Ao chegar de novo a Quaresma, voltei a ler o capítulo que René Laurentin dedica, no seu fascinante livro Vie authentique de Jésus Christ, ao jejum de Jesus no deserto e ao combate espiritual que se lhe seguiu, as suas tentações, esta misteriosa etapa da sua vida que a Igreja propõe sempre de novo à nossa oração e meditação no 1º Domingo da Quaresma.
Transcrevo em seguida apenas a parte do texto dedicada ao jejum de Jesus, por considerar que é, por si só, um extraordinário acontecimento salvífico. Hoje há a tendência de desvalorizar o jejum de alimentos, mas foi esse jejum precisamente aquele que Jesus fez.
Porquê? E qual o seu sentido?
(Omito algumas passagens do texto por uma questão de brevidade. Também não transcrevo o passo em que R. Laurentin fala da «visão beatífica» de Cristo, por não partilhar da sua abordagem, e por ser uma matéria que exigiria uma discussão maior, que pode ficar para outra oportunidade).
O sopro do Espírito
“E logo o Espírito o impeliu para o deserto. Aí esteve quarenta dias” (Marcos 1, 12-13 e par.).
O deserto é o lugar da solidão, do despojamento: o corte com tudo o que alimenta o desejo humano, para dar todo o lugar a Deus somente.(…)
Jesus, feito homem na solidariedade, não começa por uma demonstração de poder, mas pelo vazio de um longo jejum.
“Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome” (Mateus 4, 2; cf. Lucas 4, 2).
Jesus instalou-se na solidão: sem trabalho, sem contacto, sem ocupação rentável, na frustração de tudo o que é humano e na pura gratuitidade. O ambiente que o rodeia é rocha e areia, mas não demasiado longe de uma fonte em que mata a sede: irá até aos limites do organismo humano, que pode viver durante 40 dias sem recursos. Mas sem água, seria a morte, ao fim de seis dias. Portanto, bebe água! O Evangelho não diz nunca que se tenha abstido de água, e que assim tivesse feito um jejum miraculoso de super-homem.A experiência do jejum
A prova do jejum é dura para a carne e o sangue, e mesmo para o espírito, porque a natureza tem horror do vazio. Jesus sabe-o bem. Todo o ser humano o teme, e mobila o seu tempo com um excesso de obrigações, trabalhos e distrações, relações humanas, combates e lutas pela vida. Feliz de quem sabe aceitar o vazio para se encher de Deus invisível. O jejum é um meio concreto e radical para o conseguir. Torna a vida disponível. Jesus desembaraça o tempo de tudo o que é inútil e de tudo o que é acessório, para reencontrar o Pai cara a cara: invisível e salvífico.(…)
Jesus não padece fome. Todo aquele que jejua em espírito e verdade não tem fome, por mais surpreendente que isso possa parecer. O desejo alimentar, como de resto o desejo sexual, não é uma fatalidade. É psicológico. As labaredas que se elevam na privação do desejo estão submetidas ao domínio de cada homem, que demasiado frequentemente as atiça em vez de as dominar: tanto na abstenção como no uso.
Os dias sucedem-se aos dias nesse quotidiano sem distracção, opressivo para a natureza humana. Mas o jejum abre na alma de Jesus novas possibilidades de oração. O vazio acende a fome de Deus. A vida daquele que jejua é extremamente lúcida e calma, atravessada por chamas subtis acesas pelo Espírito.
A privação não O deprime, mas eleva-O, num certo retardamento de todos os ritmos. Nessa prova, Jesus continua a crescer humanamente “em sabedoria e em graça” (Lucas 2, 51), e sobretudo em amor, pelo dom quotidiano que conforma todas as fibras do seu ser de carne ao ardor da sua divindade. N’Ele jorra um impulso novo, à escala da história humana extraviada, para compensar as suas falhas e a sua infelicidade. Esse impulso, alimentado unicamente pela oração, é sustentado pelo claro-escuro da sua união perfeita com Deus.
Jesus ultrapassa todos os místicos, pois o seu estatuto próprio não é somente a união transformante (a perfeita identificação de amor e de vontade com Deus), mas a “união hipostática”. Ele é Deus em pessoa, e a sua existência humana não é a de uma pessoa criada, mas de um ser humano assumido por um EU divino[1], que tem sede de conformar o seu destino terrestre ao amor divino. (…)
A natureza não deixa de se Lhe fazer notar, no desconforto do deserto. No calor do dia, o seu corpo procura a sombra, e a frescura da noite acorda-o por vezes a tremer. Aprende, por dentro, por experiência, os recursos surpreendentes que habitam o organismo, e Lhe fazem encontrar durante tanto tempo os recursos energéticos disponíveis, sem novo contributo alimentar. (…)O seu corpo enfraquece, mas elimina aas toxinas e espiritualiza-se. Quanto às forças de que tem necessidade, o organismo sabe onde as ir buscar em boa ordem. Consome antes de mais as superfluidades, depois os músculos, mas respeita o cérebro, que continua lúcido e concentra ao forças do corpo agora mais leve.
O destino de Deus feito homem entre os homens, é a solidariedade. Outra coisa não é senão solidariedade. Não tem outra razão de ser. Deus não precisava para nada de ser fazer homem. Fez-Se homem para ser “em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hebreus 12, 7), em todas as coisas, “excepto no pecado” (Hebreus 4, 15).Jesus assume toda a fraqueza humana, pois não salvará os homens pelo poder, mas só pelo amor, humildemente. O Amor é humilde. Não existe outra via de realização, tanto para Deus como para nós. Não se dispensou da ascese e das privações que abrem o homem a Deus.Igualmente não se dispensou das provas da tentação.
A salvação da humanidade é um soltar de laços, que tem de desfazer o enleio generalizado das faltas e dos erros, das divisões e das paixões, das carências e das violências. Para isso, é preciso que a agulha perspicaz e perseverante do amor volte a tecer por dentro todos os fios que entrelaçaram a meada inextrincável do mundo pecador, como interpretava Santo Ireneu de Lyon, já no séc. II.
René Laurentin, Vie authentique de Jésus Christ, vol. I, Paris, Fayard, 1996, p. 77-80,
[1] Mais conforme
com as formulações da fé seria, na minha opinião, dizer: uma natureza humana assumida por um Eu
divino (o Verbo, o Filho eterno de Deus).
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