quinta-feira, janeiro 31, 2013

Da ressurreição aos Evangelhos da Infância. Resposta a Anselmo Borges

1. 
Num artigo publicado no Diário de Notícias, que pode ser lido aqui, a propósito do livro de Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré. A infância de Jesus, (Lisboa, Principia, 2012), o Pe. Anselmo Borges comenta diversos textos evangélicos relativos à infância de Jesus, não vendo neles, segundo uma expressão do jesuíta Juan Masiá, que cita, mais do que “um símbolo iluminador do que acontece em todo o nascimento”.
 


Parece pouco. Muito pouco. Mas já voltaremos a este assunto.
 
Porque, primeiro, Anselmo Borges começa por falar da morte de Jesus e do que se lhe seguiu, e aqui é igualmente acentuada a sua visão redutora, quando escreve: “Depois da crucifixão, fazendo o cômputo todo da sua existência, incluindo o modo como morreu - para dar testemunho do amor e da verdade do que moveu a sua vida: Deus que é amor -, os discípulos acreditaram que ele está vivo em Deus.
 
Significativamente, ao falar do que se seguiu à morte de Jesus na cruz, o Pe. Anselmo Borges não usa nunca a palavra “ressurreição”, porque, se o fizesse, teria de reconhecer que os discípulos (e os cristãos de todos os tempos) não acreditaram apenas que Jesus “está vivo em Deus”, mas sempre acreditaram e anunciaram que, se Jesus “está vivo em Deus”, como de facto crêem, é porque “ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai” (Credo de Niceia-Constantinopla).
 
Ao dizer somente que, após a morte de Jesus, “os discípulos acreditaram que ele está vivo em Deus”, Anselmo Borges propõe uma visão redutora da fé da Igreja, o que é, no mínimo, estranho para um padre católico.
 
Mas isso é um problema dele. (E talvez não só dele).
 
O que Anselmo Borges não pode fazer, no entanto, por amor à verdade e por respeito pelos textos do Novo Testamento, é afirmar ou insinuar que os autores humanos destes textos também achavam, como ele, que, após a morte de Jesus, os discípulos acreditaram apenas que Jesus estava vivo em Deus.
 
Os textos do Novo Testamento que se referem ao que aconteceu a Jesus depois da morte na cruz, não querem nunca dizer apenas que, agora, Jesus “está vivo em Deus”.
 
Todos esses textos, na sua diversidade, na sua nem sempre fácil complementaridade, pretendem sempre dizer muito mais. Querem sempre expressamente e intencionalmente dizer muito mais. Não somos nós, leitores tardios, que vemos esse «mais» nos textos. São eles que o dizem, são eles que o proclamam aos quatro ventos.
 
Os seus autores estarão enganados? Terão sido vítimas de uma ilusão? Houve alguns que o pensaram, no passado, a meu ver sem nenhum fundamento.
 
Mas, mesmo que se tivessem enganado, mesmo que tivessem sido vítimas de uma ilusão (o que estou firmemente convencido de que não aconteceu), uma coisa é certa: todos afirmam, na grande variedade dos seus matizes, ou mesmo sob expressões diversas, que Jesus “ressuscitou verdadeiramente”, como ouvem dizer, segundo S. Lucas, os dois discípulos de Emaús, ao regressar ao local onde “acharam reunidos os Onze e os que com eles estavam. Todos diziam: «O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão»” (Lucas 24, 33-34).

S. Paulo é muito discreto em relação ao seu encontro com Cristo ressuscitado, esse acontecimento decisivo que teve lugar alguns anos mais tarde, e que o transformou de perseguidor em anunciador, e apenas alude sobriamente a esse acontecimento numa passagem da Carta aos Gálatas (1, 13-20), que conclui com esta solene afirmação: “Acerca do que vos escrevo – Deus é minha testemunha – não estou a mentir” (Gálatas 1, 20).

Mas há um passo da 1ª Carta aos Coríntios (escrita cerca do ano 55), em que S. Paulo afirma, sob a forma de pergunta, o essencial desse acontecimento que tudo mudou na sua vida: “ (…) Não vi eu a Jesus Cristo Senhor nosso?” (1 Coríntios 9, 1)

Na verdade, Saulo de Tarso viu Jesus Cristo, não “vivo em Deus”, mas diante de si. E viu-O por uma única razão: porque Jesus “ressuscitou verdadeiramente”.





Cristo ressuscitou. Christos Anesti!

Por essa mesma e única razão, S. João põe na boca dos discípulos este testemunho dirigido a Tomé, após a primeira aparição do Ressuscitado: “Vimos o Senhor” (João 20, 29).

Pelas razões que entender ou por simples preconceito positivista, Anselmo Borges poderá duvidar da credibilidade destes relatos, e é talvez por isso que não os cita nunca, mas não pode negar que é este o testemunho ou a mensagem que todos os textos do Novo Testamento que se referem ao que aconteceu depois da morte de Jesus, querem transmitir, como transparece, com deslumbrante limpidez e inequívoca fidedignidade histórica nesta passagem da 1ª Carta aos Coríntios:
 
“Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas, e em seguida aos Doze. Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior parte ainda vive (e alguns já morreram); depois apareceu a Tiago, em seguida a todos os apóstolos. E, por último de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo. Porque eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça que Ele me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo. Portanto, seja eu ou sejam eles, assim pregamos, e assim crestes (1 Coríntios 15, 3- 11).
2.
Relativamente aos Evangelhos da Infância, Anselmo Borges submete-se ao diktat, (que é um verdadeiro dogma exegético), de que que os Evangelhos de Mateus e Lucas utilizam “um género literário próprio, o midraxe, que não quer narrar factos, mas ler teologicamente”.
Mas será que é isto que Mateus e Lucas fazem? Só por preconceito é que se poderá dizê-lo.
S. Mateus caracteriza expressamente muitas partes da sua narrativa como estritamente históricas, utilizando repetidamente as formas verbais «acontecer», «cumprir», ou outras semelhantes.
É o caso das passagens seguintes: 1, 18.22; 2, 15.17.23; 4, 14; 8, 17; 12, 17; 13, 35; 21, 4: 26, 56; 27, 9; 28, 15. E nunca introduz de modo diferente nenhum outro trecho em que vai relatar eventos ou acontecimentos factuais, pelo que podemos concluir que Mateus pretendia que o seu Evangelho tivesse um carácter estritamente histórico (Cf. J. W. SCOTT, “Matthew’s intention to write history”, Westminster Theological Journal 47 (1985) 68-81, disponível aqui).
É inegável, portanto, que Mateus quer narrar factos. Um dos pioneiros da moderna «crítica da redacção», o teólogo e exegeta evangélico Willi Marxsen, declara que “Mateus escreve como historiador, como as suas citações do Antigo Testamento em particular demonstram” (Introduction to the New Testament, Oxford, Blackwell, 1968, p. 157).
S. Lucas, por sua vez, teve o cuidado de comunicar a “Teófilo” a sua preocupação de integrar numa narração cuidada e ordenada os numerosos testemunhos que ouviu ou recolheu, incorporando também no seu Evangelho muitos outros textos dispersos ou relatos breves que já existiam (cf. Lucas 1, 1-4).  
Bento XVI observa no entanto que, na base dos relatos de S. Lucas referentes à infância de Jesus, parece estar um texto hebraico. Por isso, houve quem tentasse compreender os dois primeiros capítulos deste Evangelho “a partir de um género literário antigo, designando-os como um «midraxe hagádico», isto é, uma interpretação da Sagrada Escritura através de narrações”. A semelhança literária é inegável; apesar disso, conclui Bento XVI, “é claro que a narrativa de Lucas da infância não se situa no antigo judaísmo, mas no cristianismo primitivo” (J. RATZINGER / BENTO XVI, A infância de Jesus, p. 20).
Que significa esta afirmação? Significa que S. Lucas não pretende «interpretar» mas anunciar o acontecimento de Cristo, na sua facticidade e na sua novidade irredutível aos antigos relatos, embora estes, que têm no mistério de Cristo o seu cumprimento, o possam, por isso mesmo, iluminar e ajudar a compreender.
Numerosos episódios bíblicos e antigas profecias que ficaram como que suspensas no tempo, como palavas “à espera” (cf. ibid., p. 46), isto é, à espera de uma realização definitiva, agora cumprem-se em Jesus.
É o que diz ainda Bento XVI:  
“A história aqui narrada [nos Evangelhos de Mateus e Lucas] não é simplesmente uma ilustração das palavras antigas, mas a realidade que as palavras aguardavam. Esta, nas palavras, por si sós, não era reconhecível, mas as palavras alcançam o seu significado pleno através do evento em que as mesmas se tornam realidade” (p. 20).
Por isso, nos Evangelhos não temos histórias, mas história, em que as antigas profecias encontram o seu cumprimento:
“Resumindo, Mateus e Lucas – cada um à sua maneira – queriam, não tanto narrar «histórias», mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada" (J. RATZINGER / BENTO XVI, A infância de Jesus, p. 21).
Sendo bem claro, portanto, que os Evangelistas não «inventaram» estas «histórias», mas quiseram escrever «história», qual é a mensagem essencial que esta «história» continua hoje a transmitir-nos?
 
3.
Tanto o Evangelho de S. Lucas como o de S. Mateus, pretendem transmitir esta mensagem: o Filho de Deus, Jesus Cristo, foi gerado no seio de Maria pelo poder de Deus.
Os Evangelhos de S. Mateus e S. Lucas, cada um a seu modo, anunciam que Jesus foi gerado e nasceu por puro dom de Deus, que Maria acolheu no seu coração e em todo o seu ser. Jesus não foi gerado por um homem, mas pelo poder de Deus, e foi acolhido, de um modo livre e consciente, pela pura disponibilidade virginal de Maria.
Não é por acaso que S. Lucas inicia assim o seu relato do anúncio do Anjo a Maria, apresentando-a repetidamente como a Virgem: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de David, e o nome da virgem era Maria” (1, 26-27).
Este anúncio é uma surpresa divina. É um dado inteiramente novo, que se impõe à fé, e que os cristãos acolheram desde o início com imensa alegria e admiração. “Desde as primeiras formulações da fé, a Igreja confessou que Jesus foi concebido unicamente pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, afirmando igualmente o aspecto corporal deste acontecimento” (Catecismo da Igreja Católica, n. 496).
Os Evangelhos entendem a concepção de Jesus como uma obra divina, que ultrapassa toda a compreensão e possibilidade humanas. “O que nela se gerou é fruto do Espírito Santo”, diz o Anjo a José, a respeito de Maria, sua esposa (Mateus 1, 20).
De realçar que no livro A infância de Jesus, Bento XVI não foge à pergunta decisiva: 
“O que os dois evangelistas Mateus e Lucas, de forma diferente e com base em tradições diversas, nos referem sobre a concepção de Jesus por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, é um acontecimento histórico real, ou é uma lenda piedosa, que, a seu modo, quer exprimir e interpretar o mistério de Jesus?” (p. 47).
E responde que nem nas narrativas sobre a geração e o nascimento dos faraós egípcios, nem nos textos provenientes do ambiente greco-romano se pode falar de verdadeiros paralelos. Conclui então:
“As narrações em Mateus e Lucas não são formas mais desenvolvidas de mitos. Segundo a sua noção de fundo, estão solidamente colocadas na tradição bíblica de Deus Criador e Redentor. Mas, quanto ao seu conteúdo concreto, provêm de tradição familiar, são uma tradição transmitida que conserva o sucedido” (p. 48).
 
 

Theotokos Aeiparthenos, A Eleusa Theotokos de Tolga  (séc. XIII)
  
4.
Mas porquê a concepção virginal de Jesus no seio de Maria? Por que motivo quis Deus, segundo S. Mateus e S. Lucas, que o seu Filho se fizesse homem deste modo, e não como todos os outros seres humanos, que vêm ao mundo como fruto da doação espiritual e física dos seus pais?
Por esta razão: porque o nascimento do Filho de Deus não é uma decisão humana, mas o resultado de uma decisão inteiramente gratuita e misericordiosa de Deus. “A virgindade de Maria manifesta a iniciativa absoluta de Deus na Encarnação. Jesus só tem Deus por Pai” (Catecismo da Igreja Católica, n. 503).
Jesus não podia ser gerado como os outros seres humanos, porque Ele não é um simples homem, mas o próprio Deus feito homem.
A humanidade de Jesus foi criada pelo poder de Deus no seio de Maria. A virgindade de Maria e a concepção virginal de Jesus são o sinal do poder de Deus, que faz acontecer a Encarnação do Filho unigénito do Pai.
Além disso, “Jesus é concebido pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, porque Ele é o Novo Adão, o Homem Novo, que inaugura a criação nova” (Catecismo da Igreja Católica, n. 504).
A vida de cada ser humano é sempre um mistério admirável, mas não é isso que os Evangelhos pretendem primariamente comunicar, ao contrário do que diz Anselmo Borges. A sua mensagem bem clara é que Jesus não é apenas mais um, entre tantos milhões de seres humanos, com toda a dignidade própria da condição humana e também com o peso de tantas misérias que se transmitem de geração em geração, mas um começo inteiramente novo.
No entanto, Jesus só pode ser o Homem Novo, porque é “fruto do Espírito Santo” (Mateus 1, 20).
Por conseguinte, o que dizemos no Credo – «Creio em Jesus Cristo, seu [de Deus] único Filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria – é mesmo verdade?
“A resposta, sem qualquer hesitação, é sim” – afirma Bento XVI – que cita o teólogo suíço Reformado Karl Barth, para assinalar que há dois pontos na história de Jesus em que a acção de Deus intervém no mundo material: no parto da Virgem e na ressurreição do sepulcro:
«Karl Barth fez notar que, na história de Jesus, há dois pontos nos quais o agir de Deus intervém directamente no mundo material: o seu nascimento da Virgem e a ressurreição do sepulcro, de onde Jesus saiu e não sofreu a corrupção. (…) Por isso, estes dois pontos – o parto virginal e a ressurreição real do túmulo – são verdadeiro critério da fé. Se Deus não tem poder também sobre a matéria, então Ele não é Deus. Mas Ele possui esse poder e, com a concepção e a ressurreição de Jesus Cristo, inaugurou uma nova criação; assim, enquanto Criador, Ele é também o nosso Redentor. Por isso, a concepção e o nascimento de Jesus da Virgem Maria são elementos fundamentais da nossa fé e um luminoso sinal de esperança» (p. 51-52).
Conclusão
Compreende-se assim facilmente que, ao não aceitar todo o conteúdo neotestamentário da ressurreição de Jesus – ou ao dilui-la de tal modo que fica equiparada a uma simples sobrevivência em Deus, que não se chega a saber se é pessoal, se simplesmente virtual – Anselmo Borges negue também a concepção virginal de Jesus Cristo e as própria virgindade de Maria, e esvazie completamente a densa mensagem dos Evangelhos da Infância, equiparando-a a uma simples exaltação da dignidade humana.
É um lamentável empobrecimento, que esvazia e destrói a fé cristã.
Não menos lamentável, porém, é verificar que a sua negação não decorre da compreensão das Escrituras ou de uma límpida reflexão teológica, mas do puro preconceito, que é o maior inimigo, não só da fé, mas também da razão. 
José Manuel dos Santos Ferreira
 




 

domingo, janeiro 27, 2013

Jesus não andou à procura da verdade


Qual terá sido a emoção de Teófilo, ao ler pela primeira vez o Evangelho que S. Lucas escreveu, e lhe enviou? Teófilo já era cristão, já tinha sido instruído na fé. Mas agora podia ler o relato da vida, dos ensinamentos e dos milagres de Jesus, numa narração cuidada e ordenada, em que S. Lucas, inspirado pelo Espírito Santo, recolheu numerosos testemunhos que ouviu, e integrou muitos outros textos dispersos ou relatos breves que já existiam. E assim nasceu este Evangelho, que S. Lucas dedica a Teófilo, (nome que significa: «aquele que ama a Deus»), a quem o envia com muita amizade, e a quem explica por que o faz: “para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado” (Lucas 1, 1-4).

Também nós precisamos de ter este “conhecimento seguro” do anúncio de Jesus que nos foi transmitido. A nossa fé não é uma impressão vaga, um palpite, uma intuição: é uma certeza firme!

É necessário que aprofundemos cada vez mais este “conhecimento seguro” do mistério de Cristo, pela leitura diária do Santo Evangelho e pelo estudo e meditação da doutrina da fé.

É indispensável ler diariamente o Evangelho: pode ser uma leitura seguida de cada um dos quatro Evangelhos, ou a leitura do Evangelho do dia, ou ambas as coisas: serão apenas uns breves minutos, mas que aumentarão na mente e no coração de cada um o fascínio por Jesus Cristo, e o desejo de O seguir e de O amar cada vez mais.

Esta certeza firme que possuiremos, apesar das nossas fraquezas, será também um reflexo da absoluta segurança que tinha Jesus, no cumprimento da sua missão, como é patente no episódio da ida de Jesus à sinagoga de Nazaré (Lucas 4, 16-21).
 
Jesus ensina na sinagoga de Nazaré - Mosteiro (ortodoxo) de Dečani, Kosovo
 
 
É útil situar no tempo este episódio. Depois do milagre de Caná, Jesus foi para Cafarnaum, com sua Mãe, os cinco discípulos e outros familiares que também tinham estado na festa do casamento (João 2, 12). Nossa Senhora e estes familiares devem ter seguido para Nazaré, mas Jesus ficou em Cafarnaum, na casa de Simão Pedro. Foi aqui que Jesus, caminhando tranquilamente à beira-mar, chamou definitivamente Pedro e André, Tiago e João (Marcos 1, 16-20), que entretanto tinham voltado à sua anterior profissão, mas que logo a seguir deixariam, para seguir Jesus.

Um dia, depois de ter já ter feito diversos milagres em Cafarnaum (Marcos 1, 21-34), Jesus voltou a Nazaré, “onde se tinha criado”, como diz S. Lucas. E aqui, “segundo o seu costume, entrou na sinagoga a um sábado, e levantou-Se para fazer a leitura” (4, 16). Acabada a leitura, e para grande admiração dos que O ouviam, e que já O conheciam desde criança, Jesus diz: “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (4, 21). Este comentário equivale a dizer: ‘Eu sou Aquele de quem fala a Escritura Sagrada, Aquele que foi ungido para “anunciar a boa nova aos pobres”. Esse que foi enviado “a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos e o ano da graça do Senhor”(4, 19), Esse, sobre quem repousa o Espírito de Deus, sou Eu mesmo. A Palavra de Deus cumpre-se em Mim. Em Mim, acontece finalmente a salvação prometida’.

São palavras de uma enorme ousadia: como é que Jesus fala com tanta certeza? Acreditamos que Jesus era o Filho de Deus, mas, como homem, sabia quem era? Jesus conhecia claramente qual era a sua missão?

Sim, Jesus não andou à procura da verdade: sempre conheceu a verdade, que Ele próprio tinha a missão de revelar. Como escreveu um grande santo do séc. VII, S. Máximo Confessor, “a natureza humana do Filho de Deus, não por si mesma, mas pela sua união ao Verbo, conhecia e manifestava em si tudo o que é próprio de Deus” (São Máximo Confessor, Quaestiones et dubia, Q. I, 67: CCG10, 155 [66: PG 90. 840], citado pelo Catecismo da Igreja Católica, n. 473).

Em primeiro lugar, Jesus, Filho de Deus feito homem, tinha um conhecimento íntimo e imediato de seu Pai. Podermos dizer que Jesus, no mais íntimo da sua alma, via o Pai, incessantemente, constantemente, o que era para Ele fonte de uma imensa alegria e felicidade. Por outro lado, na sua inteligência humana manifestava-se o conhecimento divino que tinha dos pensamentos secretos do coração do homem (Mc 2, 8; Jo 2, 25; 6, 61) (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 473).

Mas, além disso, na mente humana de Jesus, pela sua união com o Verbo, existia também o perfeito conhecimento do plano salvador de Deus, que Ele tinha vindo revelar (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 474). Jesus sabia, pois, quem era, e qual a sua missão.

Por isso, na sinagoga de Nazaré, pôde dizer com toda a verdade: “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lucas 4, 21).

Jesus, Filho de Deus feito homem, cumpre o plano de Deus, e realiza plenamente as esperanças dos homens. Jesus responde às grandes questões que há na mente e no coração de todos: Que sentido tem a vida? Porquê a morte? Como podemos ser melhores?

Jesus é decisivo para a vida humana, e nós temos experiência disso. N’Ele somos conhecidos, amados, purificados, libertados, salvos. D’Ele nos vem a graça para viver de um modo novo.

domingo, janeiro 20, 2013

Manifestou a Sua glória





Lemos no Evangelho de S. João o relato do primeiro milagre de Jesus, em Caná da Galileia. S. João salienta que “estava lá a mãe de Jesus”, e, como observa S. Tomás de Aquino no seu Comentário a S. João (Super Io., cap. 2 l. 1), foi em atenção a Nossa Senhora que Jesus foi convidado. Não é de estranhar que fosse assim, porque, nesse momento, Jesus era ainda praticamente um desconhecido, até os próprios discípulos, que em breve deixarão tudo para seguir definitivamente Jesus (Marcos 1, 16-20), ainda pouco sabiam d’Ele. Só a sua Mãe sabe muito bem quem Ele é, e por isso o seu papel neste episódio é tão importante.

 
 
Jerôme Nadal, ed., As bodas de Caná da Galileia
Mas que significa esta presença de Jesus nas bodas de Caná?

Em primeiro lugar, em sentido espiritual, as bodas significam a união de Cristo e da Igreja. Cristo é o Esposo da Igreja, e a Igreja, sua Esposa. Falando do matrimónio, S. Paulo diz: “Este mistério é grande, quero dizer, com referência a Cristo e à Igreja” (Efésios 5, 32). As núpcias do Filho de Deus aconteceram, como explica S. Tomás de Aquino, quando o Verbo encarnou e Se fez homem. Então o Filho de Deus Se uniu definitivamente com a humanidade. Depois, “este matrimónio foi tornado público quando a Igreja se uniu ao Verbo pela fé”. Destas núpcias diz o Apocalipse: “Chegaram as núpcias do Cordeiro. Sua Esposa está preparada” (19, 7). Mas a sua plena realização será na glória do Céu, como também se lê no Apocalipse: “Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro” (19, 9).

Em segundo lugar, em sentido imediato ou histórico, Jesus, ao participar nesta festa, mostra que não despreza o matrimónio entre o homem e a mulher, nem simplesmente o tolera, mas que abençoa a união matrimonial, e lhe dá as graças de que necessita para que possa ser aquilo que é chamada a ser desde o início da humanidade: uma comunhão de amor e de vida.

O casamento é uma comunhão de duas pessoas, um homem e uma mulher, que, na sua unidade e diversidade, querem ser, e se comprometem a ser, um para o outro, um dom total.

Ele também é o ambiente humano natural e mais adequado para a geração e crescimento de novas vidas. Nele se fundamenta a família, como espaço alargado de encontro e convivência de diferentes pessoas e diferentes gerações. O seu autor é Deus, e Deus é também o seu garante e o seu defensor. Mas é necessário que toda a sociedade o admire e o defenda como um «bem comum» que é extremamente importante para todos: casais, pessoas solteiras, crianças, famílias e comunidades, e para a sociedade em geral.

Bento XVI tem defendido energicamente a família contra graves ameaças que hoje a afectam, e disse recentemente que, “na questão da família, não está em jogo meramente uma determinada forma social, mas o próprio homem: está em questão, o que é o homem e o que é preciso fazer para ser justamente homem” (Discurso à Cúria Romana, 21 de Dezembro de 2012).
Naquele dia, em Caná da Galileia, o amor de Cristo pelos casais revelou-se de um modo imprevisível. Aconteceu que a Virgem Maria, sempre atenta a tudo, disse a Jesus a dado momento: “Não têm vinho”. Foi uma forma muito delicada de chamar a atenção de Jesus para aquele problema dos noivos e pedir a sua intervenção. Maria foi, junto de Jesus, a porta-voz carinhosa das angústias daquele casal.
Esta forma de intervir, por parte de Nossa Senhora, é muito especial, revelando, como nota S. Tomás, “o seu amor respeitoso em relação a Cristo”.
 
E explica o Doutor Angélico: “No amor respeitoso que temos em relação a Deus, basta-nos simplesmente apresentar a nossa indigência, segundo este versículo: “Senhor, diante de vós estão todos os meus desejos, e o meu gemido não vos é oculto” (Salmo 37 [38], 10). De que maneira Deus virá em nossa ajuda, não nos compete procurar sabê-lo, pois, como diz o Apóstolo, não sabemos o que convém pedir nas nossas orações (Romanos 8, 26). É por isso que a Mãe de Jesus apresenta unicamente a Cristo a indigência dos outros, dizendo: «Não têm vinho» ”.
A primeira reacção de Jesus, no entanto, parece negativa: “Mulher, que temos nós com isso? Ainda não chegou a minha hora”. Este modo de Jesus falar não revela dureza, mas profundidade. Foi assim que Jesus falou a sua Mãe, do alto da Cruz, referindo-Se ao discípulo que estava ao seu lado: “Mulher, eis o teu filho” (João 19, 26). Aqui, em Caná, deve ter havido um breve silêncio, o olhar da Mãe cruzou-se com o olhar do Filho, e Maria, habituada a meditar todas as coisas no seu coração, sentiu que o Filho iria atender a sua súplica e adiantar o relógio da história da salvação e, sem mais demoras, disse em voz baixa aos serventes: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.
Então, Jesus levanta-Se, e manda-lhes encher de água as seis talhas de pedra que ali existiam, destinadas à purificação dos judeus. Poderiam levar ao todo mais de 600 litros, era um trabalho demorado e cansativo, mas eles obedeceram, e então o milagre acontece, e toda aquela água preciosa mas sem sabor se transforma num vinho excelente, para grande admiração do chefe de mesa, que estranha que só então se tenha servido “o vinho bom”.
Terá sido só um milagre para resolver um problema de uma festa de casamento? Não, foi muito mais do que isso, foi uma primeira revelação do poder divino de Jesus, e em todo ele se contém um novo e profundo simbolismo.
 
Ao presenciarmos este milagre, percebemos a diferença que há entre o Antigo Testamento e o Novo: a água dos rituais de purificação dos judeus transformou-se no vinho precioso do Evangelho e da graça de Cristo. A água só servia para a limpeza corporal exterior, mas a graça de Jesus Cristo renova e purifica o homem por dentro. A água, portanto, simboliza a Antiga Aliança, à qual o povo foi sempre infiel, e o vinho representa a Nova Aliança, que um dia será selada na perfeita obediência filial e no Sangue precioso de Jesus Cristo derramado na cruz.
Quando se aperceberam do que tinha acontecido, deve ter havido um certo alvoroço entre os presentes. É provável que, nesse momento, Jesus, acompanhado pelos discípulos, se tenha retirado discretamente. Tinha começado a era dos milagres, sinais dos tempos messiânicos, tempos de abundância, de alegria, de reconciliação e de cura. Com júbilo contemplativo, S. João observa que Jesus “manifestou a Sua glória, e os seus discípulos acreditaram n’Ele”.
Como escreve S. Tomás, “tinham antes de mais acreditado n’Ele como um homem de bem, que pregava uma doutrina justa e recta, mas desde então passaram a acreditar n’Ele como Deus”.

 

domingo, janeiro 13, 2013

Epifanias de Cristo

O Baptismo de Jesus nos Jordão é uma segunda Epifania, termo que vem das palavras gregas epi, que significa sobre, e phania, que significa manifestação: assim como Jesus se manifestou aos Magos do Oriente, assim se manifesta agora no seu Baptismo como verdadeiro Filho de Deus. A esta segunda Epifania pode chamar-se, portanto, Teofania, de Theos, palavra grega que significa Deus: o baptismo de Jesus é manifestação de Deus, manifestação da Santíssima Trindade.

E haverá ainda uma terceira Epifania, que aconteceu em Caná da Galileia, quando Jesus converteu a água em vinho, (como leremos no Evangelho do próximo domingo; este texto, infelizmente, só se lê hoje no «Ano C»). Santo António de Lisboa, num dos seus sermões, depois de comentar os anteriores significados, chama-lhe Bethfania, de beth, em hebraico, que significa casa, “porque, passado um ano do baptismo, realizou um milagre divino entre as paredes de uma casa, numa festa de núpcias” (Sermão para a Epifania do Senhor, 2)

Estas três epifanias são celebradas desde há muitos séculos em dias distintos, como muito bem explica no seu blog o Pe. John Hunwicke. Mas há ainda alguns textos na liturgia latina que salientam a sua unidade, como esta antífona do Benedictus da Solenidade da Epifania do Senhor: “Hoje a Igreja uniu-se ao seu esposo celeste, porque, no Jordão, Cristo a lavou dos seus pecados; os Magos, com presentes, correm às festas das núpcias reais; e os convivas alegram-se com a água transformada em vinho. Aleluia”.

Esta unidade aparece ainda mais claramente na antífona do Magnificat das II Vésperas da Epifania:

Tribus miraculis ornatum  diem sanctum colimus: hodie stella magos duxit ad praesepium,  hodie vinum ex aqua factum est ad nuptias,  hodie in Jordane Christus baptizari voluit,  ut salvaret nos universos.  Haec est dies illa, quam fecit Dominus;  exsultemus et laetemur in ea. Alleluia”, que se pode traduzir assim, como propõe o Duarte Valério, no blog Ecce super montes:

“Celebramos um dia santo ornado de três milagres: hoje, a estrela conduziu os Magos ao presépio; hoje, foi feito vinho a partir de água nas núpcias; hoje, no Jordão, Cristo quis ser baptizado por João, para nos salvar. Aleluia”.

A tradução da Liturgia das Horas é esta: “Recordamos neste dia três mistérios: hoje a estrela guiou os Magos ao presépio; hoje, nas bodas de Caná, a água foi mudada em vinho; hoje, no rio Jordão, Cristo quis ser baptizado, para nos salvar. Aleluia”.

O tempo da Epifania, em sentido lato, é portanto um período de celebração contemplativa e de reflexão profunda sobre as múltiplas manifestações do Deus-Homem, Jesus Cristo.
 
Como aconteceu esta segunda Epifania de Cristo, o seu Baptismo? Os quatro Evangelhos, embora com matizes diferentes, mostram-nos que Jesus, um dia, se integrou silenciosamente na multidão dos que esperavam o baptismo de João. Sem nenhum gesto, sem nenhuma palavra, como acontece muitas vezes na nossa vida; quase não damos por Ele, naquele momento não O reconhecemos... Mas Jesus está ali, e não é apenas um de nós, não é somente um amigo, é o próprio Filho de Deus junto de nós.

Assim aconteceu naquele dia: “quando todo o povo recebeu o baptismo, Jesus também foi baptizado”. Parece ser apenas mais um, mas não: Jesus é o Messias, que nos procura, que vem ter connosco, onde quer que estejamos, e vem sem nenhum poder humano, apenas com a força do seu infinito amor e da sua misericórdia. 
 

Piero della Francesca, Baptismo de Cristo (1448-1450)
 

O Evangelho diz-nos que, depois de descer às águas, Jesus permanece em oração. Esta é uma preciosa informação de S. Lucas, que não podemos passar em claro: o ministério de Jesus começa com a oração, e termina com a oração (Lucas 22, 46).

A oração de Jesus é modelo e exemplo para nós, mas principalmente revela a sua plena união com o Pai, manifesta que Jesus Cristo vive, também como homem, uma perfeita sintonia com a vontade do Pai e uma perfeita contemplação da face do Pai.

E o Pai corresponde a esta perfeita obediência e intimidade filial de seu Filho.

S. Lucas diz-nos que, “enquanto orava, o Céu abriu-se, e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corporal, como uma pomba”. “O Céu abriu-se”, quer dizer, vai começar a definitiva revelação de Deus aos homens. E o Espírito Santo, que já habitava na humanidade de Cristo, vai impeli-Lo nesta nova etapa da história da salvação, para libertar os que estavam sob o domínio de Satanás e anunciar a boa nova aos pobres.

Depois, o próprio Jesus ouve estas palavras que Lhe são dirigidas a Si, exclusivamente: “ «Tu és o meu Filho muito amado: em Ti pus toda a minha complacência”.

No entanto, também para nós é muito importante ouvi-las. Ao convidar-nos a escutar estas palavras, no momento em que Jesus Cristo vai iniciar a sua caminhada pela Galileia, para proclamar o Reino de Deus em palavras e obras, S. Lucas quer anunciar-nos de novo quem é Jesus: Ele é o Filho que quis tornar-Se Servo, como anuncia Isaías, para cumprir em nosso favor, com a sua fragilidade humana e o seu poder divino, o plano do Pai. Jesus não é um simples homem nem um profeta excepcional, é o “Filho muito amado”, que aceita morrer e dar a vida por todos. Cristo aceita mergulhar na morte, como mergulhou nas águas do Jordão, para que também nós possamos ser, n’Ele, filhos de Deus.

O baptismo, enquanto imersão nas águas, é uma espécie de sepultura, a que depois se segue, na emersão, uma espécie de ressurreição. O baptismo de Jesus anuncia assim o nosso próprio baptismo, em que «imergimos» na morte de Cristo para podermos «emergir» com Ele, isto é, participar na sua ressurreição. Diz-nos S. Paulo: “Ou ignorais que todos os que fomos baptizados em Jesus Cristo, fomos baptizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com Ele na sua morte pelo baptismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova. Se fomos feitos o mesmo ser com ele por uma morte semelhante à sua, sê-lo-emos igualmente por uma comum ressurreição (Romanos 6, 3-5).

Esta identificação com Cristo manifesta-se na vida, em tantas escolhas que fazemos, e também na liturgia, que precisamos de viver mais intensamente e mais piedosamente. A liturgia tem que ser oração e ao mesmo tempo, expressão de entrega.

 

domingo, janeiro 06, 2013

Mais do que palavras. Sinais exteriores de fé

 





Mais do que palavras. Sinais exteriores de fé pelo celebrante

O significado das genuflexões e outros gestos

Pe. Nicola Bux

"Entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, prostrando-se diante d'Ele, adoraram-No" (Mateus 2, 11).


Jerôme Nadal (ed.), A adoração dos magos
 
A propósito da atitude dos Magos diante do Deus Menino, transcrevo este artigo do Pe. Nicola Bux, publicado pela agância ZENIT. O Pe. Nicola Bux é professor de Liturgia Oriental em Bari e consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, para as Causas dos Santos, para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, bem como do Departamento de Celebrações Litúrgicas do Santo Padre).
 
A fé na presença do Senhor, e em particular na sua presença Eucarística, é expressa de forma exemplar pelo sacerdote, quando ele se ajoelha com profunda reverência durante a Santa Missa ou antes da Comunhão Eucarística

Na liturgia pós-conciliar estes actos de devoção foram reduzidas ao mínimo em nome da sobriedade. O resultado é que as genuflexões se tornaram uma raridade, ou um gesto superficial. Nós tornamo-nos mesquinhos com os nossos gestos de reverência diante do Senhor, embora, muitas vezes, elogiemos os Judeus e Muçulmanos pelo seu fervor e maneira de rezar.

Mais do que palavras, uma genuflexão manifesta a humildade do sacerdote, que se reconhece apenas como um ministro, e também a sua dignidade, dado ser capaz de tornar presente o Senhor no sacramento. No entanto, há outros sinais de devoção.

Quando o sacerdote estende as mãos em oração, ele indica a súplica do pobre e humilde. A Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) estabelece que o sacerdote “quando celebra a Eucaristia, deve servir a Deus e ao povo com dignidade e humildade, e pelo seu porte e pela maneira como diz as palavras divinas deve transmitir aos fiéis a presença viva de Cristo” (n. 93). Uma atitude de humildade está em consonância com o próprio Cristo, manso e humilde de coração. Ele deve crescer e eu diminuir.

Ao caminhar para o altar, o sacerdote deve ser humilde, sem ostentação, sem ceder em olhar para a direita e para a esquerda, como se buscasse aplausos. Em vez disso, deve olhar para Jesus; Cristo crucificado está presente altar, diante do qual o sacerdote deve inclinar-se. O mesmo é feito diante das imagens sagradas exibidas na abside ou aos lados do altar, a Virgem, o santo titular, os outros santos.

Segue-se o beijo reverente do altar e eventualmente o incenso, o sinal da cruz e a sóbria saudação dos fiéis. Após a saudação é o acto penitencial, a ser realizado sentidamente, com os olhos baixos. Na forma extraordinária, os fiéis ajoelham-se, imitando o publicano que agradou ao Senhor.

O celebrante não deve levantar a sua voz, e deve manter um tom claro para a homilia, mas a voz deve ser submissa e suplicante na oração, solene quando cantada. “Nos textos que deverão ser ditos em voz alta e clara, quer pelo sacerdote quer pelo diácono, ou pelo leitor, ou por todos, o tom de voz deve corresponder ao género do próprio texto, ou seja, dependendo se se trata de uma leitura, uma oração, um comentário, uma aclamação, ou de um texto cantado; o tom também deve ser adaptado à forma de celebração e à solenidade da reunião” (IGMR, n. 38).

O sacerdote tocará os dons sagrados com admiração, e purificará os vasos sagrados com calma e atenção, em consonância com o exemplo de tantos santos e sacerdotes anteriores a ele. Ele baixará a cabeça sobre o pão e o cálice aquando da pronunciação das palavras de consagração e na invocação do Espírito Santo (epiclese). Levantará separadamente a Hóstia e o Cálice, fixando o seu olhar sobre eles em adoração e, em seguida, baixá-los-á em meditação. Ajoelhar-se-á duas vezes em adoração solene. Continuará com recolhimento e em tom de oração desde a anamnese à doxologia, levantando os dons sagrados em oferta ao Pai.

Após a comunhão, o silêncio de acção de graças pode ser feito de pé, melhor do que sentado, em sinal de respeito, ou de joelhos, se for possível, como fazia João Paulo II até ao final, quando celebrava na sua capela particular, com a cabeça abaixada e as mãos unidas. Pedia que o dom recebido por ele fosse um remédio para a vida eterna, como na fórmula que acompanha a purificação dos vasos sagrados; muitos fiéis fazem-no e são um exemplo.

Não deverão a patena e o cálice (vasos que são sagrados por causa do que contêm) serem cobertos “louvavelmente” (IGMR, n. 118; cf. 183), em sinal de respeito – e também por razões de higiene – como as Igrejas Orientais fazem?

O sacerdote, após a saudação e bênção final, subindo ao altar para beijá-lo, voltará a levantar os olhos para o crucifixo e fará uma inclinação diante do altar e uma genuflexão diante do tabernáculo. Então voltará para a sacristia, recolhido, sem dissipar com olhares e palavras a graça do mistério celebrado.

Desta forma os fiéis irão ser ajudados a compreender os sinais sagrados da liturgia, que é algo sério, em que tudo tem um significado para o encontro com o mistério de Deus.