A fé é um salto para o abismo?
1.
No relato das aparições de Jesus ressuscitado, segundo o Evangelho de S. João,
podemos distinguir dois momentos, e depois deles um terceiro, que acontece no
presente. Primeiro, a vinda de Jesus na tarde daquele dia, “o primeiro da
semana”: “Veio Jesus, colocou-Se no meio deles, e disse-lhes: «A paz esteja
convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram
cheios de alegria ao verem o Senhor” (João 20, 19-20).
Na
madrugada desse dia, já Maria Madalena tinha visto a pedra retirada do sepulcro:
“Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde O puseram” (João 20, 2).
Alertados por ela, Pedro e o “outro discípulo” correram ao sepulcro. Diante dos
sinais da morte de Jesus, as ligaduras e o sudário, que agora eram sinais de
vida, o discípulo que acompanhava Pedro “viu e acreditou” (João 20, 8).
A
eles se refere Jesus, ao dizer a Tomé, oito dias depois: “Porque me viste,
acreditaste. Felizes os que acreditaram sem terem visto” (João 20, 29). É bom
notar que a forma correcta do verbo, no texto original, é: acreditaram, e não:
acreditam. (Veja-se a versão da Neo-Vulgata: “Dicit ei Iesus: «Quia vidisti me,
credidisti. Beati, qui non viderunt et crediderunt!»”). Pedro e o outro
discípulo, antes de verem Jesus, acreditaram na sua ressurreição. Viram os
sinais, e acreditaram no mistério.
Jerôme Nadal (ed.), Aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos e a Tomé |
Daqui
podemos concluir que a fé não é cega nem irracional. Apoia-se em sinais, em
factos carregados de significado, que são como setas que mostram o caminho e
conduzem o homem até ao próprio mistério de Deus. Hoje, quase dois mil anos
depois, a nossa fé apoia-se no testemunho daqueles que viram: primeiro, viram
os sinais – o túmulo vazio, o sudário, as ligaduras – e depois viram o próprio
Jesus ressuscitado. Julgamos que o seu testemunho é digno de crédito, até porque
deram a vida por aquilo que anunciaram. Apoiados nesse testemunho, também nós
acreditamos, e a nossa fé é luminosa e serena, tranquila e forte.
2.
O segundo momento é o diálogo, muito breve, entre Tomé, “um dos Doze”, que “não
estava com eles quando veio Jesus”. Estes disseram-lhe: “Vimos o Senhor”. Mas
ele respondeu-lhes: “Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter
o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado, não acreditarei” (João 20,
24-25). Tomé recusa o testemunho dos seus companheiros, e com isto arrisca-se a
ficar definitivamente separado de Cristo e separado dos outros.
Relendo
este diálogo, podemos compreender melhor o que é a Igreja. A Igreja é uma
comunidade de fé, que vive o mistério da ressurreição de Cristo. Quando
entramos nela, a primeira coisa que nos dizem é: «Vimos o Senhor». Isto foi o
que nos disseram os Apóstolos.
E
porque foi isto que nos disseram os Apóstolos, as primeiras palavras que a
Igreja diz a quem a procura ou nela entra são: «Jesus ressuscitou». Se aceitamos
este anúncio, experimentamos a comunhão da Igreja, graças à qual “todos os que
haviam abraçado a fé viviam unidos e tinham tudo em comum”, como lemos nos
Actos dos Apóstolos (2, 44). Se o recusarmos, como inicialmente o recusou Tomé,
mergulhamos na solidão e no cepticismo. Ficamos sós, com os nossos preconceitos
e com o nosso egoísmo.
Tomé,
porém, não ficou só, porque o próprio Jesus, “oito dias depois”, o retirou da
solidão e da dúvida, mostrando-lhe as cicatrizes gloriosas da sua Paixão, e
dizendo-lhe, com um tom imperioso e amigo ao mesmo tempo: "Deixa de ser
incrédulo, torna-te crente!"
E
S. Tomé não se limita a reconhecer, com uma certa vergonha e arrependimento:
«Tinham razão, era verdade...» Mas faz um extraordinário acto de fé, que o leva
muito para além do que os seus olhos vêm. Tomé vê a humanidade ressuscitada de
Jesus Cristo, e reconhece a sua divindade: “Meu Senhor e meu Deus” (João 20,
28). Vê o sinal da humanidade glorificada de Jesus, e crê na divindade, que os
seus olhos não podiam ver. Afinal, também Tomé deu este salto – dos sinais para
o mistério, do visível para o invisível, que define o acto de fé, este passo em
frente, que também nós damos, que não nos lança no abismo, mas nos braços de
Deus.
3.
Terceiro momento: hoje. A liturgia do 2º Domingo da Páscoa convida-nos a fazer
o mesmo acto de fé em Jesus ressuscitado que os Apóstolos fizeram, e a dar com
eles este passo em frente, para além do que vemos ou sentimos.
Diante
de Jesus ressuscitado também nós dizemos: «Meu Senhor e meu Deus». Mas, ao
proceder assim, permitimos que Jesus Cristo nos leve mais longe do que alguma
vez podíamos tínhamos imaginado, no sentido de uma vida cristã mais coerente,
mais exigente, mais radical.
É
isto, no fundo, que significa celebrar a Páscoa: um grande deslumbramento, que
nos conduz a um novo seguimento de Jesus Cristo, a um compromisso total, a uma
obediência alegre, a uma entrega incondicional.
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