quarta-feira, fevereiro 10, 2021

A eutanásia é uma prática nazi?

    

A eutanásia é uma prática nazi?


Os Estados deveriam legislar de modo coerente com a consideração da vida humana como intangível e inviolável


Não é raro ler ou ouvir dizer que a eutanásia, que o Parlamento português recentemente despenalizou, é uma prática nazi.

Não há dúvida de que no regime nazi aconteceu o primeiro programa político de eutanásia legalizado, estudado e posto em pratica. As investigações que foram anexadas às atas do processo de Nuremberga, comprovam que, entre 1939 e 1941, foram eliminadas mais de 70 000 vidas, consideradas como “existências privadas de valor vital”.

No entanto, os argumentos defendidos pelos atuais defensores da eutanásia não são coincidentes com os do regime nazi. E, por isso, não parece poder dizer-se que a eutanásia que hoje se pratica, ou se pretende praticar, tenha uma matriz nazi. 

As motivações defendidas hoje são completamente diferentes, e podem resumir-se às seguintes: o valor da minha vida depende só de mim e da minha vontade. Se já não conseguir aguentar esta vida, em razão de um sofrimento físico ou psicológico insuportável, peço que me tirem a vida. É um direito que não me pode ser negado. Nenhuma lei se pode opor à minha vontade de morrer. Quero livremente que me tirem a vida

Na base e por detrás das motivações pessoais, o mais decisivo neste modo de pedir ajuda para morrer, é a perda do valor “objetivo” da pessoa, que é o verdadeiro fundamento das leis que despenalizam a eutanásia. Na defesa e na legalização da eutanásia materializa-se o triunfo absoluto e definitivo do individualismo e do subjetivismo. 

O individualismo e o subjetivismo, há muito dominantes nas sociedades ocidentais, não poderiam deixar de conduzir, logicamente, não só à defesa do direito à eutanásia como também à sua despenalização e consequente legalização, como recentemente aconteceu entre nós e num pequeno número de outros países.

Diante desta pretensão, que deverão fazer as sociedades?

Os legisladores que fazem e aprovam as leis, ou os Chefes de Estado que as promulgam, têm naturalmente o dever de defender as sociedades do individualismo exacerbado, e tudo fazer para que seja reconhecido o valor objetivo e não apenas subjetivo da pessoa, o que deverá levantar à volta da vida humana uma barreira de absoluta inviolabilidade. Assim o dispõe, como se sabe, a Constituição da República Portuguesa, que, no seu artigo 24º, diz expressamente que "a vida humana é inviolável".

A introdução de uma exceção de eutanásia na lei não pode ser feita sem prejudicar gravemente o direito à vida, que é o primeiro dos “direitos do homem”. “O Código Penal tem uma função expressiva, e deve a esse título traduzir os valores de uma sociedade, que está ao seu nível mais alto quando se trata da vida e da morte”, como escreveu Robert Badinter, famoso jurista francês, conhecido pela sua luta pela abolição da pena de morte.  

E por isso, os Estados, como Portugal, obrigados pela sua própria Constituição, se quiserem ser coerentes com a letra e o espírito da sua Lei Fundamental, deverão impedir e continuar a criminalizar a prática da eutanásia, porque, em razão da inviolabilidade da vida humana inocente, a ninguém pode ser dado o direito de provocar a extinção da vida de outrem, mesmo a seu pedido.




As culturas em que, por influencia do Cristianismo, se reconheceu, filosófica e juridicamente, o valor da pessoa, consideraram sempre o suicídio e particularmente a eutanásia não só como uma grave ofensa a Deus, Criador do homem, mas também como um trágico abuso de poder, um poder usurpado, e que por isso, eticamente, e também juridicamente, cada homem tem o dever de renunciar a exercer sobre a sua própria vida, e, muito mais ainda, sobre a vida de outrem, o que se aplica a todos aqueles, nomeadamente médicos, que provocam a morte por meio da eutanásia.

Ao manter a criminalização da eutanásia, os Estados estarão, em primeiro lugar, a ser coerentes com o que promulgaram nas suas Leis Fundamentais, assumindo o seu dever de defender a vida humana, desde a conceção – o que tragicamente já não acontece na maioria dos países – até ao seu fim natural.

Ao fazê-lo, isto é, ao legislar de modo coerente com a consideração da vida como intangível e inviolável, estarão também a assumir a defesa de alguns dos mais frágeis entre os seres humanos, sobretudo das crianças gravemente enfermas e incuráveis, dos idosos profundamente dependentes, dos doentes terminais, dos deficientes profundos, dos que perderam a capacidade de comunicar ou até perderam a consciência de si mesmos, e que, por isso, correm o gravíssimo risco de serem considerados como indignos de viver, e, portanto, perigosamente sujeitos, como já vemos suceder em alguns países, a uma pena de morte implacável, mesmo que se lhe dê o eufemístico de nome de eutanásia, ou morte sem dor nem sofrimento.

Aberta a porta da eutanásia, esta extensão da sua prática aos que tenham a infelicidade de possuir ou exibir “existências privadas de valor vital”, será inevitável. 

E não será preciso muito tempo para disso termos a prova. Dolorosamente. 

Mas afinal, será isto tão diferente da eutanásia que se praticou no regime nazi?


Cón. José Manuel dos Santos Ferreira