A
presença de Jesus na Eucaristia: apenas uma entre várias formas de presença?
Escreveu João Paulo II na sua última Encíclica:
Escreveu João Paulo II na sua última Encíclica:
A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – «se chama “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem» (Carta Encíclica Mysterium fidei, 3 de Setembro de 1965, n. 41).
Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: «Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação» (Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cap. 4).
Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. «Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu Corpo e o seu Sangue: a fé to assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa» (Catequeses mistagógicas, IV, 6).
(João Paulo II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 17 de Abril de 2003, n. 15)
Sobre este assunto, transcrevo abaixo (com ligeiras adaptações) um artigo do Cardeal Avery Dulles, publicado na revista Trinta Dias.
Avery Robert Dulles SJ (Auburn, 24 de Agosto de 1918 — New York, 12 de Dezembro de 2008), foi sacerdote da Companhia de Jesus e cardeal norte-americano, professor da Universidade Fordham, escritor e teólogo. Foi feito cardeal pelo Papa João Paulo II em 21 de Fevereiro de 2001, não tendo sido ordenado bispo..
A presença de Cristo na Eucaristia. Verdadeira, real e substancial
Cardeal Avery
Dulles, S.J.
Ao falar da presença de Cristo neste
Sacramento, o Concílio de Trento usou três advérbios. Jesus está presente na
Eucaristia “verdadeiramente, realmente e substancialmente”
(Denzinger-Schönmetzer, n. 1651). Esses três advérbios são as chaves que abrem as
portas do ensinamento católico e excluem os pontos de vista contrários, que
devem, portanto, ser rejeitados (…)
A presença real, investigada com grande
acuidade durante a Idade Média, foi um dos pontos centrais de controvérsia
entre os cristãos a partir do período da Reforma. Lutero, mesmo pondo em dúvida
a transubstanciação, manteve firmemente a opinião sobre a natureza real e
substancial da presença de Cristo, ainda que a maior parte dos outros
protestantes não concordassem com isso, ao menos verbalmente. Nas últimas
décadas, houve um pouco de confusão no âmbito católico quanto à presença real.
A Conferência Episcopal Americana, assumindo como sua responsabilidade pastoral
o necessário esclarecimento dessa questão, publicou, em 2001, uma pequena obra,
muito útil: A presença real de Jesus Cristo no sacramento da
Eucaristia: as perguntas e as respostas fundamentais.
No presente artigo, retomarei o fundamento
teológico do ensino católico oficial.
Depois da consagração, [ou durante a consagração do vinho, no Rito Romano «mais antigo»], o sacerdote, em
todas as missas, proclama que a Eucaristia é mysterium fidei. A
presença real leva a mente humana aos limites extremos de suas capacidades. No
fim de tudo, somos obrigados a reconhecer que é um mistério inefável, e que
deveria ser acolhido com admiração e assombro.
É uma verdade que só a mente de Deus pode
entender completamente. Todavia, algo deve ser dito, visto que Deus não se revelou
simplesmente para nos envolver em mistério. Quer que imitemos a Santa Virgem,
que reflectiu profundamente sobre as palavras que lhe foram dirigidas.
São Erardo
eleva a hóstia consagrada - escultura em madeira de tília da segunda metade do
século XIV atribuída ao ateliê do Duque de Estíria, Galeria Eslovena Narodna, Liubliana
|
Antes de mais nada, é preciso dizer que a
Igreja aceita a presença real como matéria de fé, pois está incluída na Palavra
de Deus, como confirmam a Sagrada Escritura e a Tradição. Jesus disse
claramente: “Este é meu corpo... este é meu sangue” e, polemizando com os
judeus, insistiu que não estava a usar uma metáfora. “A minha carne é
verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue permanece em Mim, e Eu nele” (João 6,55-56).
Muitos discípulos acharam essas palavras
árduas demais e deixaram-No, mas Jesus não modificou as suas afirmações para
fazê-los voltar atrás.
Os Padres e Doutores da Igreja confessaram
com confiança a presença real, século após século, apesar de todas as objecções
e mal-entendidos. Finalmente, em 1551, o Concílio de Trento forneceu uma
exposição completa da doutrina católica da Eucaristia, dando muita importância
à presença real. A partir de então, repetido por muitos papas e documentos
oficiais, o que foi ensinado por Trento continua a ser ainda hoje normativo. O Catecismo
da Igreja Católica não tem medo de citá-lo à letra (Catecismo da Igreja
Católica, n. 1374; 1376-1377).
Falando da presença de Cristo nesse
sacramento, o Concílio de Trento usou três advérbios. Nele, o Senhor está
contido, diz o Concílio, “verdadeiramente, realmente e substancialmente” (Denzinger-Schönmetzer, n. 1651).
Esses três advérbios são as chaves que abrem as portas do ensinamento católico
e excluem os pontos de vista contrários, que devem, portanto, ser rejeitados [1].
Dizendo, em primeiro lugar, que Cristo está verdadeiramente contido
nas espécies eucarísticas, o Concílio afastou a ideia de que o sacramento seja
meramente um símbolo ou uma figura que aponta para um corpo que está ausente, ou
que talvez esteja em algum lugar no céu. Essa afirmação é feita contra o herege
Berengário, do século XI, e contra alguns de seus seguidores protestantes do
século XVI.
Em segundo lugar, a presença é real.
Ou seja, é ontológica e objectiva. Ontológica porque acontece no nível do ser;
objectiva porque não depende dos pensamentos ou dos sentimentos do ministro ou
dos comungantes. O corpo e o sangue de Cristo estão presentes no sacramento
graças à promessa de Cristo e ao poder do Espírito Santo, ligados à execução
correcta do rito por parte de um ministro validamente ordenado.
Ensinando isto, a Igreja refuta a ideia de que a fé seja o instrumento que
determina a presença de Cristo no sacramento. Segundo o ensinamento católico, a
fé não torna Cristo presente, mas reconhece com gratidão essa presença, e
permite que a sagrada comunhão traga os seus frutos de santidade. Receber o
Sacramento sem fé é inútil, até pecaminoso, mas a falta de fé não torna a
presença irreal.
Em terceiro lugar, o Concílio de Trento diz-nos que a presença de Cristo no
Sacramento é substancial. A palavra “substância” nunca é usada,
neste caso, como um termo filosófico técnico, como na filosofia de Aristóteles.
Essa palavra era usada na alta Idade Média muito antes que circulassem as obras
de Aristóteles.
“Substância”, no uso comum, denota a realidade fundamental da coisa, o que a
coisa é em si. Derivada da raiz latina sub-stare, significa o que
está sob as aparências, que podem mudar de uma hora para a outra, deixando o
objecto intacto.
As aparências podem ser enganadoras. Vocês poderiam não conseguir reconhecer-me,
se eu me disfarçasse ou se estivesse gravemente doente, mas eu não deixaria de ser
a pessoa que era; a minha substância continua a mesma. Não há nada de obscuro,
portanto, no significado de “substância” nesse contexto.
“Substância”, ao significar o que uma coisa é em si, pode ser contraposta a
“função”, que faz referência à acção. Cristo está presente por meio de seu
poder dinâmico e de sua acção em todos os sacramentos, mas na Eucaristia a sua
presença é, além disso, substancial. Por esse motivo, a Eucaristia pode ser
adorada. É o maior de todos os sacramentos.
Depois da consagração, o pão e o vinho, de
uma forma misteriosa, tornam-se o próprio Cristo. O Concílio Vaticano II cita
S. Tomás de Aquino, para dizer que este sacramento contém a inteira riqueza espiritual
da Igreja, dado que a Igreja não tem outras riquezas espirituais a não ser
Cristo e o que Ele lhe comunica [2].
O Concílio de Trento falou também da
maneira como acontece essa presença de Cristo. Afirma que o pão e o vinho
mudam; deixam de ser o que eram e transformam-se no que não eram. A inteira
substância do pão e do vinho transforma-se na substância do Corpo e do Sangue
de Cristo e, visto que Cristo não pode ser dividido, transformam-se também na
sua alma e na sua divindade (Denzinger-Schönmetzer, n. 1640.1642). Cristo torna-Se presente inteiramente em
cada uma das duas formas.
A mudança que acontece na consagração durante a missa é sui generis.
Não se deixa circunscrever nas categorias de Aristóteles, que acreditava que
toda a mudança substancial comportaria uma mudança nas aparências ou no que ele
denominava acidentes. Quando eu como uma maçã, ela perde as suas qualidades
perceptíveis, tal como a sua substância de maçã. Torna-se parte de mim mesmo.
Mas, na consagração do pão e do vinho, durante a missa, as aparências externas
continuam idênticas.
A Igreja cunhou o termo “transubstanciação”
para designar o processo com o qual a inteira substância, e tão-somente ela, se
transforma na substância do corpo e do sangue de Cristo. É preciso uma
palavra especial para indicar um processo que é único e sem paralelo. Ao
ensinar que as espécies continuam as mesmas, a Igreja indica que as
propriedades físicas e químicas continuam a ser as do pão e do vinho. Não
apenas parecem e pesam o mesmo; elas mantêm também o mesmo valor nutritivo que
tinham antes da consagração [3]. Seria inútil tentar demonstrar ou refutar a
presença real por meio de experimentações físicas, pois a presença de Cristo é
espiritual ou sacramental, não física, no sentido de mensurável.
Para esclarecer o ensinamento da Igreja a respeito da presença real, será útil,
acredito, contrapô-lo a algumas posições erróneas. A presença de Cristo pode
ser entendida de maneira demasiadamente carnal ou demasiadamente mística,
demasiadamente grosseira ou demasiadamente ténue, demasiadamente ingénua ou
demasiadamente figurada.
O erro realista ingénuo pode ser ilustrado
por meio da reacção dos judeus em Cafarnaum, que ficaram chocados com as
palavras de Jesus. Evidentemente, eles pensaram que Ele estivesse a afirmar o
canibalismo, que consideravam, com justiça, como um pecado horrível. Alguns
cristãos compreendem a presença de Cristo na Eucaristia num sentido
demasiadamente materialista, sem fazer uma adequada distinção entre sua
presença natural e sua presença sacramental. Às vezes imaginam que Ele poderia
sofrer, se a hóstia fosse profanada, ou que poderia sentir-Se sozinho no tabernáculo.
Li em algum lugar sobre uma jovem estudante que tinha medo de comer um gelado depois de receber a comunhão, pois pensava que Jesus sentiria frio.
Na alta Idade Média, alguns teólogos,
seguindo Pascásio Radberto, afirmaram que Jesus, na Eucaristia, assumiria a
forma do pão e do vinho como sua verdadeira forma. “Por que não poderia ser
assim”, perguntavam, “visto que, na Ressurreição, apareceu como um peregrino e
como um jardineiro que os seus discípulos não conseguiam reconhecer?”. O que
vemos quando olhamos para a hóstia e o que tomamos durante a comunhão,
diziam, é o corpo e o sangue de Cristo numa forma disfarçada. Alguns afirmavam
até que, na consagração, os elementos perdem a natural capacidade nutritiva do
pão e do vinho [4].
Para evitar a implicação de que, na
glória, Cristo pudesse sofrer em razão da indignidade, alguns pensadores da
alta Idade Média afirmaram que o corpo de Cristo no altar não era o mesmo do
céu. De facto, falavam dos três corpos de Cristo: o seu corpo natural, que
agora está no céu; o seu corpo sacramental, que está na Eucaristia; e o seu
corpo eclesial, que é a Igreja [5]. Esta afirmação nunca foi condenada pela
Igreja, mas já não é muito sustentada, talvez porque, contrariamente à ideia
daqueles que a elaboraram, parece sugerir que o corpo na Eucaristia não é o mesmo que
nasceu da Virgem Maria. Se fosse assim, não poderíamos cantar: “Ave verum corpus, natum de Maria Virgine”.
S. Tomás de Aquino desenvolveu o que
poderíamos definir como uma posição de mediação. Por um lado, evita falar da
Eucaristia como um corpo especial (sacramental ou místico), mas, por outro
lado, afirma que o corpo ressuscitado e glorificado de Cristo tem uma
existência diferente no céu e no Sacramento. Contrapõe a existência de Cristo
em si e a sua existência sob o véu do Sacramento como dois diferentes estados ou
modos de ser. Segundo a sua maneira natural de existência, Cristo está no céu;
segundo a maneira eucarística de existência, está no Sacramento [6]. O corpo de
Cristo está realmente presente na Eucaristia, mas não no sentido em que os
corpos estão num determinado lugar. As suas partes e dimensões não podem ser
medidas em relação a outros corpos. A sua circunferência não é a da hóstia.
Contra
os realistas ingénuos, portanto, Santo Tomás afirma que quando
olhamos para a hóstia não vemos a figura e as cores que propriamente pertencem
ao corpo de Cristo, mas as da própria hóstia. Não estamos na mesma situação dos
discípulos antes da Ascensão, aos quais Cristo apareceu no seu próprio corpo.
Quando olhamos para a hóstia ou para o cálice sobre o altar, os aspectos ou os
fenómenos visíveis são ainda os do pão e do vinho.
S. Tomás apresenta a objecção segundo a
qual alguns contaram ter visto o Menino Jesus ou seu preciosíssimo Sangue numa
hóstia consagrada. Responde que Deus é capaz de realizar uma mudança milagrosa
na hóstia, de forma tal que possa aparecer como um menino ou como sangue
humano, mas o que aparece num caso como esse não podem ser as qualidades do
próprio Cristo [7].
Olhando para a hóstia ou para o preciosíssimo Sangue, não podemos dizer que a cabeça está aqui e os pés, ali. A presença de
Cristo nesse Sacramento assemelha-se à da alma no corpo. A minha alma não
está parte na minha cabeça, parte no meu coração, parte nas minhas mãos, mas
está inteiramente presente no todo e em cada uma das partes. E assim é a
respeito de Cristo na Eucaristia. Quando uma hóstia é partida, cada fragmento
contém Cristo plenamente, tanto quanto a hóstia inteira. Uma única gota do
preciosíssimo Sangue contém d’Ele tanto quanto todo o conteúdo do cálice
inteiro. S. Tomás dá o útil exemplo do reflexo de uma imagem no espelho.
Quando o espelho se quebra, cada fragmento pode reflectir todo o objecto, tal
como fazia o espelho inteiro [8].
Se a situação e as características da
hóstia não são as de Cristo, surge a pergunta: podemos dizer que Cristo é
transportado durante uma procissão ou que é posto no tabernáculo? Não comemos a
sua carne, nem bebemos o seu sangue? Sim, diz S. Tomás, Ele é transportado,
comido e bebido, mas não nas suas próprias dimensões. É transportado, comido e
bebido na sua forma eucarística de existência, na medida em que a sua presença
coincide com as propriedades palpáveis ou “acidentes” do pão e do vinho. Ele
não é danificado fisicamente por nenhuma violência feita ao Sacramento, pois
essas qualidades e dimensões não são propriamente suas.
A presença de Cristo no Santíssimo
Sacramento só pode ser reconhecida, portanto, pelo intelecto, que aceita a
Palavra de Deus na fé [9]. A presença pode ser denominada sacramental porque as
aparências do pão e do vinho indicam onde o Corpo e o Sangue de Cristo estão
presentes. São sinais, ou seja, sacramentos de uma realidade que está presente
neles.
A presença eucarística, porquanto real, não
elimina a ausência da qual Jesus fala quando se despede dos seus discípulos
durante a última ceia. A Eucaristia é um memorial da presença histórica de
Jesus na terra e penhor da sua volta na glória, quando formos capazes de O ver
como Ele é.
Pelo que foi dito, pode-se entender que a
presença de Cristo nesse sacramento é única e misteriosa. Os mestres do
espírito advertem-nos de que não sejamos curiosos demais, pois as nossas mentes
poderiam facilmente confundir-se diante de tão excelso mistério. É melhor aceitar
simplesmente as palavras de Cristo, da Sagrada Escritura, da Tradição, do
Magistério da Igreja, que nos dizem o que é necessário saber: “Cristo está real
mas invisivelmente presente na Eucaristia”. A sua presença é tal, que o pão e o
vinho, depois da consagração, são verdadeira, real e substancialmente o seu Corpo e seu Sangue, mas segundo uma forma de existência diferente de sua
presença no céu.
Falemos
agora dos erros de minimização. O
Concílio de Trento foi por vezes atacado por estar concentrado demais numa só
das maneiras com as quais Cristo está presente na liturgia. Segundo Paulo VI e o Concílio Vaticano II - lembram-nos esses autores - Cristo está
presente na liturgia em não menos de cinco formas: na assembleia, quando nos
reunimos para a oração; na Palavra de Deus, quando é proclamada; no sacerdote,
quando celebra a missa; nos sacramentos, quando são administrados; e,
finalmente, na hóstia e no cálice oferecidos durante a missa.
A presença nas espécies consagradas,
afirmam esses autores, é apenas uma das cinco maneiras, e não deveria ser tomada
como se fosse a única efectiva. De facto, dizem, deveria ser vista como
subordinada à presença na Igreja, da qual é um sinal sacramental. Agostinho e
Tomás de Aquino acaso não ensinaram que a finalidade do sacramento é criar a
unidade da Igreja como corpo místico de Cristo? Alguns teólogos, a partir
disso, começaram a dizer que a presença de Cristo está primariamente na assembleia
reunida [10].
Segundo o ensinamento da Igreja, as
múltiplas presenças de Cristo são efectivas e importantes, mas a presença na
Eucaristia ultrapassa as outras. Cerca de quinze anos antes do Vaticano II, o Papa
Pio XII chamou a atenção para quatro das maneiras como Cristo está presente na
liturgia. Mas preocupou-se em precisar que essas maneiras de presença não
estavam todas no mesmo nível. O Divino Fundador da Igreja, escrevia o Papa,
“está presente [...] sobretudo sob as espécies eucarísticas” [11].
Paulo VI, na sua encíclica de 1965,
forneceu uma relação semelhante, acrescentando à lista de Pio XII uma quinta
maneira: a presença de Cristo na proclamação da Palavra [12]. Mas não deu
espaço a dúvidas sobre qual pudesse ser a presença mais importante. Depois de
ter sublinhado mais uma vez as múltiplas presenças de Cristo, dizia: “Outra é,
contudo, e verdadeiramente sublime, a presença de Cristo na sua Igreja pelo
Sacramento da Eucaristia. Por causa dela, é este Sacramento, comparado com os
outros, mais suave para a devoção, mais belo para a inteligência, mais santo
pelo que encerra; contém, de facto, o próprio Cristo, e é como que a perfeição
da vida espiritual e o fim de todos os Sacramentos” (Mysterium fidei,
40).
Essa presença, dizia Paulo VI, é
denominada real não porque as outras sejam irreais, mas porque é real por
excelência (Mysterium fidei, 41). Como presença substancial de
Cristo todo inteiro, a Eucaristia supera a sua presença transitória e virtual
nas águas baptismais, nos outros sacramentos, na proclamação da Palavra e no
ministro que representa Cristo nessas acções.
Se esta autoridade não fosse suficiente,
poderíamos notar que o Vaticano II, na sua constituição sobre a liturgia,
afirma que Cristo está presente “sobretudo [maxime] nas espécies
eucarísticas” (Sacrosanctum Concilium, 7). E o Papa João Paulo II, na
sua encíclica de 2003 sobre a Eucaristia, disse que deveríamos ser capazes de
reconhecer Cristo “onde quer que Ele se manifeste, com as suas diversas
presenças, mas sobretudo no sacramento vivo do seu Corpo e do seu Sangue” [12].
Há uma diferença notável entre a presença
de Cristo na Eucaristia e na assembleia ou nos seus membros. Os fiéis, em
determinadas condições, são unidos misticamente a Deus pela graça. O Espírito
Santo habita neles, mas eles mantêm a sua identidade pessoal. Não são
transubstanciados; não deixam de ser eles mesmos para se transformarem em
Cristo Senhor.
A Igreja como Corpo Místico nunca pode elevar-se
à dignidade de Cristo no seu Corpo específico, que nasceu da Virgem Maria,
morreu na cruz e reina glorioso no céu. Esse Corpo está substancialmente
presente na Eucaristia, mas não na comunidade cristã. Há uma notável diferença
entre a adoração que damos a Cristo na Eucaristia e a veneração que damos aos
santos.
Alguns desses teólogos que minimizam, afirmam que, visto que a finalidade da Eucaristia é formar a Igreja como Corpo
de Cristo, a sua presença eclesial é mais intensa e mais importante do que sua
presença nas espécies consagradas [14]. O erro que reside nessa lógica pode ser
entendido, se pensarmos na Encarnação. Jesus fez-Se homem e morreu na cruz pela
nossa redenção, mas daí não resulta que Deus esteja mais intensamente
presente na comunidade dos remidos do que no Filho encarnado, ou que a nossa
devoção se deva concentrar mais nos cristãos do que em Cristo Senhor.
Um segundo argumento empregado às vezes
para exaltar a Igreja acima da Eucaristia, é que seria a Igreja, como sacramento
geral, aquele que produz cada um dos sete Sacramentos, inclusive a Eucaristia.
A Igreja, dizem, não poderia dar o que não tem. Mas esse argumento não leva em
conta o facto de que a Igreja não produz os sacramentos por obra do seu poder.
A Eucaristia, como os outros sacramentos, é um dom de Deus. Ao produzi-lo, a
Igreja é subordinada a Cristo, o ministro principal. A Igreja, além disso, é
formada pela Eucaristia. Os fiéis são um só corpo porque participam de um só
pão, que é Cristo Senhor (cf. 1 Coríntios 10,17). Assim, poderíamos dizer, como
disse o Papa João Paulo II na sua encíclica, que, se a Igreja faz a Eucaristia,
não é menos verdade que a Eucaristia faz a Igreja (cf. Ecclesia de
Eucharistia, n. 26).
Uma terceira linha de pensamento que tende
a minimizar a realidade da presença de Cristo na Eucaristia vem da fenomenologia
personalista em moda no período do Vaticano II. Concentrando-se nas relações
interpessoais, essa escola de pensamento faz coincidir a existência pessoal com
os relacionamentos humanos.
Os teólogos seguidores dessa tendência
refutam a ideia de substância, sobretudo quando é aplicada à Eucaristia, que
consideram como uma refeição comum. Mesmo em nível natural, dizem, um almoço
com os amigos é muito mais que comer e beber; é uma ocasião social para
expressar e consolidar as relações humanas. Assim se dá, dizem, com a
Eucaristia. Convidando-nos à sua ceia, o Senhor dá ao pão e ao vinho um
novo significado e uma nova finalidade, como símbolos eficazes de seu amor que
redime. Os elementos mudaram na medida em que adquirem uma nova importância e
uma nova finalidade. Por esse motivo, continuam, deveríamos falar de
“transignificação” e de “transfinalização”, mais que de “transubstanciação” [15].
Esses novos termos podem ser discutíveis e
estorvar e, assim, do ponto de vista terminológico, não levam a nenhuma
melhoria com relação ao termo “transubstanciação”. No que exprimem de positivo,
os termos são inócuos. Na Eucaristia, a importância e a finalidade do pão e do
vinho efectivamente mudaram: indicam e realizam a alimentação espiritual e a
jubilosa comunhão com Cristo e com os cristãos. Mas a terminologia alternativa
é carente porque não nos diz nada acerca do que acontece às espécies
consagradas em si mesmas.
Paulo VI, na sua encíclica Mysterium fidei, explicou que o pão e o
vinho podem adquirir uma importância e uma finalidade radicalmente novas porque
contêm uma nova realidade. A mudança do significado e da finalidade derivam de
uma precedente mudança ontológica (cf. Mysterium fidei, n. 46).
Podemos relacionar-nos pessoalmente com Cristo no Sacramento, e Ele connosco,
pois Ele está realmente ali. A sua presença no Sacramento é real e pessoal,
quer a pessoa creia e a reconheça, quer não. A Eucaristia não é apenas um
sinal, mas uma pessoa que subsiste por direito próprio, como acontece às
pessoas.
Um teólogo holandês da década de 1960
perguntou-se se a presença real continuaria na hóstia consagrada, caso no mundo
todos fossem mortos inesperadamente por algum desastre excepcional. Respondeu
negativamente, com base no facto de que a presença pessoal não pode existir
fora de um encontro recíproco de sujeitos livres e conscientes [16].
Esse teólogo parece confundir os dois
sentidos de “presença”. “Presença”, de facto, pode significar duas coisas. Pode
ser presença interior, como a alma está presente no corpo
ou como Cristo está presente nas espécies eucarísticas. Ou pode significar
presença para outros. Das duas, a presença
interior é a mais fundamental. Restringir a presença real à segunda é
redutivo. Nós distanciamo-nos da fé da Igreja Católica, que afirma que a
presença real de Cristo na Eucaristia é objectiva e independente de sua
percepção por parte de quem quer que seja.
Continuam a ser levantadas questões sobre o termo “substância”, sobretudo
porque o conceito clássico de substância, comum ao pensamento realista, não é
muito aceite hoje. Desde o período de Descartes e Locke, o termo passou a
significar algo auto-incluído e inerte, ao passo que antes tinha o significado
de centro activo gerador de relações, que, por meio dos próprios acidentes,
entra em relação dinâmica com outras criaturas.
Naturalmente, hoje muita gente acha
estranho dizer de uma pessoa que é uma substância. Mas, se o conceito clássico
for abandonado, será preciso encontrar outro termo para indicar o que é uma
coisa em sua realidade fundamental. Ao
chamar substancial à presença eucarística de Cristo, a Igreja pretende dizer
que a Eucaristia, na sua realidade, nada mais é que Cristo.
A transubstanciação, como expliquei, é o
processo por meio do qual uma substância, no caso, a do pão ou do vinho, se
transforma numa outra substância, a do Corpo e do Sangue de Cristo, sem sofrer
nenhuma mudança físico-química. O Concílio de Trento ensinou que o termo é muito
adequado (cf. Denzinger-Schönmetzer 1652). Paulo VI, em 1965,
disse que era ainda “adequado e preciso” e, como lembrei, achava-o superior a
outros termos que haviam sido propostos (cf. Mysterium fidei, n. 46).
Mas a Igreja não se vinculou definitivamente a nenhum vocábulo em particular.
Uma mudança na terminologia continua a ser
teoricamente possível.
Houve ainda, como resultado das novas teologias eucarísticas propostas durante o
Vaticano II e logo depois, uma temporária perda de interesse pelo Santíssimo
Sacramento. Toda a atenção foi reservada à celebração da missa. Em muitas
paróquias e casas religiosas, a bênção eucarística foi repentinamente
abandonada. Em algumas igrejas, reservou-se um lugar modesto ao lugar da reserva do
Santíssimo Sacramento, mais parecido com uma despensa do que com uma capela.
Educadores de vanguarda no campo da religião repetiam aos fiéis que a
finalidade do Santíssimo Sacramento era ser recebido na comunhão e não ser
adorado, como se as duas coisas se excluíssem mutuamente.
O magistério eclesiástico resistiu
constantemente a essa tendência negativa, combatendo-a. Mesmo concordando que a
finalidade primária da Eucaristia é tornar presente o sacrifício da cruz e dar
alimento espiritual ao fiel, o Concílio de Trento insistiu em que o Santíssimo
Sacramento deve ser honrado e adorado fora da liturgia da missa (cf. Denzinger-Schönmetzer n. 1643.1656).
Negar isso equivale a negar a presença substancial de Cristo no Sacramento.
Em 1965, o Papa Paulo VI falou de maneira
clara e decidida em favor da guarda do Santíssimo Sacramento num lugar de honra
na igreja. Exortou os pastores a que expusessem o Sacramento à solene adoração
e a que fizessem procissões eucarísticas nos momentos oportunos; convidou depois
os fiéis a visitá-lo frequentemente (cf. Mysterium fidei, n. 55.66-68).
João Paulo II, nos seus muitos escritos
como Papa, procurou promover a digna celebração da Eucaristia e a devoção à
Eucaristia fora da missa. Na sua encíclica de 2003, exprime satisfação pelos
muitos lugares nos quais a adoração do Santíssimo Sacramento é praticada com
fervor, ao mesmo tempo em que deplora que em outros lugares essa prática tenha
sido quase completamente abandonada (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 10).
O culto eucarístico fora da missa,
escreve, “é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado
intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. [...] Compete aos
Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de
modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de
adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas” (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 25).
O próprio Papa passava muitas horas diante
do Santíssimo Sacramento e muitas de suas melhores intuições nasciam desses
momentos de oração. Como Santo Afonso de Ligório, que ele cita a este respeito,
o Papa estava convencido do valor da adoração de Jesus no Santíssimo
Sacramento. A oração diante da Eucaristia fora da missa, escreve, permite-nos
tomar contacto com a fonte da graça (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 25).
Em boa parte graças a esse encorajamento
papal, houve um notável crescimento da prática da Exposição do Santíssimo e da hora santa de
adoração.
Essas práticas, longe de enfraquecer a
fome da santa comunhão, estimulam-na. Prolongam e incrementam os frutos da
participação activa na missa. Além disso, exprimem e fortificam a fé dos
católicos no pleno significado da presença real. Permanecendo entre nós dessa
forma sacramental, o Senhor mantém a sua promessa de estar com sua Igreja
“todos os dias, até o fim dos tempos” (Mateus 28,20).
Ainda que o mistério da presença real leve ao limite as nossas possibilidades de compreensão, não é um quebra-cabeças. É um sinal consolador do amor, do poder e da genialidade do nosso Divino Salvador. Ele quis entrar em íntima união com os fiéis de todas as gerações, e quis fazê-lo de um modo que satisfizesse a nossa natureza de espíritos encarnados.
Ainda que o mistério da presença real leve ao limite as nossas possibilidades de compreensão, não é um quebra-cabeças. É um sinal consolador do amor, do poder e da genialidade do nosso Divino Salvador. Ele quis entrar em íntima união com os fiéis de todas as gerações, e quis fazê-lo de um modo que satisfizesse a nossa natureza de espíritos encarnados.
O alimentar e o beber, formas
profundamente carregadas da lembrança da história do antigo Israel, são
significativos até para as pessoas incultas, em todos os tempos. Simbolizam
oportunamente a alimentação e a restauração espiritual conferidos pelo
Sacramento.
Em outro nível, conduzem o pensamento à
crucificação de Cristo, que derramou o Seu sangue pela nossa redenção. E, enfim,
prefiguram o banquete eterno dos bem-aventurados na Jerusalém celeste. O
simbolismo múltiplo da Eucaristia não pode ser separado da presença real. Esse
simbolismo tem o poder singular de chamar a atenção da memória para o passado,
transformar o presente e antecipar o futuro, pois contém verdadeira, real e
substancialmente o Senhor da história.
NOTAS
1 Para uma
exposição desses três termos, cf. Max Thurian, The Mystery of the
Eucharist: an Ecumenical Approach, Michigan, Eerdemans-Grand Rapids, 1984,
pp. 55-58.
2 Concílio Vaticano II, Presbyterorum
ordinis, 5, que cita Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III,
q. 65, a. 3, ad 1; cf. q. 79, a. 1c e ad 1.
3 Cf. Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 77,
a. 6, “Podem as espécies alimentar?”. Santo Tomás se refere a 1Cor 11,21 e aos
comentários que se faziam em seu tempo para mostrar que as espécies, tomadas em
quantidade suficiente, podem satisfazer a fome e embriagar.
4 Essa linha de pensamento, que parte de Pascásio Radberto, é representada
por Lanfranco e Guitmundo de Aversa. Cf. o artigo, “Guitmund of
Aversa and the Eucharistic Theology of St. Thomas”, de Mark G. Vaillancourt, em The
Thomist 69 (outubro de 2005).
5 Jean Borella, The Sense of Supernatural, Edinburgh, T&T
Clark, 1998, pp. 71-77. Ele encontra a doutrina do “triplo corpo
de Cristo” em Ambrósio, Pascásio Radberto e Honório de Autun. Henri de Lubac
fala de Amalário de Metz e Godescalco de Orbais como representantes dessa
doutrina medieval. Cf. o seu Corpus Mysticum: L’Eucharistie et
l’Eglise au Moyen Age, 2ª ed., Paris, Aubier, 1949, p. 37. Esses teólogos não negaram a identidade
real entre o corpo real e o corpo eucarístico de Cristo.
6 Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 76, a.
6. Para um lúcido comentário, cf. Anscar Vonier, A Key to the Doctrine
of the Eucharist, 1923, pp. 132-133; segunda edição: Bethesda (EUA),
Zaccheus Press, 2003.
7 Id., ibid., a. 8, ad 2 e ad 3.
8 Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q. 76, a.
3.
9 Id., ibid., q. 76, a. 7.
10 Judith Marie Kubicki atribui a Karl Rahner, Edward Schillebeeckx e Piet
Schoonenberg a posição segundo a qual a Igreja como sacramento é “o primeiro
lugar da presença de Cristo no mundo”. Cf. seu artigo
“Recognizing the Presence of Christ in the Liturgical Assembly”, in: Theological
Studies 65 (2004), pp. 817-837, na p. 821.
11 Pio XII, encíclica Mediator
Dei, 20.
12 Paulo VI, encíclica Mysterium fidei, 36.
13 João Paulo II, encíclica Ecclesia de Eucharistia, 6.
14 Típico desse ponto de vista é o breve artigo “Changing Elements or
People?”, de F. Gerald Martin, in: America 182 (4 de Março de
2000), p. 22. Reagindo contra a tendência a separar a presença real da santa
comunhão, ele cai no erro oposto, desmerecendo a devoção ao Santíssimo
Sacramento, como se ela se opusesse à comunhão frequente.
15 O termo “transfinalização” parece ter sido cunhado pelo marista francês
Jean de Baciocchi, mas foi usado por muitos outros. O termo “transignificação”
está associado em particular ao jesuíta holandês Piet Schoonenberg. Para boas
informações sobre essas tendências, cf. Joseph M. Powers, Eucharistic
Theology, Nova York, Seabury, 1967, pp. 111-179, e Colman O’Neill, New
Approaches to the Eucharist, Staten Island, Alba House, 1967, pp. 103-126.
16 Piet
Schoonenberg, “The Real Presence in Contemporary Discussion”, in: Theology
Digest 15 (primavera de 1967), pp. 3-11, na p. 10.
17 Tomo esses dados de Amy L.
Florian, “Adoro Te devote”, in: America 182 (4 de Março de
2000), pp. 18-21, na p. 18.
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