verdejante e cheio de vida. Nessa pastagem encontra-se somente a vida (ibid., n. 5).

Falando de novo das suas ovelhas, assegura Jesus: “E elas jamais hão-de perecer” (João 10, 28), subentendendo-se, segundo Santo Agostinho, que, aos que O rodeavam, Jesus quer advertir: “E vós perecereis eternamente, porque não sois das minhas ovelhas(ibid., n. 6).

Jesus acrescenta ainda, falando das suas ovelhas: “E ninguém as arrebatará da minha mão” (João 10, 28). É evidente que sempre houve e há, também hoje, muitas, dificuldades, perseguições, tentações de todo o tipo, que nos poderiam afastar de Jesus, mas nunca ninguém o conseguirá, se nós não consentirmos, porque foi o Pai que nos deu a Jesus, “e ninguém pode arrebatar nada da mão do Pai” (João 10, 29).  

Isto implica que podemos viver a nossa fé com a consciência dos muitos perigos que a rodeiam, mas também com grande confiança: fomos dados a Jesus pelo Pai, e por isso acreditamos que ninguém nos pode roubar da mão de Jesus, ninguém nos pode arrebatar da mão do Pai.

Pergunta Agostinho: “Que pode fazer o lobo? Que podem fazer o ladrão e o salteador? (...) Destas ovelhas, o lobo não pode arrebatar nenhuma, nem o ladrão roubar, nem o salteador matar. Aquele que sabe o quanto pagou por elas, está seguro do seu número” (ibid., n. 6).

Este episódio que teve lugar no Templo, no pórtico de Salomão, termina de uma maneira dramática. Jesus disse-lhes claramente: “Eu e o Pai somos um” (João 10, 30). Então “os Judeus pegaram de novo em pedras para o apedrejar” (João 10, 31). Jesus defende-Se, argumentando que as suas obras revelam que está unido ao Pai: “o Pai está em mim e eu no Pai” (João 10, 38). “Procuraram então prendê-lo, mas Ele escapou-Se das suas mãos” (João 10, 39). Foi a última vez que esteve no Templo. Não mais lá voltou. Nessa altura, foi para além do Jordão, e muitos acreditaram n’Ele (João 10, 42).

Quanto a nós, sabemos bem que tudo começa pela escuta da voz do Bom Pastor: “As minhas ovelhas escutam a minha voz” Depois é que vem o conhecimento e o seguimento: “Eu conheço as minhas ovelhas, e elas seguem-Me”. É necessário dispormo-nos a escutar, baixar o ruído à nossa volta, fazer silêncio para ouvir, procurar captar e entender, e depois seguir o Pastor.

Estas palavras de Jesus, no entanto, põem-nos uma questão: como podemos escutar a sua voz?
Escutamos Jesus, principalmente, na leitura do Santo Evangelho, na nossa oração pessoal e na Liturgia da Igreja. Todos temos a experiência de que é assim.

No entanto, também sabemos que nunca ninguém ouviu Jesus na intimidade do seu coração, sem que primeiro, antes, alguém lhe tenha já feito pelo menos um primeiro anúncio de Jesus. Não se descobre Jesus por simples meditação, mas pelo testemunho de um outro cristão, que já vive a graça de fé. Sem haver um primeiro anúncio de Jesus Cristo, feito por um outro cristão, será impossível conhecê-Lo e amá-Lo.

Nos Actos dos Apóstolos, lemos como Paulo e Barnabé anunciavam Jesus Cristo em várias cidades da Ásia Menor. Numa dessas cidades, Antioquia da Pisídia, (na actual Turquia), houve muitos Judeus e prosélitos, isto é, convertidos ao judaísmo, que, após a pregação de S. Paulo, passaram a seguir os dois apóstolos, e “no sábado seguinte, reuniu-se quase toda a cidade para ouvir a palavra do Senhor” (Actos 13, 44). Como era de prever, surgiram invejas e blasfémias por parte dos Judeus, e então Paulo e Barnabé perceberam que deviam voltar-se especialmente para os gentios. Sentiram que era necessário fazê-lo, e era isso que Deus queria. Naturalmente, quando ouviram isto, “os gentios encheram-se de alegria, e glorificavam a palavra do Senhor” (Actos 13, 48). Houve grande entusiasmo e muitas conversões! É claro que também houve logo perseguições, Paulo e Barnabé foram expulsos da cidade, e tiveram que seguir para uma cidade vizinha, Icónio, mas não se afligiram por causa disso, e “os discípulos estavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (Actos 13, 52).

Qualquer cristão pode falar de Jesus a outra pessoa? Sim, este anúncio de Jesus, que conduz á fé, cada cristão pode fazê-lo, com toda a naturalidade, em todas as circunstâncias, a qualquer outra pessoa, mas há alguns, por vontade de Deus, como S. Paulo e os outros Apóstolos, que são especialmente consagrados para o fazerem. E é necessário que seja assim. Faz parte da dinâmica da vida cristã, que alguns dediquem a sua vida ao anúncio de Jesus Cristo e ao serviço dos seus irmãos. Como escreveu o Beato João Paulo II na sua mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações de 2004, “trata-se de homens e mulheres que aceitam colocar a existência totalmente ao serviço do seu Reino”.

Não é uma simples decisão sua, mas é Deus que os chama, na Igreja, para o bem de todos. E é por isso que hoje todos nos unimos em oração ardente pelas vocações de especial entrega a Deus, e em particular pelas vocações ao sacerdócio, à vida consagrada e ao serviço missionário. É necessário pedir confiadamente a Deus estas vocações. João Paulo II dizia que é preciso implorar este dom “com insistência e humildade confiante”.

Nas paróquias e nas famílias esta oração deve ser constante. Além da oração, podemos oferecer com amor sofrimentos e sacrifícios pelas vocações. O Beato João Paulo II, que conhecia por experiência, sobretudo na fase final da sua vida, o que é o doença e o sofrimento que a acompanha, lembrava que “muitos doentes, em todas as partes do mundo, unem os seus sofrimentos à Cruz de Jesus, para implorar vocações santas!” E depois, falando de si próprio, dizia com gratidão: “Eles acompanham-me espiritualmente também a mim, no ministério de Pedro que Deus me confiou, e oferecem à causa do Evangelho uma contribuição inestimável, embora muitas vezes de modo totalmente oculto”. Que podemos também nós oferecer, para que haja mais vocações sacerdotais e outras vocações de total dedicação ao anúncio de Jesus Cristo?

Aqueles que Jesus chama são pessoas normais, habitualmente jovens, iguais aos outros jovens da sua idade, rapazes ou raparigas. E às vezes acontece, quando menos se espera, que se começa a ouvir um apelo especial. É Jesus que chama. Em alguns casos, torna-se logo uma evidência. Noutros, talvez mais frequentes, não se tem logo a certeza. E então começa um caminho, que pode ser longo, de procura e discernimento.

Se alguém sentir esse apelo especial de Jesus, não feche o coração. Procure ouvir melhor. Pode ser Jesus a chamar. E, se for Jesus, um dia ouvirá nitidamente. O Bom Pastor fala claramente. A sua voz é inconfundível. E aquilo que um dia pode ter sido uma surpresa, então será uma certeza. Mas é preciso que as vozes do mundo não se sobreponham à voz do Senhor.

sábado, abril 13, 2013

Uma tarefa de amor


Uma tarefa de amor

O Evangelho de S. João, no seu último capítulo, diz-nos que Jesus ressuscitado confiou a Pedro uma missão. É a missão mais extraordinária e de maior responsabilidade que alguma vez foi confiada a um ser humano. “Apascenta os meus cordeiros… Apascenta as minhas ovelhas” (João 21, 15-17). Pedro desempenhou-a até ao dia em que se cumpriu este anúncio de Jesus: “… outro te cingirá e te levará para onde não queres” (João 21, 18), isto é, até ao dia da sua morte. Pedro morreu em Roma, no ano 64, crucificado como Jesus. Uma fonte muito antiga diz-nos que Pedro, por humildade, pediu para ser crucificado de cabeça para baixo. Pedro deu a vida, como Jesus, mas a sua missão prosseguiu naqueles que lhe sucederam, até hoje, até ao Papa Francisco, e assim continuará a ser, até ao fim dos tempos.

Pedro recebeu de Jesus uma responsabilidade maior que ele, maior que o seu coração. O mesmo aconteceu com o conjunto dos Apóstolos. Jesus confiou-lhes o mundo inteiro, todos os homens de todos os tempos. Quando o Papa, sucessor de Pedro, avalia a grandeza divina da missão que Jesus Cristo lhe confiou; ou quando um bispo, sucessor dos Apóstolos, sente até onde chega a sua missão pastoral; ou até quando um sacerdote toma consciência de que Jesus lhe confiou os seus irmãos, como pastor das suas almas, acredito que só pode haver um sentimento: é uma missão maior que o coração humano. Como é possível aceitá-la, como é possível cumpri-la?

Se fosse uma simples tarefa humana, seria impossível. Ou então, só poderia ser realizada por pessoas muito excepcionais. Mas Jesus quis que fosse realizada por pessoas normais, como Pedro, pescador da Galileia. É possível? Sim, mas com uma condição: que o seu coração seja engrandecido pelo amor a Jesus. Por isso, Jesus ressuscitado perguntou a Pedro, não apenas uma, mas três vezes: “Simão, filho de João, tu amas-Me?” Inicialmente, e porque a missão de Pedro é única e singular na Igreja, Jesus perguntou-lhe: “Tu amas-Me mais do que estes?” Mas depois, nas duas vezes seguintes, Jesus perguntou apenas: “Tu amas-Me?” E Pedro, com absoluta transparência e sinceridade, respondeu, sem esconder a tristeza pelo seu fraco amor passado, mas agora com uma força nova, e confiando plenamente em Jesus: “Senhor, Tu sabes tudo, bem sabes que Te amo”.

A missão que Jesus Cristo confiou a S. Pedro, bem como aos Apóstolos e aos seus sucessores e colaboradores, não é uma simples tarefa humana, é um «amoris officium», um «ofício de amor», como diz Santo Agostinho: “Sit amoris officium pascere dominicum gregem” (“Que seja uma tarefa e um dever de amor apascentar o rebanho do Senhor”: In Iohannis Evangelium Tractatus 123,5).

Só este amor a Cristo é que permite cumpri-la. Sem ele, seria impossível! No entanto, este amor a Cristo, que permite a alguns homens dedicar a sua vida ao serviço da fé dos seus irmãos, é Cristo que o dá. É Ele que chama, é Ele que envia, é Ele que confia àqueles que entende, esta missão e a sua imensa responsabilidade.

Na Igreja, a função pastoral foi sempre uma «tarefa de amor». É por isso que é normal e muito conveniente que aqueles que a exercem como bispos ou sacerdotes vivam a sua vocação na radicalidade interior de uma entrega total. Os sacerdotes não se casam, não porque não admirem o matrimónio ou não respeitem os casais que vivem em matrimónio, muito pelo contrário, mas porque a sua vida tem a dinâmica de uma entrega total, por amor, a Jesus Cristo e à Igreja. Assim, o seu coração não se estreita, mas engrandece-se, e torna-se capaz de estar atento a cada um, e de servir cada um, segundo as suas circunstâncias particulares e as exigências pessoais do seu caminho para Deus.

Pode objectar-se que também há pessoas que vivem na sua profissão muito dedicadas aos outros, e se casam normalmente: por que não os sacerdotes? Sim, é verdade, mas o celibato dos sacerdotes é o sinal de uma escolha e de uma consagração feita por Jesus a alguns dos seus irmãos ao serviço de todos, e é o sinal desta entrega total, em resposta ao chamamento inteiramente livre e gratuito de Jesus.

Que ninguém tenha medo, se for chamado por Jesus Cristo por este caminho! Como é um dom do Coração de Jesus, é preciso pedir-Lhe que o dê! Na sua Carta aos sacerdotes, da Quinta-Feira Santa de 2004, escreveu o Papa Beato João Paulo II: “Na verdade, as vocações são um dom de Deus, que se devem suplicar incessantemente. (…) A oração, enriquecida pela oferta silenciosa do sofrimento, é o primeiro e mais eficaz meio da pastoral vocacional. Rezar é manter fixo o olhar em Cristo, confiando que d’Ele mesmo, único sacerdote, e da sua divina oblação, brotam abundantemente, pela acção do Espírito Santo, os germes de vocação necessários em cada época para a vida e a missão da Igreja” (n. 5).

No final do diálogo que o Evangelho de S. João descreve, Jesus disse a Pedro, simplesmente: “Tu segue-Me” (João 21, 22) (em latim: “Tu me sequere”). É tão simples e tão fácil como isto: seguir Jesus, ir com Ele, nunca se afastar d’Ele, para dar a vida por todos, como Jesus, e a todos e cada um ajudar a crescer no amor a Deus e na santidade da vida cristã.

Na Igreja, todos vivemos a alegria da fé e o assombro de reconhecer a presença de Jesus ressuscitado no meio de nós. Precisamos de pedir para todos esta capacidade de reconhecimento imediato de Jesus na nossa vida, como o discípulo "a quem Jesus amava", que exclamou com grande alegria: “É o Senhor” (João 21, 7). E pedimos também o entusiasmo e a prontidão de Simão Pedro: “quando ouviu dizer que era o Senhor” (João 21, 7), lançou-se ao mar, para se encontrar com Jesus quanto antes, porque tinha um grande desejo de estar com Jesus, e nunca se separar d’Ele.

Jerôme Nadal (ed.), Aparição de Cristo junto ao mar de Tiberíades

O segredo da vida da Igreja é realizar fielmente, em cada momento, o que Jesus nos pede. Naquela noite, os discípulos tinham ido pescar, mas “não apanharam nada” (João 21, 3). Mas, “ao romper da manhã”, o próprio Jesus ressuscitado, ainda antes de ser reconhecido, disse aos discípulos: “«Lançai a rede para a direita do barco e encontrareis». Eles lançaram a rede, e já mal a podiam arrastar por causa da abundância de peixes” (João 21, 4-6). Se formos dóceis ao que Jesus nos disser, pela voz da Igreja, na direcção espiritual ou no silêncio da nossa oração, seremos surpreendidos pela fecundidade extraordinária dos nossos esforços.
Naquele dia, Jesus preparou com grande carinho uma refeição aos seus discípulos. Hoje, com infinito amor, alimenta-nos com o Pão santíssimo da Eucaristia. Que nenhuma dificuldade ou incompreensão silencie o nosso anúncio de Jesus Cristo, e que as nossas vozes se juntem ao louvor tributado pelo universo inteiro, pelos anjos e por todos os santos “Àquele que está sentado no Trono, e ao Cordeiro”, como diz o Livro do Apocalipse. A Ele “o louvor e a honra, a glória e o poder, pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 5, 13).