domingo, fevereiro 10, 2013

O «abortivo»


No 5º Domingo do «Tempo Comum», no Ano C, lê-se, na 2ª leitura, uma passagem da 1ª Carta aos Coríntios, que é um precioso testemunho da ressurreição de Jesus, a que devemos dar a nossa maior atenção.

Há tempos, um eclesiástico que escreve no «Diário de Notícias», publicou uma crónica em que afirma que, depois da morte de Jesus, os discípulos fizeram um balanço de toda a sua vida, e então concluíram ou “acreditaram que ele está vivo em Deus”. (Respondi a esta crónica num post anterior intitulado «Da ressurreição aos Evangelhos da Infância. Resposta a Anselmo Borges»).

Mas salta à vista que os textos do Novo Testamento dizem muito mais. Recordemos apenas o que diz S. Paulo neste texto da 1ª Carta aos Coríntios:

“Transmiti-vos em primeiro lugar o que eu mesmo recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maior parte ainda vive, enquanto alguns já faleceram. Posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como o abortivo” (1 Coríntios 15, 3-8).

O abortivo”. Esta última palavra também se poderia traduzir como: «alguém que nasceu fora de tempo». Que significa? Um erudito exegeta do séc. XVII, o jesuíta Cornelius a Lapide (1567 – 1637), explica deste modo, no seu comentário à 1ª Epístola aos Coríntios, este estranho qualificativo:

“De acordo com alguns autores, como Santo Ambrósio de Milão e S. João Crisóstomo, abortivo significa tardio, fora de tempo; ou seja, já depois de Cristo ter subido ao Céu é que Paulo nasceu em Cristo e se tornou Apóstolo. De acordo com Santo Anselmo, S. Paulo fala assim de si mesmo porque foi derrubado por terra pelo poder divino, (como lemos nos Actos dos Apóstolos), compelido e como que obrigado a nascer de novo; os que nascem fora de tempo são empurrados para o mundo pela violência da natureza. Ora, como Santo Anselmo de novo observa, alguns que nascem assim, vêm em perigo de vida e por vezes nascem cegos. E na verdade S. Paulo ficou algum tempo cego depois da sua conversão. (…)
Conclui-se deste versículo que Cristo apareceu a Paulo, não por um anjo, como pensa Haymo (monge do séc. IX), mas em pessoa; não numa visão, como lhe apareceu noutro momento, em Actos 21, 18, nem em êxtase, como se regista em 2 Coríntios 12. 2, mas no espaço, em forma corpórea; pois foi assim que Cristo apareceu a Cefas (Pedro), Tiago e outros apóstolos; Além disso, se fosse qualquer outro tipo de manifestação, não seria prova da Ressurreição de Cristo. A aparição de Cristo a que alude aqui é a que aconteceu na conversão de Paulo (Actos 9. 3), quando ele viu Cristo antes que a luz brilhante o cegasse”.

E Cornelius a Lapide conclui, com uma interessante aplicação à Eucaristia:

“Portanto, conclui-se também que Cristo então desceu do Céu, visto que, como S. Tomás e outros autores dizem, S. Paulo ouviu a voz de Cristo a falar diante de si. Donde resulta novamente que Cristo estava, então, em dois lugares, no Céu e no nosso mundo, perto de Paulo; porque, de acordo com Actos 3, 21, Cristo nunca deixou o Céu ao qual subiu. Se Cristo está então em dois lugares, por que não pode Ele estar ao mesmo tempo no Céu e na Eucaristia?”
 
O que fica muito claro, em relação a S. Paulo, é que o Apóstolo dos Gentios não teve apenas uma visão mental, como escreve o Pe. Ryan Erlenbush, O. P., num post do seu blog, (que pode ser lido aqui), em que me inspirei para a anterior citação de Cornelius a Lapide e para a citação do Catecismo da Igreja Católica, que virá mais adiante.

Esclarece o Pe. Ryan: “Não foi apenas uma «visão» meramente intelectual ou imaginativa. Mais: tal como o nosso Salvador apareceu no seu próprio e verdadeiro corpo diante dos outros apóstolos, assim também nosso Senhor revelou o seu corpo próprio e natural a S. Paulo”.

Portanto, foi, sem dúvida, uma aparição absolutamente excepcional, como ensina o Catecismo da Igreja Católica, nesta excelente síntese sobre as manifestações de Cristo ressuscitado:

“«Então, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi elevado ao céu e sentou-se à direita de Deus» (Marcos 16, 19). O corpo de Cristo foi glorificado desde o momento da sua ressurreição, como o provam as propriedades novas e sobrenaturais de que, a partir de então, ele goza permanentemente (Actos 10, 41). Mas, durante os quarenta dias em que vai comer e beber familiarmente com os discípulos (Actos 10, 41) e instruí-los sobre o Reino (Actos 1, 3), a sua glória fica ainda velada sob as aparências duma humanidade normal (cf. Marcos 16, 12; Lucas 24. 15; João 20, 14-15; 21, 4.). A última aparição de Jesus termina com a entrada irreversível da sua humanidade na glória divina, simbolizada pela nuvem (cf. Actos 1, 9; também Lucas 9. 34-35; Êxodo 13, 22) e pelo céu (cf. Lucas 24, 51), onde a partir de então, está sentado à direita de Deus (cf. Marcos 16, 19; Actos 2, 33; 7. 56: também Salmo 110, 1). Só de modo absolutamente excepcional e único é que Se mostrará a Paulo, «como a um aborto» (1 Coríntios 15, 8), numa última aparição que o constitui Apóstolo (cf. 1 Coríntios 9, 1: Gálatas 1, 16)” (n. 659).
 
MICHELANGELO Buonarroti, A conversão de Saulo, Fresco, Cappella Paolina, Vaticano
 
Escreve ainda pertinentemente o Pe. Ryan Erlenbush:

“Fica assim muito claro que a aparição a S. Paulo é radicalmente diversa de qualquer outra visão concedida aos Santos. Porque, mesmo que o nosso Salvador tenha manifestado ocasionalmente a sua Sagrada Humanidade a videntes e místicos, não podemos de modo algum pensar que o seu corpo veio do céu para a Terra no seu estado verdadeiro e natural. Essa seria a Segunda Vinda!
Ou antes, sempre que um místico parece falar como se tivesse «tocado» ou «visto» o corpo físico e verdadeiro de Jesus (isto é, Cristo na sua aparência verdadeira, como quando caminhava sobre a terra ou apareceu após a Ressurreição), devemos entender isto como tendo sido apenas uma visão. Porque nenhum outro senão S. Paulo viu o corpo físico, natural e verdadeiro de Cristo segundo o modo próprio das manifestações da Ressurreição”.
 
E conclui:
“É por isso que S Paulo é um apóstolo – porque ele viu o Senhor ressuscitado, tal como fizeram S. Pedro e os outros. Mas é isto que faz também dele um «abortivo» ou nascido fora de tempo: viu Jesus ressuscitado por esta via absolutamente única e excepcional, porque o Senhor voltou à Terra, não para ser visto por todos, como acontecerá na sua Segunda Vinda, mas apenas para ser visto por aquele que quis consagrar como Apóstolo dos Gentios”.


 

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