Orígenes, grande
teólogo do séc. III (+ 253) explica assim a ressurreição de Lázaro[1]: a sua alma tinha-o
deixado; ela tinha ido para a «morada dos mortos». De lá foi trazida de novo; penetrou
no sepulcro. Desde que a pedra foi retirada, Jesus apercebe-se disso. Daí a sua
oração: «Pai, dou-Te graças por Me teres ouvido. Eu bem sei que sempre Me
ouves, mas falei assim por causa da multidão que nos cerca, para acreditarem
que Tu Me enviaste (João 11, 41-42)». Por fim, a ordem de
Jesus comunica a essa alma a «tensão» ou energia[2], necessária à ressurreição
do morto. “Dito isto, bradou com voz forte: «Lázaro, sai para fora»” (João 11,
43). O morto saiu, de mãos e pés enfaixados com ligaduras e o rosto envolvido
num sudário. Disse-lhes Jesus: «Desligai-o e deixai-o ir»” (João 11, 44).
Ressurreição de Lázaro - Catacumbas da Via latina (séc. IV) |
Pinturas muito
antigas do séc. III na Catacumba de Calisto e uma pintura do séc. IV na Catacumba
de Domitila mostram Lázaro liberto das suas ligaduras e já a caminhar. Mas
também há muitos casos em que é representado ainda ligado e por vezes curvado.
Noutros casos, porém, Lázaro aparece já a andar. Quando o representam a andar,
essas imagens querem mostrar Lázaro a obedecer à voz de Cristo, que lhe diz: “Lázaro,
sai para fora”.
Ressurreição de Lázaro - Catacumba dos Santos Marcelino e Pedro (séc. III) |
Como é que ele
anda, com os pés ainda ligados? Muitos Padres viram aqui um sinal do poder da
graça de Deus. Santo Agostinho diz que não era pelos seus próprios pés que ele
andava, mas graças ao poder d’Aquele que lhe ordenava que saísse. “Era o efeito
do poder do Senhor, não das forças da morte”[3], diz Santo Agostinho, que
não perde de vista que esse passo em frente de Lázaro simboliza a confissão das
faltas e a decisão de mudar de vida, para a qual o homem não encontra forças em
si mesmo, mas só na graça de Deus. Este Lázaro, que depois é liberto das faixas
com que estava ligado, é considerado, desde Santo Ireneu, o símbolo do homem
preso nos seus pecados. É por isso que o Senhor diz: “Desligai-o e deixai-o ir”[4].
Para Orígenes,
tal como para Santo Agostinho, o relato de S. João põe em cena duas etapas da
conversão: o arrependimento inicial, simbolizado pela saída do túmulo, e a
remissão dos pecados concedida pelo Senhor, manifestada pela remoção das vestes
funerárias. “O discípulo de Jesus, escreve Orígenes, pode verificar como é que
este homem sai do túmulo, graças à voz de Jesus, mas ainda ligado e atado pelas
faixas dos seus próprios pecados, vivo pelo arrependimento ao escutar a voz de
Jesus, mas com os pés e as mãos ainda presos pelas ligaduras dos mortos, porque
ainda não foi liberto dos laços do pecado, e ainda não pode andar com os pés
livres nem realizar livremente o bem”. “Em relação a libertar-se inteiramente do
túmulo, ainda é incapaz de o fazer, enquanto continuar ligado”; “mas, depois de
Jesus falar àqueles que o deviam desligar, (...), Lázaro ficou com os pés e as
mãos livres; quando depôs o véu que lhe tinha coberto o rosto e que lhe foi
tirado, começou a andar, de maneira a integrar-se também no meio daqueles que
se põem à mesa com Jesus”[5]. Estas duas etapas da
ressurreição de Lázaro, Orígenes vê-as já no tempo presente; para Agostinho, a
primeira é já aqui na terra, mas a segunda é a vida futura; pois se, em
resposta ao apelo de Cristo, o homem já pode caminhar nas vias de Deus, é com
uma liberdade ainda ‘coxa’: esta liberdade só será total na ressurreição
escatológica[6].
Quem desliga
Lázaro? S João não o concretiza, e os Padres hesitaram neste ponto. Para
Orígenes, trata-se “daqueles que o podem desligar”, “aqueles que lhe podem
prestar esse serviço”: são evidentemente os ministros da Igreja[7]; o mesmo para santo Ambrósio
de Milão, mesmo sendo tão impreciso como Orígenes sobre este ponto[8]. Santo Agostinho, por sua
vez, é totalmente explícito: “Foi dito aos ministros, que são os apóstolos: «Tudo
o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra
será desligado no céu» (Mateus 16, 19)”, e portanto, as palavras de Jesus: «Desligai-o
e deixai-o ir” são uma ordem dada àqueles que, na Igreja, são os seus
sucessores[9].
É sem dúvida por
alusão a este poder eclesiástico de perdoar os pecados, que se vêem por vezes,
já antes da época de Constantino, dois apóstolos que rodeiam Cristo quando
ressuscita Lázaro. Não são as tradicionais cabeças de discípulos que povoam o
fundo de várias cenas nos sarcófagos: têm a mesma estatura que Jesus e são
representados de pé[10].
É, portanto, mediante o
ministério apostólico e sacerdotal que acontece a definitiva
libertação do pecado e da morte, pelo poder e autoridade de Cristo.
[1] In Iohan. 28,
6 e 7.
[2] Em grego, ‘eutonia’.
[3] Comentário ao Salmo 101, 2, 3.
[4] Adversus haerees, 5, 13
[5] In Iohan. 28, 57. 59. 60.
[6] Div. Quaest., 65.
[7] In Iohan. 28, 54.
[8] Paen. 2, 58.
[9] In Iohan. 22, 7.
[10] Cf. Les Pères de l'Eglise dans le monde
d'aujourd'hui, editado por Cristian Badilita,Charles Kannengiesser,New
Europe College,
Editions Beauchesne, 2006, p. 145-146.
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