quinta-feira, novembro 12, 2015

Quando Martinho era ainda catecúmeno

Martinho, ainda um catecúmeno, cobriu-me com esta veste
 
 
 
 
"E a dada altura, quando já não tinha nada para além das armas e da simples veste de militar, a meio de um Inverno que se eriçava mais asperamente do que o habitual, ao ponto de a força do frio fazer muitos sucumbir, havia junto à porta da cidade de Amiens um pobre nu. Embora este suplicasse aos que passavam para dele se apiedarem, todos passavam ao lado do desgraçado. O Varão, arrebatado em Deus, compreendeu, enquanto os outros não prestavam qualquer tipo de auxílio, que aquele estava guardado para si. Mas que fazer? Nada tinha para além da clâmide, com a qual se cobria: pois já havia gastado o que lhe restara numa obra semelhante. Então, arrancando a espada que tinha à cintura, rasga-a pelo meio e doa-a ao pobre, cobrindo-se novamente com a outra metade. Ao mesmo tempo, dos que estavam nas vizinhanças, alguns riram, pois por causa da veste ele parecia um ser disforme amputado; contudo muitos, cujo espírito era mais puro, lamentaram profundamente, por não terem feito nada de semelhante, já que, possuindo mais, teriam podido igualmente vestir o pobre, sem a sua própria nudez.
"Desta feita, na noite seguinte, quando se entregou ao sono, viu Cristo vestido com a parte da sua clâmide que havia abrigado o pobre. Ordena-se-lhe que repare, atentissimamente, no Senhor, e a reconhecer a veste que havia dado. Logo ouviu Jesus, com voz clara, dizendo para a multidão de anjos circundantes: “Martinho, ainda um catecúmeno, cobriu-me com esta veste”. Na verdade o Senhor está lembrado dos seus próprios ditos: “Sempres que fizerdes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes”, anunciando que Ele próprio fora vestido naquele pobre; e, para que ficasse ratificado o testemunho de tão boa obra, dignou-se a revelar-se no mesmo hábito que o mendigo recebera.
"Com esta visão, o bem-aventurado homem, reconhecendo-se pela sua obra extasiado, não em humana glória, mas na bondade de Deus, apesar de ter dezoito anos, correu para se batizar. Mas não renunciou logo ao exército, convencido pelas súplicas do seu tribuno, a quem prestava uma íntima familiaridade: com efeito este comprometeu-se a renunciar ao século quando acabasse o tempo do seu tribunado.
"Martinho, suspenso por esta esperança durante aproximadamente dois anos, serviu no exército após ter adquirido o batismo, ainda que servisse só de nome".

Sulpício Severo, Vida de S. Martinho, cap. III, tradução de André Antunes, em: A Vida de São Martinho, Estudo introdutório, tradução e comentário. Dissertação de Mestrado em Estudos Clássicos, área de especialização de Estudos Medievais e Renascentistas, orientada pela Doutora Paula Barata Dias, apresentada ao Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2014.
 

Ao contrário do que muitas vezes se ouve, não é correcto falar deste episódio como se se tratasse de uma «lenda», uma vez que é relatado por Sulpício Severo, na sua obra “Vida de S. Martinho”, escrita em 397, ainda em vida do Bispo de Tours. Para uma lenda é necessário muito mais tempo. Além disso, não há nenhum milagre neste relato, como é usual nas lendas de teor religioso, mas um acto de pura caridade.



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