sexta-feira, novembro 06, 2015

A doutrina de Jesus sobre o matrimónio. I) Mateus 5, 31-32


Será que S. Mateus adapta ou suaviza os ensinamentos de Jesus sobre o matrimónio?



A vocação de S. Mateus - Altar-Mor da Igreja de S. Mateus, Breslávia, Polonia

 

  1. Mateus 5, 31-32
Vamos começar por ler Mateus 5, 31-32
Também foi dito: «Quem repudiar a sua mulher, dê-lhe libelo de repúdio». Eu, porém, digo-vos que todo aquele que repudiar a sua mulher, excepto no caso de união ilegal, fá-la cometer adultério; e quem casar com a repudiada, comete adultério.
(Na tradução latina, o que traduzimos por «excepto no caso de união ilegal», aparece como «excepta fornicationis causa», tanto na Vulgata como na Neo-Vulgata, como se pode ler aqui e aqui).

Este trecho tão breve - dois versículos apenas - reflecte sem dúvida o ensinamento do próprio Jesus Cristo.

Na verdade, não há dúvida, historicamente, de que Jesus defendia uma altíssima doutrina sobre o matrimónio, e defendia a sua indissolubilidade, uma posição provavelmente sem paralelos no judaísmo seu contemporâneo, ainda que não sem precedentes proféticos, particularmente no texto de Malaquias 2, 13-16.

Logo no início, com a expressão: “Também foi dito”, Jesus alude a Deuteronómio 24, 1-4, embora de uma forma resumida. Convém-nos parar um pouco neste passo do Deuteronómio.

O texto completo é um complicado fragmento de uma antiga lei que directamente se refere só ao caso particular de um segundo matrimónio com uma mulher que um homem tinha repudiado e que, tendo-se voltado a casar, foi de novo repudiada.

Vamos ler todo o texto. A maior parte das traduções fazem o texto dizer mais do que ele de facto diz, dividindo os períodos e autonomizando a referência ao libelo de repúdio:
“Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, se ela não achar graça aos seus olhos, por haver ele encontrado nela algo vergonhoso, far-lhe-á um libelo de repúdio e lho dará na mão, e a despedirá de sua casa” (Deuteronómio, 24, 1).

Mas o que o texto original diz é diferente, e tem um desenvolvimento que visa sobretudo excluir que a mulher repudiada possa vir a ser de novo recebida pelo primeiro homem que a repudiou, depois de ter contraído nova união. Assim se lê em Deuteronómio 24, 1-4 (numa tradução mais fiel ao texto original):

1Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, se ela não achar graça aos seus olhos, por ele ter encontrado nela algo vergonhoso, e lhe fizer um libelo de repúdio e lha der na mão, e a despedir de sua casa. 2e se ela, pois, saindo da casa dele, for, e se casar com outro homem, 3e este também a desprezar e, fazendo-lhe libelo de repúdio, lho der na mão, e a despedir de sua casa; ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer; 4então o seu primeiro marido, que a despedira, não poderá tornar a tomá-la por mulher, depois que foi contaminada; pois isso é abominação perante o Senhor. Não farás pecar a terra que o Senhor teu Deus te dá por herança .
 

(A tradução latina tanto da Vulgata como da Neo-Vulgata reflecte perfeitamente a complexidade redaccional deste texto, como se pode ler aquiaqui).

Nem este texto - nem qualquer outro do Antigo Testamento hebraico - declaram explicitamente lícito o divórcio ou o regulam juridicamente.

Indirectamente, porém, o texto de Deuteronómio 24, 1-4 admite a realidade do divórcio ou repúdio e, portanto, implicitamente, ratifica-o. E assim se entendeu em toda a tradição Judaica.

Mas Jesus contraria frontalmente esta visão tradicional, arguindo de adultério o homem que repudia a sua mulher, e igualmente aquele que casar com a repudiada (Mateus 5, 31-32).
 

2. A cláusula de Mateus 5, 32

Mas como entender a cláusula ou ressalva: “excepto no caso de concubinato” (Mateus 5, 32)?

Será que Mateus adapta ou suaviza os ensinamentos de Jesus sobre o matrimónio?

Diferentemente dos outros textos do Novo Testamento que falam do mesmo assunto (1 Coríntios 7, 11; Marcos 10, 11; Lucas 16, 18), S. Mateus, aqui e no capítulo 19, 9, (que leremos  noutro momento), contém esta famosa cláusula que introduz uma excepção.

Muitos pensam que se trata de um aditamento redaccional de Mateus ou da «tradição», facilitador em relação às exigentes palavras de Jesus Cristo.

É importante notar agora que a palavra que acima vertemos por «união ilegal» é o termo grego porneia, que designa uma conduta sexual ilícita e imoral, que poderia abranger o adultério, mas que não é o termo técnico para designar o adultério, que é antes moicheia.

São três as soluções propostas para o difícil problema desta cláusula:

1)      Primeira, a chamada solução greco-ortodoxa, entende porneia com o significado de adultério, e defende que a cláusula contém uma verdadeira excepção à proibição absoluta do divórcio e das segundas núpcias. Neste caso, a posição de Mateus seria a mesma da escola rabínica de Shammai e diferente da de Jesus. Mateus alteraria assim o ensinamento de Jesus, aceitando o adultério como causa de dissolução do matrimónio.

Mas há uma dificuldade para esta posição: a ser assim, o texto deveria ter moicheia e não porneia.

Esta posição foi defendida há alguns anos, com certa originalidade, numa tese de doutoramento, pelo Pe. Corrado Marucci, S.J. Segundo este autor, (que  publicou esta tese com o título Parole di Gesù sul divorzio ), esta cláusula do Evangelho de S. Mateus pretenderia proteger os cristãos que fossem cidadãos romanos, relativamente à famosa «lei Júlia contra o adultério».
Trata-se  da Lex Julia de adulteriis coercendis, do Imperador Augusto (promulgada em 17 a. C.), segundo a qual o marido era obrigado a denunciar a mulher adúltera e a pedir o divórcio, sob pena de ser acusado de lenocínio, o que comportava a pena de morte.
Para evitar  este perigo,  S. Mateus teria criado esta excepção, permitindo assim a um maridos cristão a prática do divórcio, no caso de adultério por parte da mulher. Mas a argumentação  de C. Marucci não foi considerado convincente.
 
2)      A solução clássica «católica» (defendida especialmente por Jaques Dupont, mas que já remonta a S. Jerónimo), sustenta que a cláusula não contém uma verdadeira excepção, porque não permite o divórcio, mas só a separação sem novo matrimónio, em caso de adultério. Mas, uma vez mais, há que notar que o texto não usa a palavra técnica para adultério.

3)      A solução hoje mais aceite é que a cláusula não contém uma verdadeira excepção à proibição do divórcio, porque o termo técnico que é decisivo, a palavra grega porneia, traduz o hebraico zenut, com o significado de «relações sexuais ilícitas», e que, no texto de S. Mateus, deve ser entendida como uma união incestuosa devida a um matrimónio entre graus de parentesco proibidos (Levítico 18, 6-18).   
Uma união deste tipo não seria um verdadeiro matrimónio, e não exigiria o divórcio, mas sim uma declaração de nulidade ou invalidez.

Deverá ser também este o sentido de porneia em Actos 15, 28-29:  “Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação (porneia)”.

Esta solução é a mais adequada ao texto. Não revela nenhum espírito de adaptação facilitadora por parte de S. Mateus, mas manifesta a sua sensibilidade legal, em que a sua lealdade para com Jesus não é de modo nenhum posta em causa. O evangelista não abre nenhuma excepção à exigente doutrina de Jesus, mas limita-se, por uma questão de clareza e de rigor, a salientar uma situação em que esta não se aplica, por não se tratar de verdadeiro matrimónio. 

Visto que a questão do divórcio é dolorosa, é bom recordar que as intenções profundas de Jesus Cristo não são provocar dor aos casais que fracassam, mas apresentar um alto ideal para o casal, uma visão do matrimónio como uma aliança de amor pessoal entre os cônjuges, que reflecte a relação da aliança de Deus com o seu povo, e que, por isso mesmo, é fiel e indissolúvel. Infelizmente esta visão nem sempre é compreendida e nem sempre é vivida, devido às fragilidades da mente ou do coração humano.

 


 

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