sexta-feira, maio 29, 2015

O dom do Pai em Cristo

O Espírito Santo é o mais precioso dom de Deus. E é-nos dado para nos fortalecer, para nos defender, para nos consolar, mas principalmente para nos ensinar.
Escreveu um grande Bispo do séc. IV, Santo Hilário de Poitiers:
“Ouçamos o que diz a palavra do Senhor sobre a acção do Espírito em nós: Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas agora não as podeis compreender. É melhor para vós que Eu vá; se Eu for, enviar-vos-ei o Paráclito (João 16, 12; 16, 7).
E noutro lugar: Eu pedirei ao Pai e Ele vos enviará outro Paráclito, para estar convosco eternamente, o Espírito da verdade (João 14, 16). Ele vos ensinará toda a verdade, porque não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas que estão para vir. Ele Me glorificará, porque recebe do que é meu (João 16 13-14).
Estas palavras, entre muitas outras, foram ditas para  nos dar a conhecer a vontade d'Aquele que confere o Dom e a natureza e perfeição do mesmo Dom. Deste modo, já que a nossa debilidade não nos permite compreender nem o Pai nem o Filho, o Dom que é o Espírito Santo estabelece um certo contacto entre nós e Deus, para iluminar a nossa fé nas dificuldades relativas à Encarnação de Deus.
Recebemo-Lo, portanto, para compreender. (…) A alma humana, se não recebe pela fé o Dom que é o Espírito, tem certamente uma natureza capaz de conhecer a Deus, mas falta-lhe a luz para chegar a esse conhecimento.
Este Dom de Cristo está todo à disposição de todos e encontra-Se em toda a parte; mas é dado na medida do desejo e dos méritos de cada um. Ele está connosco até ao fim do mundo; Ele é o consolador no tempo da nossa expectativa; Ele, pela actividade dos seus dons, é o penhor da nossa esperança futura; Ele é a luz do nosso espírito, Ele é o resplendor das nossas almas”.
(Santo Hilário, Sobre a Trindade, Lib. 2, 1, 33, 35)

Por isso, com toda a confiança e fervor Lhe pedimos:
Vinde, Espírito Santo, enchei os corações de vossos fiéis, e acendei neles o fogo do Vosso amor; enviai, Senhor, o Vosso Espírito, e tudo será criado, e renovareis a face da terra.

Celebrando o Pentecostes, podem resultar oportunos os seguintes propósitos:

1. Não viver às escuras. Viver no Espírito Santo. Viver em união com Deus. Viver na graça de Deus. Não viver nunca em pecado. Se pequei, vou-me confessar para receber o perdão de Deus e a paz da Igreja.
2. Avaliar tudo na luz de Deus. As pequenas escolhas e as grandes escolhas. «Meu Deus, que achas desta decisão que vou tomar? Meu Deus, parece-Te bom este meu modo de agir? Meu Deus, que devo fazer para ser melhor?» Leva à oração as tuas decisões antes de as tomares. Reza de joelhos – cinco minutos, meia hora, ou o tempo que for preciso, a pedir luz a Deus. «Senhor, não me deixes escolher mal, e se me enganei, corrige-me, ilumina-me…»
3. Guiados pelo Espírito Santo, vir ao encontro de Jesus, porque só Ele nos salva. Precisamos de ser salvos da violência, da maldade, da indiferença pelos outros, da ignorância de não saber quem somos. E acreditamos que “Jesus pode salvar de um modo definitivo, os que por meio d' Ele se aproximam de Deus, pois Ele está vivo para sempre, a fim de interceder por eles” (Hebreus 7, 25)
4. E vir a seu encontro onde Ele está: na sua Igreja,  no Sacrário, onde está sempre à nossa espera, e sobretudo na celebração da Missa, onde o seu sacrifício se torna presente. Uma decisão vital é nunca faltar à Missa de Domingo. Além de ser um pecado grave, é um enorme desperdício. É como se alguém tivesse ganho o «Euromilhões», e não fosse levantar o prémio.
5. Procurar que aumente a amizade e a caridade de todos na Igreja, particularmente na Paróquia. Sentir a Paróquia como minha, e fortalecê-la com a minha presença, com o meu contributo e com o meu trabalho, com o meu serviço aos outros, para que possa cumprir melhor a sua missão.

Por isso, pedimos confiadamente:
Ó Deus, que instruístes os corações de Vossos fiéis com a Luz do Espírito Santo, fazei que apreciemos rectamente todas as coisas segundo o mesmo Espírito e gozemos sempre da sua consolação. Por Cristo, Nosso Senhor. Amen.

quinta-feira, maio 28, 2015

Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos (IV)

Concluímos a publicação do artigo do Cardeal Stickler, Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos, cuja primeira, segunda e terceira partes podem ser lidas aquiaqui e aqui.


V. FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA DISCIPLINA DO CELIBATO
No actual debate sobre o celibato, dá-se maior ênfase à necessidade de aprofundar teologicamente o sacerdócio, a fim de deduzir e apreciar a verdade única e completa da teologia do celibato da Igreja Católica Latina.
Temos, portanto, por esse motivo, a tarefa actual e importante de analisar os elementos teológicos tanto do sacerdócio do Novo Testamento como, a partir deste, o celibato dos ministros sagrados. Ambos têm suas raízes nas Escrituras – a principal fonte da Teologia católica – e na Tradição da Igreja, que revela e interpreta o testemunho escriturístico.
O sacerdócio de Jesus Cristo é um profundo mistério da nossa fé. Para compreender isso, o homem deve abrir-se a uma visão sobrenatural e submeter a sua razão a um modo transcendente de pensar. Em tempos de fé viva, que incentiva e orienta não só cada fiel como pessoa única, mas também permeia a vida e dá forma à vida de toda a comunidade crente, Cristo Sacerdote constitui, na consciência de todos, o centro da vida de fé pessoal e comunitária. Em tempos de declínio do sentido da fé, pelo contrário, a figura de Cristo Sacerdote desbota e desaparece cada vez mais da consciência dos homens e da sociedade, e já não está no centro da vida cristã. Esta mesma imagem é também aplicável no caso de um sacerdote de Cristo.
Em tempos de fé viva, na verdade, não é difícil ao sacerdote reconhecer-se em Cristo, identificar-se com Ele, contemplar e viver a essência do próprio sacerdócio em íntima união com Cristo Sacerdote, ver nele “a única fonte” e o “modelo insubstituível” da própria condição sacerdotal.Mas, no meio de uma atmosfera racionalista que desvia cada vez mais a mente humana do sobrenatural, numa época de materialismo que obscurece cada vez mais a realidade espiritual, torna-se cada vez mais difícil para o sacerdote resistir à pressão da mentalidade secularizante. A identidade espiritual e transcendente de seu sacerdócio tende a desvanecer se ele não se esforça, conscientemente, em aprofundar nela e em mantê-la viva, por meio de uma íntima união pessoal com Cristo.Essa crítica situação torna ainda mais indispensável a ajuda para os sacerdotes de uma ascética e de uma mística adequada ao estado das coisas. É preciso que lhes revelem a tempo os perigos que ameaçam ao seu sacerdócio, mostrando-lhes as necessidades e que se ponham à disposição os meios que a sua vida sacerdotal requerem. A actual crise de identidade do sacerdócio católico manifesta-se em toda a sua crueza através da renúncia de milhares de sacerdotes ao seu ministério, através também da profunda secularização de muitos outros que continuam num serviço puramente formal, e, enfim, através da escassez de vocações causadas pela rejeição a seguir o chamamento de Cristo. Numa situação deste tipo, é uma necessidade fundamental desenvolver uma pastoral sacerdotal nova, que seja consciente das circunstâncias e das exigências actuais e que responda, numa palavra, ao “contexto presente”.

A relação sacerdotal com Cristo
Temos de fazer brilhar com nova luz, com fundamento na tradição, a essência do sacerdócio católico. O Concílio de Trento, num momento de crise semelhante ao nosso, estabeleceu com os seus ensinamentos e definições sobre os sacramentos da Eucaristia e da Ordem, as bases de uma espiritualidade sacerdotal fortemente referida a Cristo. Um teólogo como M. J. Scheeben soube explicar, frente ao racionalismo do século passado, que a Ordenação eleva a quem a recebe a uma orgânica unidade sobrenatural com Cristo, e que o carácter indelével impresso pelo sacramento da Ordem habilita o ordenado a participar nas funções sacerdotais de Cristo.
Nos últimos tempos, especialmente desde o Vaticano II em diante, esta relação do sacerdote com Cristo tem sido cada vez mais posta no centro da essência do sacerdócio, e foi possível aprofundar e alargar a partir dessa perspectiva os ensinamentos bíblicos e as doutrinas teológicas e canónicas sobre o assunto. Tem, assim, adquirido uma nova iluminação teológica a doutrina tradicional do sacerdos alter Christus.



Se S. Paulo escreve aos Coríntios: “Temos de ser considerados pelos homens como ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1); ou então: “Agimos como embaixadores de Cristo, como se Deus mesmo vos exortasse através de nós. Suplicamos-vos, pois, em nome de Cristo, deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Cor 5, 20), essas expressões podem ser consideradas como autênticas ilustrações bíblicas da identificação do sacerdote com Cristo.
No Concílio Vaticano II é continuamente expressa a mesma ideia: “Os bispos, de modo eminente e visível, façam as vezes de Cristo Mestre, Pastor e Pontífice, e actuem em sua pessoa” (Lumen Gentium n º 21, com a nota 22, onde se documenta sobre a Igreja antiga). “Os sacerdotes a eles unidos são partícipes do ofício de Cristo, único Mediador, e exercitam o seu sagrado ministério agindo in persona Christi  (Lumen Gentium n. 28 com a nota 67; Christus Dominus n. 28). Através do sacramento da Ordem e do carácter por ele impresso, são configurados a Cristo e actuam em seu nome (Presbyterorum Ordinis nn. 2, 6, 12; Optatam totius n. 8; Sacrosanctum Concilium, n. º 7).
Após o Concílio aumentaram essas formas de expressão também por parte da Cúria Romana. A Congregação para a Educação Católica, nas normas fundamentais para a formação dos sacerdotes, de 1970, acentuou, numa afirmação de princípio, que o sacerdote se faz, através da Ordem Sagrada, um “alter Christus”. E o novo Código de Direito Canónico de 1983 diz no cânon 1008: “Com o sacramento da Ordem e com o carácter indelével com o que ficam marcados aqueles que o recebem, os ministros da Igreja são consagrados e destinados a reunir, cada um no seu próprio nível, os cargos de ensinar, santificar e governar in persona Christi e de pastorear o povo de Deus.”
De uma forma ainda mais intensa, ocupou-se do sacerdócio e do ministério dos sacerdotes, desde o início do seu pontificado, o Papa João Paulo II. Desde 1979, nas Quintas-Feiras Santas de cada ano, dirigiu uma mensagem aos sacerdotes. Repetidas vezes utilizou ocasiões especialmente adequadas – audiências, discursos e, especialmente, as frequentes ordenações sacerdotais – para posicionar na sua justa luz teológica e pastoral actual, a natureza e a essência do sacerdócio católico, bem comopara aprofundar o seu significado.
O mais importante acto oficial do Papa, com referência ao sacerdócio foi, sem dúvida, a convocação e a realização do 8º Sínodo dos Bispos, que teve por objectivo a formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais. Um dos pontos centrais das discussões dos Padres sinodais foi a noção justa da identidade sacerdotal, vistas as coisas no mundo de hoje e no meio da grave crise em que se encontra o sacerdócio católico. Síntese e coroação dos trabalhos sinodais foi a Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis, publicada em 25 de Março de 1992, dedicada precisamente à formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais.No segundo capítulo da Exortação Apostólica, o Papa aborda a “natureza e a missão do sacerdócio ministerial” e informa expressamente que nas intervenções dos Padres na aula sinodal se “mostrou a consciência do vínculo ontológico específico que liga o sacerdote a Cristo, Sumo-sacerdote e Bom Pastor” (n. 11). O Papa conclui essa exposição com uma afirmação verdadeiramente clássica: “O presbítero encontra a plena verdade da sua identidade em ser uma derivação, uma participação específica e uma continuação do mesmo Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote da Eterna Aliança; Ele é uma imagem viva e transparente de Cristo sacerdote. O sacerdócio de Cristo, expressão da sua absoluta «novidade» na história da salvação, é a única fonte e o paradigma insubstituível do sacerdócio do cristão, e, especialmente, do presbítero. A referência a Cristo, então, é a chave essencial para a compreensão das realidades sacerdotais” (n.º 12, ao final).Sobre a base desta afinidade natural entre Cristo e os seus sacerdotes, não será difícil anunciar a teologia do sacerdócio ministerial. O mesmo João Paulo II oferece-nos novamente a chave: “É particularmente importante que o sacerdote compreenda a motivação teológica da lei eclesiástica sobre o celibato. Enquanto lei, ela expressa a vontade da Igreja, antes mesmo da vontade que o sujeito manifesta com a sua disponibilidade. Mas essa vontade da Igreja encontra sua motivação última na relação que o celibato tem com a ordenação sagrada, que configura o sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja. A Igreja, como esposa de Jesus Cristo, quer ser amada pelo sacerdote de modo total e exclusivo como Jesus Cristo, Cabeça e esposo, a tem amado. Assim o celibato sacerdotal é um dom de si em e com Cristo à sua Igreja, e manifesta o serviço do sacerdote à Igreja em e com o Senhor “ (n. 29).

Fundamento histórico doutrinal
Um olhar para trás na Tradição da Igreja pode informarnos, também nesta ocasião, o desenvolvimento dessa Teologia. O que se pode dizer, em síntese, sobre esse aspecto, já dissemos em parte, ao analisar os testemunhos da Igreja Primitiva sobre a continência dos ministros sagrados. Continuar com as referências históricas sobre o celibato, as referências à Sagrada Escritura e sua interpretação é certamente uma ajuda que pode ser fornecida à argumentação teológica dos Padres sinodais e do Santo Padre, porque na Exortação Apostólica abundam as referências à Sagrada Escritura. A visão do celibato, do ponto de vista das Escrituras adquiriu, por outro lado, uma crescente importância na literatura recente sobre o assunto.
Já na primeira lei escrita que conhecemos, no cânon 33 do Concílio de Elvira, estão obrigados à continência os clérigos positi in ministerio, ou seja, aqueles que servem ao altar. Também os cânones africanos falam continuamente dos que servem ao altar e, por ser responsável pelo seu serviço, tocam os sacramentos; estes estão obrigados, por causa da consagração recebida, à castidade, o que, por sua vez, garante a eficácia da oração de petição (impetratória) diante de Deus.
A este respeito, são particularmente importantes e instrutivos os documentos do Romano Pontífice que tratam da continência celibatária. São constantemente consideradas e refutadas nos textos deles, a partir da Sagrada Escritura, duas objecções. A primeira é a norma que indica São Paulo a Timóteo (1 Tim 3, 2 e 3, 12) e a Tito (1, 6): os candidatos casados devem ser só unius uxoris, ou seja, ter sido casado apenas uma vez e também com uma mulher virgem. Tanto o Papa Sirício como Inocêncio I insistiram repetidamente em que esta expressão não significa que eles possam continuar com o desejo de gerar filhos, mas, pelo contrário, foi estabelecida propter continentiam futuram, ou seja, devido à continência que deveria ser vivida desde então.
Esta interpretação feita pelos Pontífices da conhecida passagem da Escritura, que foi assumida pelos Concílios, diz que quem tivesse a necessidade de se casar novamente, demonstrava com isso que não era capaz de viver a continência exigida aos ministros sagrados e não podia, portanto, ser ordenado. Assim, essa norma da Escritura, em vez de uma prova contrária ao celibato, era uma demonstração a favor da continência celibatária e ainda uma exigência dos Apóstolos. Essa disposição manteve-se viva no futuro. Na Glossa ordinária ao decreto de Graciano, isto é, no comentário comumente aceite dessa passagem (princípio da Dist. 26), explica-se que existem quatro razões para que alguém que foi casado duas vezes não possa ser ordenado. Depois de assinalar três razões espirituais, a quarta, de carácter prático, diz que seria um sinal de incontinência que um homem passasse de uma mulher para outra. E o grande e autorizadíssimo Decretalista Hostiensis, o Cardeal decano Henrique de Susa, explica no seu comentário às decretais de Gregório IX (X, I, 21, 3 à palavra alienum), que a terceira razão das quatro dessa proibição foi “porque se deve temer (neste caso) a incontinência”.
Essa interpretação do unius uxoris vir também era aceite no Oriente. Isto é provado pelo grande historiador da Igreja antiga, Eusébio de Cesareia, que deve ser considerado bem informado, já que, como já afirmamos, participou no Concílio de Niceia e, como amigo dos arianos, tinha defendido o uso do matrimónio por parte dos padres já casados. No entanto diz expressamente que, comparando o sacerdote do Antigo Testamento com o do Novo, se confronta a geração corporal com a espiritual, e que nisso consiste o sentido do unius uxoris vir: em que aqueles que foram consagrados e dedicados ao culto divino devem abster-se convenientemente, a partir do momento da Ordenação em adiante, das relações sexuais com a esposa.
A proibição apostólica de que nenhum casado duas vezes devia ser admitido às Sagradas Ordens tem sido observada, com todo rigor, através dos séculos e se encontrava entre as irregularidades no Código de 1917 (cân. 984, 4). Na canonística clássica ensinava-se que a dispensa desta proibição não era possível nem pelo Sumo Pontífice, pois nem sequer ele poderia dispensar contra apostolum, isto é, contra a Sagrada Escritura.
Deve-se notar que também a legislação do Concílio de Trullo mantém no seu cânon 3 a mesma proibição para sacerdotes, diáconos e subdiáconos, ou seja, que os candidatos a estas ordens não podiam estar casados com uma viúva ou com uma mulher que havia sido casada. Só se queria – diziam os padres trullanos – atenuar a gravidade da Igreja Romana nesse ponto, concedendo àqueles que tinham pecado contra a dita proibição a possibilidade de arrependimento e penitência.  Se antes de uma data posterior ao Sínodo tivessem renunciado a esse (segundo) casamento, poderiam permanecer no exercício do ministério.
A falta de lógica nesta disposição do cânon 3, em comparação com o cânon 13, que permite aos sacerdotes e diáconos o uso do matrimónio contraído antes da Ordenação, só pode ser explicado pelo facto de que aquela proibição apostólica estava também profundamente enraizada na tradição oriental, mas sem que se perceba já o seu sentido original. Daí surge outra prova tácita do autêntico significado original, como garantia da total continência após a Ordenação, tal como permaneceu vivo no Ocidente, sempre aceite com fiel observância por parte de Roma.
Deve-se mencionar neste contexto de duas outras passagens das Escrituras que não se encontram explicitamente nos testemunhos antigos, a segunda das quais é hoje invocada contra a continência dos mesmos Apóstolos.
Entre as qualidades que São Paulo exigia ao ministro da Igreja se encontra também a de ser “encratés”, ou seja, continente. Este termo significa a continência sexual, como se deduz do texto paralelo no qual São Paulo exorta os fiéis casados à continência, a necessária abstinência para dedicar-se à oração, e também dos posteriores textos gregos sobre o celibato, reunidos, por exemplo, na colecção oficial do Pedalion.

A segunda passagem da Escritura é encontrada em 1 Coríntios 9, 5, onde São Paulo diz que também ele tem o direito de levar consigo uma mulher, como fazem os outros apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas. Muitos interpretaram a expressão “mulher” como a “esposa” dos Apóstolos, que no caso de Pedro o poderia ser verdade. Mas é preciso se ter claramente presente o facto de o texto original grego não falar simplesmente de “ginaika”, que podia perfeitamente significar também esposa. Certamente não sem intenção, São Paulo acrescenta a palavra “adelfén”, ou seja, mulher “irmã”, o que exclui qualquer confuso mal-entendido com esposa.
Somos convencidos facilmente deste sentido rectificador pelo facto de que, de aqui em adiante, os testemunhos mais importantes da continência dos ministros sagrados mostram que ao falar da esposa de tais ministros, no contexto da posterior continência sexual, sempre se usa a palavra “sóror”, irmã. Do mesmo modo, a relação entre marido e mulher depois da Ordenação do marido é visto como o de um irmão com sua irmã. São Gregório Magno, por exemplo, diz: “Desde sua Ordenação, o sacerdote amará (sua esposa) como a uma irmã”. O Concílio de Gerona (ano 517) decidiu que “se tiverem sido ordenados aqueles que antes estiveram casados, não devem viver juntos com aquela que de esposa se tornou irmã”. E o Concílio de Auvergne (ano 535), por sua vez, dispôs que “quando um sacerdote ou um diácono recebeu a Ordenação para o serviço divino, passa imediatamente de ser marido a ser irmão da sua esposa”. Este uso das palavras é encontrado em muitos textos patrísticos e conciliares.

O ensinamento do Antigo Testamento
É necessário agora que tratemos outro ponto que é muitas vezes invocado como um argumento contra a continência dos ministros nos primeiros séculos. Costuma-se apelar, como muitas vezes já afirmámos, ao Antigo Testamento, em que, como sabemos, era legítimo e até mesmo necessário o uso pleno do matrimónio por parte dos sacerdotes e levitas, nos dias em que viviam em suas casas, livres do serviço do Templo. A essa objecção se pode responder de duas maneiras.
Antes de tudo deve-se assinalar que o sacerdócio vetero-testamentário havia sido confiado a uma única tribo que devia ser conservada, e isso fazia necessário o matrimónio. O sacerdócio do Novo Testamento não foi definido, no entanto, como o sacerdócio de sucessão pelo sangue e não se baseia na descendência familiar. Um segundo e mais importante argumento a favor da distinção entre um sacerdócio e outro diz: os sacerdotes do Antigo Testamento prestavam um serviço temporal limitado no templo, enquanto os sacerdotes do Novo Testamento mantêm um serviço permanente, por isso a obrigação temporal de continência e de pureza se estendeu a uma observância ilimitada e contínua.
Como explicação convincente se recorre à passagem de S. Paulo em I Cor 7, 5, na qual o Apóstolo aconselha aos esposos que não se recusem um ao outro, a não ser de comum acordo, por um tempo determinado e para dedicar-se à oração. Os sacerdotes do Novo Testamento, no entanto, devem rezar continuamente e dedicar-se a um serviço diário ininterrupto, no qual, através de suas mãos, é dada a graça do perdão e é oferecido o Corpo de Cristo. A Sagrada Escritura exorta-os a ser em tudo puros para este serviço e os Padres mandavam conservar a abstinência corporal.
Os mesmos documentos também oferecem outros motivos de carácter pastoral: como poderia um padre pregar sobre a continência e sobre a pureza a uma viúva ou a uma virgem, se ele mesmo desse maior valor o trazer filhos ao mundo que a Deus? Assim, a objecção contrária torna-se argumento a favor da continência ministerial.
A partir dessas considerações se deduz uma imagem do sacerdote do Novo Testamento modelado sobre a vontade de Cristo, e distinta substancialmente daquela imagem do Antigo Testamento. Esta última foi configurada apenas como uma função, limitada no tempo e puramente externa. Aquela, ao contrário, implica por natureza a toda a pessoa do sacerdote, no externo e no interno, e, portanto, o seu serviço. Cristo exige ao seu sacerdote alma, coração, corpo, pureza e continência em todo seu ministério como um testemunho de que já não vive segundo a carne, mas pelo Espírito (Rom 8, 8). O sacerdócio funcional do Antigo Testamento nunca pode ser um modelo do sacerdócio ontológico do Novo, configurado com o de Cristo. Este supera o antigo sacerdócio essencialmente.
Assim, aqueles que receberam a mensagem da salvação de Cristo compreenderam, já desde o início, a exigência de Mestre aos seus Apóstolos de chegar a renunciar inclusive ao casamento pelo Reino dos Céus (Mt 19, 12), e que, tal como um discípulo em sentido rigoroso e pleno, deve estar disposto deixar pai, mãe, esposa, filhos, irmão e irmã (Lc 18, 29; 14, 26). Também se entende assim as palavras de S. Paulo sobre a diversa relação com Deus dos celibatários e dos casados (1 Cor 7, 32-33) e o seu significado no que diz respeito ao celibato eclesiástico.
Foi tarefa da escola, ou seja, da canonística clássica a partir do século XII em diante, descobrir, explicar e desenvolver as razões que ligam continência e sacerdócio neotestamentário. Na história do desenvolvimento científico do tema, brevemente descrito na segunda parte deste trabalho, mencionaram-se as dificuldades existentes então para se chegar à elaboração de uma teoria satisfatória. Embora os antigos Padres tivessem já entendido que a continência pertencia à essência do sacerdócio novo – como, por exemplo, quando Epifânio disse que o carisma do sacerdócio consiste na continência; ou Santo Ambrósio que apontava a obrigação de rezar continuamente como o mandamento da Nova Aliança –, os glossistas, no entanto, foram incapazes de construir uma teologia do celibato, talvez porque eram demasiado pouco teólogos. Em seus trabalhos sobre a disciplina celibatária no Ocidente, estiveram também muito influenciadas pela disciplina oriental, cuja legitimidade tomaram por boa ao aceitar tanto a lenda de Pafnucio como a legislação trullana.
No entanto a partir dos documentos da Igreja Católica sobre este assunto, tentaram desenvolver uma teoria na qual se continham os elementos essenciais para uma Teologia válida. Compreenderam, sobretudo, que a continência está em relação estreita com o ordo sacer, e que essa lei tinha sido dada à Igreja propter ordinis reverentiam, pela reverência que é devida à Ordem. Também entenderam que a continência está mais unida ao Sacramento da Ordem recebido que ao homem ordenado, o qual era livre de aceitar a Ordenação, sabendo que aceitava também a obrigação anexa.
Desde a síntese realizada por S. Raimundo de Peñafort, já mencionado, se deriva com toda certeza que naquele tempo se tinha como verdadeiro motivo da continência clerical não tanto a pureza do ministro – que se adequaria muito bem com a práxis oriental estabelecida no Concílio Trullano – quanto a eficácia da oração mediadora do ministro sagrado, que procedia da sua total dedicação a Deus. De um modo geral eram apresentadas já então as verdadeiras razões da perfeita continência: a possibilidade de rezar com liberdade, assim como a também completa liberdade de desenvolver o próprio ministério e para dedicar-se ao serviço da Igreja.
Embora a Teologia dos séculos posteriores até hoje, não descurasse a reflexão sobre o sacerdócio do Novo Testamento, a crise dos sacerdotes e das vocações para sacerdócio nestas últimas décadas – difundidas e ampliadas através dos meios de comunicação social – exigiu com urgência um especial aprofundamento na matéria. O fundamento para isso tinha sido posto pelo Concílio Vaticano II, sobre o que se baseou o ensinamento do Papa João Paulo II, que fez do sacerdócio um motivo particular do seu programa doutrinal e pastoral desde o começo do seu pontificado. É significativo nesse sentido, que já na sua primeira mensagem aos sacerdotes, por ocasião da quinta-feira santa, dissesse sobre o celibato que a Igreja ocidental o quis no passado e o quer no futuro enquanto se “inspira no exemplo mesmo de Nosso Senhor Jesus Cristo, na doutrina apostólica e em toda a Tradição que lhe é própria”. Nos anos seguintes voltou várias vezes a tratar o tema do sacerdócio e do celibato unido a ele, e pôs um grande empenho em travar as demasiado fáceis dispensas nesta matéria.
O ponto mais alto dessas preocupações de sua elevadíssima consciência pastoral constituiu a convocatória, para Outubro de 1990, do oitavo Sínodo dos Bispos, que devia abordar a questão da formação sacerdotal no contexto das circunstâncias actuais. Isto foi feito de uma forma exaustiva através das vozes dos representantes do episcopado mundial, e esta questão encontrou a sua mais perfeita expressão na Exortação Apostólica Pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, que pode ser considerada uma “Carta Magna” da Teologia do sacerdócio, e que permanecerá como norma autorizada no futuro da Igreja.

A Teologia do celibato sacerdotal
Não é possível fazer aqui um completo desenvolvimento deste tema, nem este é o objectivo da nossa exposição histórica, mas esta permite-nos dar uma palavra final sobre a Teologia do celibato sacerdotal, a qual está intimamente relacionada com a Teologia do sacerdócio.
A principal motivação do celibato e da vontade da Igreja neste ponto é “a relação que o celibato tem com a sagrada Ordenação que configura o sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja” (Pastores dabo Vobis, n. 29). Estas palavras podem ser consideradas o núcleo da Teologia do celibato desenvolvida pela Exortação Apostólica, e é oferecida para ser meditada e colocada na base de qualquer desenvolvimento posterior.
A partir desta afirmação central do documento papal, tentámos indicar, a partir do início desta quinta parte do nosso trabalho, os elementos da Teologia do celibato que já estavam presentes na Tradição, mas que tinham sido desenvolvidos de maneira insuficiente. Agora somos capazes de ver não só que todos estes elementos foram recolhidos e desenvolvidos sistematicamente na Exortação, mas também foram utilizados nela outros não considerados antes.
Deve ser valorizado, acima de tudo, neste sentido, aquilo que é afirmado no capítulo três, especialmente nos números 22 e 23, acerca da “configuração com Jesus Cristo Cabeça e Pastor e a caridade pastoral”. Cristo nos é mostrado aqui no mesmo sentido de Ef 5, 23-32, como Esposo da Igreja, assim como ela é a única Esposa de Cristo. Em ligação com outros textos das Escrituras, nesta passagem da Exortação se contempla a profunda e misteriosa união entre Cristo e a Igreja, que é colocado imediatamente em relação com o sacerdote: “O sacerdote está chamado a ser uma imagem viva de Jesus Cristo, Esposo da Igreja… Está chamado, portanto, a reviver na sua vida espiritual o amor de Cristo Esposo pela Igreja Esposa.” Não lhe falta, por isso, ao sacerdote um amor esponsal, pois tem a Igreja como esposa. “Sua vida deve também estar iluminada e orientada por esta relação esponsal, que lhe pede ser testemunho do amor esponsal de Cristo, ser capaz de amar as pessoas com um coração novo, grande e puro, com autêntico desapego de si, com plena dedicação, contínua e fiel e, ao mesmo tempo, com uma forma especial de zelo (cf. 2 Cor 11, 2), com uma ternura que se reveste também com acentos do amor maternal, capaz de tomar a cargo das ‘dores de parto’ para que ‘Cristo’ seja formado nos fiéis (cf. Gal 4, 19)”.
“O princípio interno, a força que anima e orienta a vida espiritual do presbítero, enquanto configurado a Cristo Cabeça e Pastor, é a caridade pastoral, participação da caridade pastoral do mesmo Jesus Cristo”. O seu conteúdo essencial “é o dom de si, o dom total de si à Igreja, à imagem e em união com o dom de Cristo…” “Com a caridade pastoral, que converte o exercício do ministério sacerdotal num amoris officium, o sacerdote que recebe sua vocação ao ministério está em condições de fazer disso uma escolha de amor, pela qual a Igreja e as almas se tornam seu principal interesse”.

VI. CONCLUSÃO
O sacerdócio da Igreja Católica manifesta-se, pois, como um mistério inserido, por sua vez, no mistério da Igreja. Qualquer das questões que estão relacionadas com ele e sobretudo o problema grave e sempre actual do celibato, não pode ser considerado e resolvido por argumentos puramente antropológicos, psicológicos, sociológicos e, em geral, profanos e terrenos. Este problema, aliás, não pode ser resolvido com puras disposições disciplinares. Todas as manifestações da vida e das actividades do sacerdócio, a sua natureza e identidade, requerem, acima de tudo, uma justificação teológica. Aqui, no que diz respeito ao celibato, tentámos tratá-lo através da sua história, e apoiando-nos numa análise baseada nas fontes da Revelação. Note-se, falando no plano formal, que uma explicação satisfatória desse mistério não pode ser compatível com um tipo de linguagem meramente profano. Exige, pelo contrário, um modo elevado de expressão, digna do mistério. Além disso, considerando a natureza do sacerdócio católico, não é suficiente recorrer à reflexão sobre esse tema por razões, digamos assim, externas, ou seja, o que tornaria mais “funcional” o serviço da Igreja: a salvaguarda ou a renúncia do celibato? O sacerdócio do Novo Testamento não responde a uma noção funcional, como sucedia no caso do Antigo Testamento, mas é uma realidade ontológica, à qual só corresponde uma forma adequada de agir: a que é derivada do axioma agere sequitur esse, quer dizer, a acção segue ao ser. Ante essa Teologia do sacerdócio do Novo Testamento, que tem sido confirmada e aprofundada pelo Magistério oficial da Igreja, devemos perguntar-nos: essas razões que têm sido expostas a favor do celibato, falam só de sua “conveniência” ou de algo realmente necessário e irrenunciável? Não existe realmente um iunctum – um vínculo de unidade – entre sacerdócio e celibato? Somente com uma resposta adequada a esta pergunta se poderá responder a esta outra: poderia a Igreja decidir um dia a modificação da obrigação do celibato, ou aboli-la? Para não correr riscos na resposta a essa pergunta, deverá partir-se do facto de que o sacerdócio católico não foi estabelecido pelo Fundador da Igreja sobre os homens, que se transformam e mudam, mas sobre o mistério imutável da Igreja e do próprio Cristo.

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Laurent TOUZE, 
Célibat sacerdotal et théologie nuptiale de l’ordre, Dissertationes - Series Theologica, IX,  Edizioni Università della Santa Croce, Roma, 2002, 311 pp.
Mais informações aqui.

Laurent TOUZE
L'avenir du célibat sacerdotal et sa logique sacramentelle, Lethielleux, Collection Culture et Religion, Paris, 2009. 
Mais informações aqui.


Roman Cholij, Priestly celibacy in patristics and in the history of the Church, disponível aqui em inglês, ou, em português (do Brasil), aqui.