domingo, dezembro 16, 2012

Do homem em sentido biológico ao homem em sentido teológico

Do homem em sentido biológico ao homem em sentido teológico


A criação de Adão retratada no teto da Capela Sistina por Michelangelo


Alguns jovens filósofos norte-americanos, como Edward Feser e Kenneth W. Kemp têm realizado um esforço sério no sentido de reflectir sobre a compatibilidade das teorias científicas hoje mais consensuais sobre a origem do homem, nomeadamente no âmbito da genética, com os dados da Revelação divina, tal como o Magistério da Igreja os expôs e interpretou.

Sob a influência dessas hipóteses científicas, é fácil descartar como inútil a imagem do homem que se reflecte no Génesis ou na teologia tradicional.

E, no entanto, uma abordagem mais serena e objectiva poderá levar a conclusões diferentes, como fazem os autores acima citados, propondo, não uma visão «concordista» no sentido pejorativo da palavra, mas uma efectiva harmonia entre os dados da ciência e a doutrina da fé, o que, pensando bem, não é assim tão surpreendente que possa acontecer.

Toda a questão começa aqui: em diversos textos bíblicos, a origem da humanidade é feita remontar a um único homem. Nomeadamente, no discurso de S. Paulo em Atenas, lemos esta frase: Deus «fez, a partir de um só homem todo o género humano para habitar sobre toda a face da terra» (Actos 17, 26) (citado pelo Catecismo da Igreja Católica, n. 360). 

Recordemos outros dois textos, ambos de S. Paulo, que falam de “um só homem” mas agora olhado como origem da situação pecadora da humanidade.

No primeiro desses textos, da Epístola aos Romanos, lemos: “Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o género humano, porque todos pecaram...” (Romanos 5,12; cf. 5, 17-19).

E no segundo, da 1ª Carta aos Coríntios, lemos: “Assim como a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos voltarão à vida” (1 Coríntios 15,21-22).

No cânon 1 do Decreto sobre o pecado original da Sessão V do Concílio de Trento (de 17 de Junho de 1546), diz-se "que o primeiro homem Adão, depois de transgredir o preceito de Deus no paraíso, perdeu imediatamente a santidade e a justiça em que havia sido constituído; e que pela sua prevaricação incorreu na ira e indignação de Deus e por isso na morte que Deus antes lhe havia ameaçado, e, com a morte, na escravidão e no poder daquele que depois teve o império da morte (Hebreus 2, 14), a saber, o demónio; e que Adão, por aquela ofensa, foi segundo o corpo e a alma mudado para pior".

no séc. XX, o Papa Paulo VI, no Credo do Povo de Deus, proferido em 30 de Junho de 1968, na solene conclusão do Ano da Fé, usa uma linguagem semelhante:

“Cremos que todos pecaram em Adão; isto significa que a culpa original, cometida por ele, fez com que a natureza, comum a todos os homens, caísse num estado no qual padece as consequências dessa culpa. Tal estado já não é aquele em que no princípio se encontrava a natureza humana em nossos primeiros pais, uma vez que se achavam constituídos em santidade e justiça, e o homem estava isento do mal e da morte. Portanto, é esta natureza assim decaída, despojada de dom da graça que antes a adornava, ferida em suas próprias forças naturais e submetidas ao domínio da morte, é esta que é transmitida a todos os homens. Exactamente neste sentido, todo homem nasce em pecado. Professamos pois, segundo o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido juntamente com a natureza humana, pela propagação e não por imitação, e se acha em cada um como próprio” (n. 16).  

Também o Catecismo da Igreja Católica se refere ao “primeiro homem” (n. 374), retoma a expressão: “os nossos primeiros pais” (n. 375), e fala das consequências da sua “queda” para toda a humanidade (nn. 397-406).

Todos estes textos, como é sabido, se fundamentam nos capítulos 1 a 3 do livro do Génesis, onde lemos que os pais de toda a humanidade foram Adão e Eva, e também que o pecado de ambos afectou toda a sua descendência.

A ciência genética moderna, porém, leva a afirmar (como faz Francisco J. Ayala, num artigo de 1995) que os seres humanos actuais descendem de um grupo de cerca de 10.000 indivíduos, e não de dois indivíduos apenas.

Em face dos dados da ciência, nomeadamente da genética, há bastantes pessoas que pensam que devemos abandonar esta doutrina, ensinada pela Igreja durante séculos, ou pelo menos que devemos adaptá-la. Mas isso não afetará todo o edifício da fé?

A questão é muito importante, e há dois pontos principais que deveríamos esclarecer.

Primeiro: a biologia moderna permite afirmar que a raça humana começou com um único casal, de acordo com a história bíblica de Adão e Eva?

Segundo: a biologia moderna permite afirmar que este primeiro casal humano transmitiu a mancha do pecado original aos seus descendentes, por propagação e não por simples imitação?
 
 
Lucas van Leyden, Adão e Eva (Expulsão do paraíso) (1510)

Compartilho a abordagem do filósofo norte-americano Edward Feser, e concordo em que a resposta a ambas estas perguntas deverá ser: «Sim»! 

Hoje vou procurar brevemente mostrar porquê em relação à primeira pergunta e, numa próxima ocasião, em relação à segunda.

Ponto de partida: Que é o homem? Que é o ser humano?

Segundo o ponto de vista da filosofia de Aristóteles e de S. Tomás, a resposta será, sem dúvida, que o ser humano é um animal racional.

Atenção, sendo racionais, também somos animais, e somo-lo na medida em que temos as típicas capacidades dos animais em geral: nutrição, crescimento, reprodução, sensação, apetite e locomoção. Estas são capacidades puramente materiais, e requerem órgãos corpóreos para o seu exercício.
Mas somos racionais, na medida em que possuímos inteligência e vontade. Estas são capacidades imateriais, e não dependem directamente de nenhum órgão do nosso corpo, embora dependam desses órgãos indiretamente.

A inteligência implica a capacidade de formular conceitos abstratos, como por exemplo o conceito de homem, ou de ser mortal, de os associar em pensamentos completos, como o pensamento de que todos os homens são mortais, e de raciocinar de uns para os outros de acordo com as leis da lógica, como neste «silogismo»: Todos os homens são mortais – Sócrates é homem – Sócrates é mortal

Tudo isto está muito acima da sensação e da imaginação que partilhamos com os outros animais. Ora, o que nos torna capazes destas atividades imateriais, como por exemplo pensar, é a nossa alma espiritual.
No homem há anseios, profundos desejos, «brechas» que o levam a interrogar-se sobre Deus, e ao mesmo tempo lhe permitem detectar a sua alma imortal:

“Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o homem interroga-se sobre a existência de Deus. Nestas aberturas, ele detecta sinais da sua alma espiritual. «Gérmen de eternidade que traz em si mesmo, irredutível à simples matéria», a sua alma só em Deus pode ter origem” (Catecismo da Igreja Católica, n. 33).

A alma humana não pode ter uma origem material. Na verdade, tem de ser directamente criada por Deus, sempre que um novo ser humano começa a existir.

O Catecismo da Igreja Católica, citando Pio XII e Paulo VI, lembra expressamente que “a Igreja ensina que cada alma espiritual é criada por Deus de modo imediato e não produzida pelos pais; e que é imortal, isto é, não morre quando, na morte, se separa do corpo; e que se unirá de novo ao corpo na ressurreição final” (n. 366).

Na alma, não há evolução possível. Em relação ao corpo humano, sim, pode ter havido evolução, e até uma longa evolução. Mas em relação à alma, não: ou ela existe ou não existe. E, se existe, só pode ter sido criada por Deus.
Em 1950, na Encíclica Humani generis, Pio XII deu liberdade para se admitir a evolução em relação ao corpo humano:
 
“O Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com o atual estado das ciências e da teologia, seja objeto de investigações e discussões, entre peritos de ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto essa investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria viva preexistente – pois a fé nos obriga a afirmar que as almas são diretamente criadas por Deus” (n. 36).
 
Já em relação aos «pais» da humanidade, Pio XII exclui o poligenismo, e afirma que não é aceitável afirmar que haja homens que não sejam descendentes de Adão:
 
“Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais; pois não se vê de modo nenhum de que modo tal afirmação pode harmonizar-se com o que as fontes da verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um deles (cfr. Romanos 5, 12- 19; Concílio de Trento. sess. V, can. 1-4)" (n. 37).
 
Então, como surgiu o homem?

Admitindo que tenha havido uma evolução física em relação ao homem, à luz da fé podemos formular a hipótese de que, num grande grupo de «humanos» em sentido puramente biológico, houve um par que foi dotado por Deus de uma alma espiritual; e estes foram, em sentido metafísico e em sentido teológico, o primeiro homem e a primeira mulher.

É a eles que a Sagrada Escritura dá os nomes, expressivos e belos, de Adão e Eva.

A partir daí, todos os descendentes de Adão receberão – como nós próprios recebemos – uma alma espiritual. É isso que nos faz humanos.

Como se explica então que a população humana moderna tenha os genes de vários milhares de indivíduos?

O filósofo americano Kenneth W. Kemp, propõe esta explicação (num artigo que seria bom ler na íntegra):
 
“Estes primeiros verdadeiros seres humanos também têm descendentes, que continuariam, em certa medida, a cruzar-se com os hominídeos não dotados de alma entre os quais vivem. Se Deus tiver dotado cada indivíduo com um só ancestral metafisicamente humano de um intelecto próprio, uma taxa razoável de sucesso reprodutivo e uma razoável vantagem selectiva levariam a substituir facilmente uma população de hominídeos não dotados de alma de 5.000 indivíduos, por uma população (filosoficamente e, se os dois conceitos são equivalentes, teologicamente) humana no prazo de três séculos. Ao longo deste processo, todos os (teologicamente) seres humanos seriam descendentes de um único casal humano original (no sentido de terem aquele casal humano entre os seus antepassados) sem nunca ter havido um 'engarrafamento' populacional na espécie humana”.
 
Os homens actuais seriam assim, ao mesmo tempo, descendentes de um só par e de uma população inicial de milhares de indivíduos, como explica Edward Feser:
 
"Assim não há nenhum problema em conciliar as alegações em questão. No cenário proposto, a população humana moderna tem os genes que tem, porque é descendente de um grupo de vários milhares de indivíduos, dos quais só dois tinham almas espirituais. Mas somente aqueles indivíduos que tinham este par entre os seus antepassados (mesmo que eles também tivessem como antepassados membros do grupo original que não tinha almas imateriais) têm descendentes que vivem hoje. Nesse sentido, todos os seres humanos modernos são tanto descendentes de uma população original de milhares como de um par original. Não há nenhuma contradição porque a alegação de que os seres humanos modernos são descendentes de um par original não implica que eles tenham recebido todos os seus genes desse par apenas. Como Flynn salienta, críticos como Jerry Coyne confundem a alegação de que há um homem de quem todos os seres humanos modernos são descendentes - uma declaração que faz parte da doutrina do pecado original - com a alegação de que todos os seres humanos modernos são descendentes de um único homem - uma afirmação que não precisa de ser entendida como parte da doutrina. E como Flynn também aponta, é, sem dúvida, só do macho do par, e não do casal, que a doutrina exige que todos os seres humanos modernos sejam descendentes".
 
Aqui está uma boa via para reconciliar a doutrina da criação do homem, tal como a expõe o Magistério recente, com os factos genéticos. Não é concordismo, trata-se simplesmente de levar a sério, sem excluir nenhuma, tanto a doutrina da fé como a abordagem científica.

CONCLUSÃO

Existem pensadores contemporâneos não fundamentalistas nem criacionistas, mas claramente favoráveis às hipóteses evolucionistas, para quem esta via faz sentido. Se puderem, leiam os textos citados na íntegra, e formulem o vosso juízo.

Criado por Deus, dotado de uma alma espiritual, e mesmo que o seu corpo provenha de uma “matéria pré-existente” (como diz Pio XII), o homem é capaz de pensar e querer, e mais ainda de conhecer e amar a Deus, de O servir e Lhe obedecer.

Será também por isso que, todos os anos, no 1º Domingo do Advento, a Igreja nos propõe cantar no Intróito da Missa:

Ad te levavi animam meam: Deus meus, in te confido, non erubescam (...), Para Vós, Senhor, elevo a minha alma; meu Deus, em Vós confio. Não seja confundido, nem de mim escarneçam os inimigos. Não serão confundidos os que esperam em Vós” (Salmo 24 [25], 1-3)

 
 

 




 
 


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