domingo, dezembro 23, 2012

Et incarnatus est


I. In principio erat Verbum

In principio erat Verbum, Evangelhos de Lindsfarne, Biblioteca Britânica (séc. VII)

Começamos por uma evidência: quando falamos, pensamos. Embora às vezes pareça haver pessoas que falam sem pensar, a verdade é que, antes de qualquer palavra que dizemos, há sempre um pensamento que está na sua base. Em alguns casos é um «bom pensamento», e noutros, um «mau pensamento».
Todas as nossas palavras têm na base um pensamento. No entanto, nem todos os pensamentos se exprimem em palavras. Há muitos pensamentos que permanecem silenciosos dentro de nós. Esses pensamentos são palavras silenciosas dentro de nós. A maior parte deles nunca serão traduzidos em palavras sonoras. E podemos dizer que essas palavras silenciosas, esses pensamentos interiores, são «gerados» pela nossa alma. (Isso torna-se mais evidente no termo «conceito». O «conceito» é concebido pela nossa mente, é «gerado» pela nossa alma). Portanto, o nosso pensamento é como que se fosse «filho» da nossa alma.
Em Deus também acontecerá assim? Sim, em Deus também há uma palavra interior, silenciosa, infinita e eterna, a que se chama Verbo. “Verbo” vem do latim “Verbum”, que significa exactamente “palavra”. (Em grego diz-se “Logos”, que se traduz em latim precisamente por “Verbum”).  
O Verbo é a Palavra silenciosa e eterna gerada em Deus. Porque é gerado, o Verbo chama-se Filho. E Aquele que gera, chama-Se Pai. São as duas primeiras Pessoas da Santíssima Trindade: o Pai e o Filho. E há ainda uma terceira Pessoa: o Espírito Santo, que é Amor, (de quem falaremos noutro momento).
No seu comentário ao Símbolo dos Apóstolos, S. Tomás de Aquino explica: “O Filho de Deus é tão-só o Verbo de Deus, não como um verbo exteriormente proferido, porque tal verbo passa, mas como um verbo interiormente concebido; por isso, o próprio Verbo de Deus é de uma só natureza com Deus e igual a Deus”.
E continua, citando o Evangelho de S. João: “S. João, quando falou do Verbo de Deus, destruiu as três heresias atrás referidas: a de Fotino, quando disse: “No princípio era o Verbo”; a de Sabélio, quando disse: “e o Verbo estava em Deus”; e a de Ario, quando disse: “e o Verbo era Deus” (João 1, 1)”.
In principio erat Verbum...”: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus”: assim começa o Prólogo do Evangelho de S. João, que iremos ler na Missa do Dia de Natal.
Até há alguns anos, este texto era lido pelo sacerdote no final de todas as Missas. Agora só se lê no Natal, na Missa do Dia, em que é ouvido talvez sem grande atenção, e por isso este texto tão belo e profundo, que raramente é comentado pelos sacerdotes, está bastante esquecido.
Mais adiante, S. João escreve: “E o Verbo fez-Se carne, e habitou entre nós” (João 1, 14). “O Verbo fez-Se carne…”: estas é a mensagem central de S. João e de todo o Cristianismo. Voltaremos a este texto mais adiante, porque nele está contido o significado do Natal, o verdadeiro Mistério do Natal.
Mas primeiro, continuando a seguir a exposição de S. Tomás de Aquino, no seu comentário ao Símbolo dos Apóstolos, vamos retirar algumas consequências que vêm para a nossa vida pelo facto de Jesus ser o Filho de Deus, o Verbo de Deus:
1.       Ouvir: “Em primeiro lugar, se o Verbo de Deus é o Filho de Deus e todas as palavras de Deus possuem alguma semelhança com esse Verbo, todos nós devemos ouvir com satisfação as palavras de Deus. Se ouvirmos com prazer as palavras de Deus, isto é sinal de que amamos a Deus”.
2.       Acreditar: “Em segundo lugar, devemos crer nas palavras de Deus, porque é assim que o Verbo de Deus habita em nós, isto é, Cristo, que é o Verbo de Deus”.
3.       Meditar: “Em terceiro lugar, convém que sempre tenhamos o Verbo de Deus, que permanece em nós, como objecto das nossas meditações. Não é conveniente apenas crer, mas é necessário também meditar, pois de outro modo, a fé não nos seria útil. A meditação sobre o Verbo de Deus é muito útil contra o pecado. Lê-se nos Salmos: «Guardei no meu coração a Vossa palavra, para não pecar contra vós” (Salmo 118, 11). Lê-se, ainda, a respeito do homem justo: «na lei do Senhor medita dia e noite» (Salmo 1, 2). Por isso, se diz da Bem-aventurada Virgem Maria que «conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração» (Lucas 2, 51).
4.       Comunicar: “Em quarto lugar, convém que o homem comunique aos outros a palavra de Deus, advertindo, pregando e inflamando. Encontram-se nas cartas de S. Paulo os seguintes textos: «Que nenhuma palavra má proceda da vossa boca, mas somente as boas palavras que edificam» (Efésios 4, 29). “Que a palavra de Cristo habite em vós abundantemente, com toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros” (Colossenses 3, 16); “Prega a palavra, insiste, oportuna e inoportunamente, repreende, exorta e ameaça, com toda a paciência e doutrina” (2 Timóteo 4, 2).
5.       Cumprir: “Em último lugar, devemos cumprir o que a palavra de Deus determinou. Lê-se em S. Tiago: “Sede realizadores da palavra de Deus e não apenas ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tiago 1, 22).

Com Tomás de Aquino, dirigimos com admiração o nosso olhar para Nossa Senhora, em cujo seio o Verbo Se fez Carne, em cujas entranhas puríssimas o Filho de Deus Se fez homem! “A Bem-aventurada Virgem Maria observou, por ordem, estas cinco coisas, ao gerar em si o Verbo de Deus. Primeiro, escutou: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (Lucas 1, 35). Depois, consentiu mediante a fé: “Eis aqui a escrava do Senhor” (Lucas 1, 38). Em terceiro lugar, recebeu-O e levou-O no seu seio. Em quarto lugar, pronunciou-O e deu-O a luz. Em quinto lugar, alimentou-O e amamentou-O”.

 II. Et incarnatus est
Nós temos palavras silenciosas, que são os nossos pensamentos, que às vezes se ouvem, quando falamos, e outras vezes até as escrevemos em papel ou noutros suportes, e assim é possível guardá-las, quase tocá-las… 
Também em Deus, como dissémos, há um pensamento silencioso, o seu Verbo eterno, que é o Filho de Deus, gerado pelo Pai. O Verbo de Deus, o seu pensamento eterno e silencioso, seria sempre para nós inteiramente inacessível, a não ser pelas suas obras, mas um dia pôde ser ouvido, pode ser escutado, e até ser visto pelos homens!
S. Tomás de Aquino, no seu Comentário ao Símbolo dos Apóstolos, explica:
“O Verbo de Deus não era conhecido senão pelo Pai, enquanto estava no seio do Pai. Mas logo que se revestiu da carne, tal como o verbo se reveste da voz, tornou-se manifesto e conhecido. Lê-se na Escritura: «Depois disso foi visto na terra, e conviveu com os homens» (Baruc 3, 38)”.
O Verbo de Deus foi ouvido e visto, mas além disso foi também “tocado”, como acontece de certo modo com as palavras que escrevemos:
“Assim também – escreve S. Tomás – o Verbo de Deus tornou-se visível e palpável, quando foi, de certo modo, escrito na nossa carne…”.
O Verbo de Deus fez-Se carne, fez-Se homem, e começou por ser um Menino recém-nascido. Dentro de poucos dias vamos celebrar o Natal, e em todas as missas, quer da noite, quer da aurora, quer do dia, iremos ajoelhar às palavras do Credo:

ET INCARNATUS EST DE SPIRITU SANCTO EX MARIA VIRGINE: ET HOMO FACTUS EST.
 
E ENCARNOU PELO ESPÍRITO SANTO, NO SEIO DA VIRGEM MARIA, E SE FEZ HOMEM.
 


Presépio do Portal Poente da Igreja dos Jerónimos - Nicolau de Chanterenne (1517)

“O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós”, escreve S. João (1, 14). Como diz o Símbolo dos Apóstolos, “foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria”.
Que benefícios tiramos da Encarnação do Filho de Deus? Grandes benefícios, como são principalmente os seguintes, segundo o Doutor Angélico:
1.       “Confirma-se a nossa fé”. Conhecemos muito mais perfeitamente quem é Deus, como diz S. João: “A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer” (João 1, 18). Por isso, “muitos mistérios da fé, que antes estavam velados, nos foram revelados após a vinda de Cristo”.
2.       “Eleva-se a nossa esperança”. Ao fazer-Se homem, o Filho de Deus efectuou “uma certa troca, ou seja, assumiu um corpo com uma alma, e dignou-se nascer da Virgem, para nos fazer o dom da sua divindade; fez-Se homem, para fazer o homem, Deus”. Extraordinária consequência! E pensar que, por vezes, os homens fazem tudo para se tornarem animais! Mas o nosso destino e a nossa glória, como diz S. Paulo, está “na esperança da glória dos filhos de Deus” (Romanos 5, 2).
3.       “Inflama-se a caridade”. S. João não se cansa de nos lembrar que “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito” (João 3, 16). “Portanto, por esta consideração, se deve reacender e inflamar o nosso amor para com Deus”.
4.       “Em quarto lugar, para conservação da pureza de nossa alma”. A natureza humana foi elevada à união com uma Pessoa divina. A Encarnação do Filho de Deus deu à humanidade uma dignidade inaudita. “O homem, pois, reconsiderando e atendendo à sua própria exaltação, deve perceber como se degrada e avilta a si e à sua natureza, pelo pecado”.
5.       “Em quinto lugar – conclui S. Tomás – a meditação dos mistérios da Encarnação aumenta em nós o desejo de nos aproximarmos de Cristo”. E usa uma comparação: “Se alguém, irmão de um rei, estivesse longe dele, naturalmente desejaria aproximar-se dele, estar com ele, permanecer junto dele. Ora, sendo Cristo nosso irmão, devemos desejar estar com Ele e unirmo-nos a Ele. (…) S. Paulo desejava partir para estar com Cristo: esse desejo cresce também em nós pela consideração do mistério da Encarnação”.
Concluindo

Às vezes fala-se da actual crise económica, como se fosse a pior calamidade que alguma vez nos poderia acontecer, mas isso é de um grande irrealismo, como se não tivesse havido ou não possa vir a haver crises muito maiores! Há que relativizar a crise, sem esquecer, evidentemente, os que ela possa afectar mais gravemente, sobretudo os doentes, os idosos, as famílias onde há pessoas sem trabalho, e que é preciso ajudar e apoiar.
Mas que ninguém cometa o erro de celebrar o Natal mais tristemente, só por causa da crise. Mesmo com dificuldades, é possível ter um Natal feliz e alegre. Veja-se a alegria de Nossa Senhora, quando rapidamente se pôs a caminho, ao encontro de Isabel, que estava para ser mãe. E veja-se a alegria daquele que viria a ser S. João Baptista, então ainda no seio de Isabel, tocado pela presença oculta do Salvador, no seio de Maria, sua Mãe (Lucas 1, 39-41).
Também nós, levando Jesus no coração, podemos transmitir aos outros a alegria do seu Santo Nascimento!
Vamos viver um Natal cristão, na simplicidade e na alegria, no ambiente unido e caloroso das nossas famílias e na assembleia sagrada e festiva da grande Igreja. Nas poucas horas que restam, que não fique ninguém sem receber o perdão de Deus na Confissão, para poder fazer da sua alma o presépio vivo do Verbo Encarnado, do Filho de Deus feito homem.

sexta-feira, dezembro 21, 2012

A nova Eva


O primeiro homem e a primeira mulher recebem na Sagrada Escritura o nome de Adão e Eva, como se lê no Génesis.

 
Pe. Marko Rupnik, Adão e Eva, Sacristia da Catedral de Santa Maria Reale da Almudena, Madrid (2005)


Existiram mesmo Adão e Eva? Sim, a Igreja ensina-nos que existiu um primeiro homem e uma primeira mulher criados por Deus: o seu corpo pode ter vindo de uma matéria pré-existente, (eventualmente a partir de outros seres inferiores, chamados hominídeos), mas a sua alma foi directamente criada por Deus, e foi isso que os tornou humanos.

Os nomes que a Sagrada Escritura lhes dá têm um inegável simbolismo e uma grande beleza, que vale por si. São os nossos primeiros pais.

Como verdadeiramente humanos, tinham as mesmas capacidades e necessidades naturais que nós temos. Tinham fome e sede, sentiam frio e calor, etc., eram capazes de pensar, de raciocinar, de abstrair, conheciam coisas e possuíam, como nós, uma infinita capacidade de conhecer mais coisas. Tinham também sentido religioso, uma vez que, como seres humanos, seriam capazes de conhecer a causa última de todas as coisas e o supremo bem, que é Deus.

Como simples seres humanos, poderiam ser felizes, embora de um modo imperfeito e incompleto, como acontece com todos.

Mas Deus tinha-lhes oferecido também outros dons, que iam para além da natureza: podiam viver harmoniosamente consigo mesmos e com o mundo, não tinham uma inclinação mais forte para o mal do que para o bem, e podiam não morrer (ou morrer de outra maneira, sem ser deste modo tão duro e tão doloroso, como acontece connosco).

Deus tinha-lhes também oferecido dons sobrenaturais propriamente ditos: estavam unidos a Deus, tinham um fortíssimo sentimento da presença de Deus, tinham nas suas almas a graça de Deus.

Mas estes dons estavam condicionados à obediência dos nossos primeiros pais, e, segundo o Génesis, Adão e Eva não obedeceram. O problema não foi tanto comer aquele “fruto”, mas a rebelião para com o Criador. E, devido a essa desobediência, a que se chamou mais tarde “pecado original”, perderam a graça de Deus e todos os dons que iam para além da natureza.

Todos esses dons eram totalmente gratuitos (como acentua Pio XII, na Encíclica Humani generis, n. 26). Não os podiam exigir. Quando os perderam, ficaram entregues a si próprios: Deus não os abandonou, mas o paraíso fechou-se.

Começou então uma longa caminhada, difícil e árdua, que continuará enquanto existirem seres humanos sobre a terra.

A partir de então, todos os homens nascem sem Deus na sua alma, como alguém que recebe em herança um terreno que poderia ser uma grande vinha ou uma bela seara ou um jardim encantador, mas que é apenas um terreno inculto, embora, com grande esforço, possa vir a ser cultivado, e produzir uma boa colheita, ou ser coberto de flores maravilhosas.

Graças à dolorosa Paixão e morte de Cristo, recuperámos a amizade de Deus e a graça divina pode ser-nos de novo comunicada, como acontece pela primeira vez no nosso baptismo.

Já quanto aos dons que iriam para além da natureza, não os recuperaremos nunca mais: teremos sempre esta inclinação para o mal (embora a possamos vencer, com a ajuda de Deus), esta desarmonia interior, este desequilíbrio em relação ao mundo exterior, esta necessidade de morrer com uma morte que é separação e divisão. 

Entretanto, o primeiro pecado, com o estado de privação e desarmonia que trouxe consigo, abriu as portas a muitos outros males e pecados, como um rio que transborda as margens e entra nas casas, inundando tudo e muitas vezes levando consigo a morte e a destruição.

Todos os homens foram (e são) atingidos, menos uma única pessoa: a Mãe do Salvador, cujo doce nome é Maria, não foi atingida pela maré negra do pecado original e dos outros pecados pessoais. Assim o proclama e canta da fé da Igreja. Nunca foi manchada, não precisou de ser limpa. Nunca foi ferida, não precisou de ser curada. Foi protegida por Deus, foi preservada do pecado, tendo Deus em vista os méritos futuros da morte de Cristo, do seu sacrifício, oferecido e aceite por amor.

A Santa Maria, Deus não precisa de perguntar: «Que fizeste?» Só tem que lhe anunciar o seu plano, segundo o qual ela será mãe do Filho eterno, a quem dará a humanidade que Ele quis partilhar connosco

E então ela responderá: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”. 

A Eva, Deus perguntou: «Que fizeste?», Mas Maria, a nova Eva, diz simplesmente "Faça-se, Fiat mihi secundum verbum tuum".

Um antigo monge do Oriente, S. Simeão o Novo Teólogo (c. 949-1022), num famoso hino (Hino 53), apresenta as consequências da cegueira espiritual humana:

 
Quando criei Adão, permiti-lhe que Me visse
e por isso que ficasse colocado na dignidade dos anjos. [...]
Ele via tudo o que Eu havia criado com os seus olhos corpóreos,
mas com os da inteligência
via o Meu rosto, o rosto do seu Criador.
Contemplava a Minha glória
e conversava Comigo o tempo todo.
Mas quando, transgredindo as Minhas ordens,
provou da árvore,
ficou cego
e caiu na obscuridade da morte. [...]

Mas Eu tive piedade dele e vim lá do alto.
Eu, o absolutamente invisível,
partilhei a opacidade da carne.
Recebendo da carne um começo, tornado homem,
fui visto por todos.
Por que aceitei fazer isso?
Porque esta era a verdadeira razão
para ter criado Adão: para Me ver.
Quando ele ficou cego
e, na sequência dele, todos os seus descendentes,
não suportei permanecer
na glória divina e abandonar [...]
aqueles que criara com as Minhas mãos;
mas tornei-Me semelhante em tudo aos homens,
corporal com os corporais,
e uni-Me a eles voluntariamente.
Por aqui podes ver o Meu desejo de ser visto pelos homens. [...]
Como podes então dizer que Me escondo de ti,
que não Me deixo ver?
Na verdade, Eu brilho, mas tu não olhas para Mim.

A Mãe de Deus fez voto de virgindade?


Beato Angélico, Anunciação (porm.) 
 
Precioso ensinamento de S. Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, IIIª parte, questão 28, artigo 4:
 

A Mãe de Deus fez voto de virgindade?

Objecções: 1. Diz a Escritura: Não haverá em ti estéril nem de um nem de outro sexo (Deut 8, 14). Ora, a esterilidade é consequente à virgindade. Logo, a conservação da virgindade era contra o preceito da lei antiga. Ora, a lei antiga ainda vigorava quando Cristo nasceu. Portanto, nesse tempo, a Santa Virgem não podia licitamente fazer voto de virgindade.
2. O Apóstolo diz: Quanto porém às virgens, não tenho mandamento do Senhor, mas dou conselho (1 Cor 7, 25). Ora, a perfeição do conselho devia começar com Cristo, que é o fim da lei (Rom 10, 4), como diz o Apóstolo. Logo, não foi conveniente que a Virgem fizesse voto de virgindade.
3. A Glosa a 1 Tim 5, 12 diz: Aos que fizeram voto de castidade é condenável não só casar, mas querer casar. Ora, a Mãe de Cristo não cometeu nenhum pecado condenável, como se estabeleceu. Logo, como foi desposada, parece que não fez voto de virgindade.
Em sentido contrário, Santo Agostinho escreve: Ao anjo que lhe anunciava, Maria respondeu: Como se fará isso, pois eu não conheço varão? O que certamente não diria, se antes não tivesse feito voto da sua virgindade a Deus (cf. De sancta virginitate, 4).
Resposta: Como estabelecemos na Segunda Parte, as obras de perfeição mais louváveis são quando celebradas com voto. Ora, a Virgindade devia por excelência resplender na Virgem Mãe, pelas razões já aduzidas. Por isso foi conveniente que consagrasse por voto a sua virgindade a Deus. Ora, no tempo da lei, tanto as mulheres como os varões deviam gerar, porque a propagação do culto de Deus dependia de uma nação rica em homens, antes de Deus ter nascido desse povo. Por isso, não se crê que a Mãe de Deus tivesse, absolutamente falando, feito voto de virgindade, antes de desposar José; mas, embora tivesse o desejo de o fazer, submeteu, contudo, a sua vontade ao arbítrio divino. Mas depois que recebeu esposo, como o exigiam os costumes do tempo, fez com ele voto de virgindade.
Soluções: 1. Como parecia proibido pela lei não se esforçar por deixar descendência na terra, a Mãe de Deus não fez voto de virgindade, absolutamente, mas, condicionalmente, isto é, se agradasse a Deus. Mas depois de ter conhecido que Deus assim o aceitara, fez voto absoluto de virgindade, antes da anunciação.
2. Assim como a plenitude da graça foi perfeita em Cristo, e contudo certas graças preexistiram incoativamente em sua mãe, assim também a observância dos conselhos, que se realiza pela graça de Deus, encontrou a sua primeira perfeição em Cristo, mas de algum modo teve início na Virgem, sua mãe.
3. As palavras citadas de S. Paulo devem entender-se como aplicáveis aos que fazem voto absoluto de castidade, o que a Mãe de Deus não fez antes de ter desposado José. Mas, depois de o ter desposado, ao mesmo tempo que o seu esposo e de comum acordo, fez voto de virgindade.
Assim, portanto, S. Tomás apela a uma intuição interior de Maria, suficientemente poderosa para a fazer entregar-se a Deus no próprio momento em que se desposa com José. Mas apela também a uma intuição semelhante em José, intuição que a mentalidade judaica de então não excluía forçosamente, como se vê nos essénios, ou em João Baptista. Que extraordinária perspectiva nos abre este pensamento sobre a união de Maria e de José! (Jean- Pierre Torrell O.P, Nota a Summa Theologiae, III, q. 28, a. 4, em : Somme Théologique, III, Ed. du Cerf, Paris, 1996, p. 226)
 

domingo, dezembro 16, 2012

Do homem em sentido biológico ao homem em sentido teológico

Do homem em sentido biológico ao homem em sentido teológico


A criação de Adão retratada no teto da Capela Sistina por Michelangelo


Alguns jovens filósofos norte-americanos, como Edward Feser e Kenneth W. Kemp têm realizado um esforço sério no sentido de reflectir sobre a compatibilidade das teorias científicas hoje mais consensuais sobre a origem do homem, nomeadamente no âmbito da genética, com os dados da Revelação divina, tal como o Magistério da Igreja os expôs e interpretou.

Sob a influência dessas hipóteses científicas, é fácil descartar como inútil a imagem do homem que se reflecte no Génesis ou na teologia tradicional.

E, no entanto, uma abordagem mais serena e objectiva poderá levar a conclusões diferentes, como fazem os autores acima citados, propondo, não uma visão «concordista» no sentido pejorativo da palavra, mas uma efectiva harmonia entre os dados da ciência e a doutrina da fé, o que, pensando bem, não é assim tão surpreendente que possa acontecer.

Toda a questão começa aqui: em diversos textos bíblicos, a origem da humanidade é feita remontar a um único homem. Nomeadamente, no discurso de S. Paulo em Atenas, lemos esta frase: Deus «fez, a partir de um só homem todo o género humano para habitar sobre toda a face da terra» (Actos 17, 26) (citado pelo Catecismo da Igreja Católica, n. 360). 

Recordemos outros dois textos, ambos de S. Paulo, que falam de “um só homem” mas agora olhado como origem da situação pecadora da humanidade.

No primeiro desses textos, da Epístola aos Romanos, lemos: “Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o género humano, porque todos pecaram...” (Romanos 5,12; cf. 5, 17-19).

E no segundo, da 1ª Carta aos Coríntios, lemos: “Assim como a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos voltarão à vida” (1 Coríntios 15,21-22).

No cânon 1 do Decreto sobre o pecado original da Sessão V do Concílio de Trento (de 17 de Junho de 1546), diz-se "que o primeiro homem Adão, depois de transgredir o preceito de Deus no paraíso, perdeu imediatamente a santidade e a justiça em que havia sido constituído; e que pela sua prevaricação incorreu na ira e indignação de Deus e por isso na morte que Deus antes lhe havia ameaçado, e, com a morte, na escravidão e no poder daquele que depois teve o império da morte (Hebreus 2, 14), a saber, o demónio; e que Adão, por aquela ofensa, foi segundo o corpo e a alma mudado para pior".

no séc. XX, o Papa Paulo VI, no Credo do Povo de Deus, proferido em 30 de Junho de 1968, na solene conclusão do Ano da Fé, usa uma linguagem semelhante:

“Cremos que todos pecaram em Adão; isto significa que a culpa original, cometida por ele, fez com que a natureza, comum a todos os homens, caísse num estado no qual padece as consequências dessa culpa. Tal estado já não é aquele em que no princípio se encontrava a natureza humana em nossos primeiros pais, uma vez que se achavam constituídos em santidade e justiça, e o homem estava isento do mal e da morte. Portanto, é esta natureza assim decaída, despojada de dom da graça que antes a adornava, ferida em suas próprias forças naturais e submetidas ao domínio da morte, é esta que é transmitida a todos os homens. Exactamente neste sentido, todo homem nasce em pecado. Professamos pois, segundo o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido juntamente com a natureza humana, pela propagação e não por imitação, e se acha em cada um como próprio” (n. 16).  

Também o Catecismo da Igreja Católica se refere ao “primeiro homem” (n. 374), retoma a expressão: “os nossos primeiros pais” (n. 375), e fala das consequências da sua “queda” para toda a humanidade (nn. 397-406).

Todos estes textos, como é sabido, se fundamentam nos capítulos 1 a 3 do livro do Génesis, onde lemos que os pais de toda a humanidade foram Adão e Eva, e também que o pecado de ambos afectou toda a sua descendência.

A ciência genética moderna, porém, leva a afirmar (como faz Francisco J. Ayala, num artigo de 1995) que os seres humanos actuais descendem de um grupo de cerca de 10.000 indivíduos, e não de dois indivíduos apenas.

Em face dos dados da ciência, nomeadamente da genética, há bastantes pessoas que pensam que devemos abandonar esta doutrina, ensinada pela Igreja durante séculos, ou pelo menos que devemos adaptá-la. Mas isso não afetará todo o edifício da fé?

A questão é muito importante, e há dois pontos principais que deveríamos esclarecer.

Primeiro: a biologia moderna permite afirmar que a raça humana começou com um único casal, de acordo com a história bíblica de Adão e Eva?

Segundo: a biologia moderna permite afirmar que este primeiro casal humano transmitiu a mancha do pecado original aos seus descendentes, por propagação e não por simples imitação?
 
 
Lucas van Leyden, Adão e Eva (Expulsão do paraíso) (1510)

Compartilho a abordagem do filósofo norte-americano Edward Feser, e concordo em que a resposta a ambas estas perguntas deverá ser: «Sim»! 

Hoje vou procurar brevemente mostrar porquê em relação à primeira pergunta e, numa próxima ocasião, em relação à segunda.

Ponto de partida: Que é o homem? Que é o ser humano?

Segundo o ponto de vista da filosofia de Aristóteles e de S. Tomás, a resposta será, sem dúvida, que o ser humano é um animal racional.

Atenção, sendo racionais, também somos animais, e somo-lo na medida em que temos as típicas capacidades dos animais em geral: nutrição, crescimento, reprodução, sensação, apetite e locomoção. Estas são capacidades puramente materiais, e requerem órgãos corpóreos para o seu exercício.
Mas somos racionais, na medida em que possuímos inteligência e vontade. Estas são capacidades imateriais, e não dependem directamente de nenhum órgão do nosso corpo, embora dependam desses órgãos indiretamente.

A inteligência implica a capacidade de formular conceitos abstratos, como por exemplo o conceito de homem, ou de ser mortal, de os associar em pensamentos completos, como o pensamento de que todos os homens são mortais, e de raciocinar de uns para os outros de acordo com as leis da lógica, como neste «silogismo»: Todos os homens são mortais – Sócrates é homem – Sócrates é mortal

Tudo isto está muito acima da sensação e da imaginação que partilhamos com os outros animais. Ora, o que nos torna capazes destas atividades imateriais, como por exemplo pensar, é a nossa alma espiritual.
No homem há anseios, profundos desejos, «brechas» que o levam a interrogar-se sobre Deus, e ao mesmo tempo lhe permitem detectar a sua alma imortal:

“Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o homem interroga-se sobre a existência de Deus. Nestas aberturas, ele detecta sinais da sua alma espiritual. «Gérmen de eternidade que traz em si mesmo, irredutível à simples matéria», a sua alma só em Deus pode ter origem” (Catecismo da Igreja Católica, n. 33).

A alma humana não pode ter uma origem material. Na verdade, tem de ser directamente criada por Deus, sempre que um novo ser humano começa a existir.

O Catecismo da Igreja Católica, citando Pio XII e Paulo VI, lembra expressamente que “a Igreja ensina que cada alma espiritual é criada por Deus de modo imediato e não produzida pelos pais; e que é imortal, isto é, não morre quando, na morte, se separa do corpo; e que se unirá de novo ao corpo na ressurreição final” (n. 366).

Na alma, não há evolução possível. Em relação ao corpo humano, sim, pode ter havido evolução, e até uma longa evolução. Mas em relação à alma, não: ou ela existe ou não existe. E, se existe, só pode ter sido criada por Deus.
Em 1950, na Encíclica Humani generis, Pio XII deu liberdade para se admitir a evolução em relação ao corpo humano:
 
“O Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com o atual estado das ciências e da teologia, seja objeto de investigações e discussões, entre peritos de ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto essa investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria viva preexistente – pois a fé nos obriga a afirmar que as almas são diretamente criadas por Deus” (n. 36).
 
Já em relação aos «pais» da humanidade, Pio XII exclui o poligenismo, e afirma que não é aceitável afirmar que haja homens que não sejam descendentes de Adão:
 
“Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais; pois não se vê de modo nenhum de que modo tal afirmação pode harmonizar-se com o que as fontes da verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um deles (cfr. Romanos 5, 12- 19; Concílio de Trento. sess. V, can. 1-4)" (n. 37).
 
Então, como surgiu o homem?

Admitindo que tenha havido uma evolução física em relação ao homem, à luz da fé podemos formular a hipótese de que, num grande grupo de «humanos» em sentido puramente biológico, houve um par que foi dotado por Deus de uma alma espiritual; e estes foram, em sentido metafísico e em sentido teológico, o primeiro homem e a primeira mulher.

É a eles que a Sagrada Escritura dá os nomes, expressivos e belos, de Adão e Eva.

A partir daí, todos os descendentes de Adão receberão – como nós próprios recebemos – uma alma espiritual. É isso que nos faz humanos.

Como se explica então que a população humana moderna tenha os genes de vários milhares de indivíduos?

O filósofo americano Kenneth W. Kemp, propõe esta explicação (num artigo que seria bom ler na íntegra):
 
“Estes primeiros verdadeiros seres humanos também têm descendentes, que continuariam, em certa medida, a cruzar-se com os hominídeos não dotados de alma entre os quais vivem. Se Deus tiver dotado cada indivíduo com um só ancestral metafisicamente humano de um intelecto próprio, uma taxa razoável de sucesso reprodutivo e uma razoável vantagem selectiva levariam a substituir facilmente uma população de hominídeos não dotados de alma de 5.000 indivíduos, por uma população (filosoficamente e, se os dois conceitos são equivalentes, teologicamente) humana no prazo de três séculos. Ao longo deste processo, todos os (teologicamente) seres humanos seriam descendentes de um único casal humano original (no sentido de terem aquele casal humano entre os seus antepassados) sem nunca ter havido um 'engarrafamento' populacional na espécie humana”.
 
Os homens actuais seriam assim, ao mesmo tempo, descendentes de um só par e de uma população inicial de milhares de indivíduos, como explica Edward Feser:
 
"Assim não há nenhum problema em conciliar as alegações em questão. No cenário proposto, a população humana moderna tem os genes que tem, porque é descendente de um grupo de vários milhares de indivíduos, dos quais só dois tinham almas espirituais. Mas somente aqueles indivíduos que tinham este par entre os seus antepassados (mesmo que eles também tivessem como antepassados membros do grupo original que não tinha almas imateriais) têm descendentes que vivem hoje. Nesse sentido, todos os seres humanos modernos são tanto descendentes de uma população original de milhares como de um par original. Não há nenhuma contradição porque a alegação de que os seres humanos modernos são descendentes de um par original não implica que eles tenham recebido todos os seus genes desse par apenas. Como Flynn salienta, críticos como Jerry Coyne confundem a alegação de que há um homem de quem todos os seres humanos modernos são descendentes - uma declaração que faz parte da doutrina do pecado original - com a alegação de que todos os seres humanos modernos são descendentes de um único homem - uma afirmação que não precisa de ser entendida como parte da doutrina. E como Flynn também aponta, é, sem dúvida, só do macho do par, e não do casal, que a doutrina exige que todos os seres humanos modernos sejam descendentes".
 
Aqui está uma boa via para reconciliar a doutrina da criação do homem, tal como a expõe o Magistério recente, com os factos genéticos. Não é concordismo, trata-se simplesmente de levar a sério, sem excluir nenhuma, tanto a doutrina da fé como a abordagem científica.

CONCLUSÃO

Existem pensadores contemporâneos não fundamentalistas nem criacionistas, mas claramente favoráveis às hipóteses evolucionistas, para quem esta via faz sentido. Se puderem, leiam os textos citados na íntegra, e formulem o vosso juízo.

Criado por Deus, dotado de uma alma espiritual, e mesmo que o seu corpo provenha de uma “matéria pré-existente” (como diz Pio XII), o homem é capaz de pensar e querer, e mais ainda de conhecer e amar a Deus, de O servir e Lhe obedecer.

Será também por isso que, todos os anos, no 1º Domingo do Advento, a Igreja nos propõe cantar no Intróito da Missa:

Ad te levavi animam meam: Deus meus, in te confido, non erubescam (...), Para Vós, Senhor, elevo a minha alma; meu Deus, em Vós confio. Não seja confundido, nem de mim escarneçam os inimigos. Não serão confundidos os que esperam em Vós” (Salmo 24 [25], 1-3)

 
 

 




 
 


segunda-feira, novembro 26, 2012

Onde está o seu reino?

Celebramos hoje a festa de Cristo Rei, que o Papa Pio XI instituiu com a Encíclica Quas primas, de 11 de Dezembro de 1925, fechando com chave-de-ouro aquele Ano Jubilar. (Na altura, foi escolhido o último domingo de Outubro para a nova festa. No calendário actual é celebrada no domingo que antecede o 1º Domingo do Advento).



No Evangelho de hoje, Jesus diz de Si mesmo, dirigindo-Se a Pilatos: “É como dizes: sou Rei” (João 18, 37).

Mas, se Jesus é Rei, onde está o seu reino?
 
Está, ou deve estar, antes de mais, em nós, nos nossos corações. “Cristo deve reinar, em primeiro lugar, na nossa alma. (…) Se pretendemos que Cristo reine, temos de ser coerentes, começando por Lhe entregar o nosso coração” (S. Josemaría Escrivá, Cristo que passa, n. 181).
Isso não implica que já sejamos perfeitos. Basta que sejamos humildes e simples, como aquele burrinho sobre o qual Jesus montou, quando entrou em Jerusalém. “Se a condição para que Jesus reinasse na minha alma, na tua alma, fosse contar previamente em nós com um lugar perfeito, teríamos razão para desesperar. Mas não temas, filha de Sião; eis que o teu Rei vem montado num jumentinho. Vedes? Jesus contenta-se com um pobre animal por trono” (ibid.).

Mas, além de reinar em nós, gostaríamos muito que Jesus reinasse no coração de todos os homens.
 
Isto não significa que a fé possa ser imposta. Esta convicção acompanhou sempre a acção apostólica da Igreja.

Por exemplo, no séc. XIX, o Papa Leão XIII, na Encíclica Imortale Dei, (de 1 de Novembro de 1885), reafirmou esta doutrina, citando um ensinamento de Santo Agostinho: “É costume da Igreja velar com o maior cuidado para que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente Santo Agostinho, «o homem não pode crer senão querendo» (Homilia XXVI sobre S. João, n. 2)".
 
A fé não pode ser imposta. Mas deve ser proposta. Disse Bento XVI, na homilia da Missa que celebrou no Porto, em 14 de Maio de 2010: “Nada impomos, mas sempre propomos, como S. Pedro nos recomenda numa das suas cartas: «Venerai Cristo Senhor em vossos corações, prontos sempre a responder a quem quer que seja sobre a razão da esperança que há em vós» (1 Pedro 3, 15).

E em Munique, na homilia de uma Missa celebrada em 10 de Setembro de 2006, disse: “Não impomos esta fé a ninguém. Um semelhante género de proselitismo é contrário ao cristianismo. A fé pode desenvolver-se unicamente na liberdade. Mas é à liberdade dos homens que apelamos para que se abram a Deus, O procurem, O ouçam".

Sim, propomos, convidamos, desafiamos, mostramos como é bom acreditar, mostramos como a vida se torna melhor, mais feliz, mesmo com lágrimas, mesmo com lutas, quando acreditamos em Deus, quando seguimos Jesus Cristo, na sua Igreja.

Finalmente, julgo poder dizer que desejaríamos que a sociedade, nas suas escolhas mais profundas e decisivas, fosse inspirada pela mensagem do Evangelho, e que Jesus fosse também Rei das sociedades e das comunidades humanas.
Leão XIII, na Encíclica atrás citada, elogiou os tempos em que “a filosofia do Evangelho governava os Estados”.
 
“Nessa época – escreveu o Papa da Rerum Novarum – a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer” (Encíclica Imortale Dei, n. 28).
É fundada esta análise de Leão XIII? São melhores as sociedades inspirada pelo Evangelho? Em Portugal, foram, por exemplo, os tempos de D. João I e do Santo Condestável, S. Nuno de Santa Maria. Seriam tempos melhores ou piores que os de hoje?
Dizer que eram bons os tempos em que “a filosofia do Evangelho governava os Estados” nem não significa de forma nenhuma que seja a Igreja quem deve governar a sociedade, nem que o Papa, os Bispos ou os sacerdotes devam assumir responsabilidades de governação ou quaisquer funções políticas.
Para isso é que existem os governos e as instituições políticas dos diversos povos, sujeitas ao sufrágio das populações.
Mas significa que as sociedades deveriam sempre inspirar-se na “sabedoria cristã”, e portanto respeitar Deus e a sua Lei, e nunca promover ou permitir a aprovação de leis que manifestamente violam a lei moral ou a lei natural. E também que nunca deveriam desistir das suas responsabilidades sociais, e que nunca deveriam deixar entregues à sua sorte os mais débeis e mais pobres.
Se a sabedoria do Evangelho inspirasse as sociedades, não seria muito melhor do que estas serem regidas pelo agnosticismo ou dominadas pela ditadura do relativismo, como actualmente acontece? Não será esta a única solução dos males dos nossos tempos?
 
Pio XI, na Encíclica Quas primas, explica que Cristo é Rei não apenas em sentido metafórico, mas no sentido próprio da palavra. O seu Reino não é deste mundo (João 18, 36), porque não tira deste mundo a sua origem, mas estende-se a este mundo, e nele começa a realizar-se, para um dia florescer eternamente no Céu.
O Reino de Cristo na sociedade humana, desde as famílias ao Estado, é um ideal a atingir.
As condições históricas tornam hoje muito difícil a sua realização, mas não devemos desistir que Cristo reine, não só nos corações, mas também nas sociedades, que serão assim mais equilibradas, mais justas, mais respeitadoras das legítimas diversidades, e também mais fraternas, mesmo com dificuldades, porque alicerçadas na sabedoria de Deus, e construídas na obediência a Jesus Cristo, Redentor, Rei e Amigo de todos os homens.