A
crise na vida familiar que tem convulsionado o Ocidente desde os anos 60 do
século passado fez com que a Igreja, nos últimos tempos, se tenha, em grande
medida, dedicado a apresentar uma visão coerente e convincente do matrimónio
cristão, o que se justifica totalmente.
Mas
isso não deve levar os cristãos a minimizar a nobreza da vida celibatária, que
a tradição cristã sempre teve na mais alta consideração. É particularmente
importante ter isto presente, no momento em que a Igreja se esforça por
encontrar a melhor forma de ajudar as pessoas homossexuais a serem santas.
Além
do óbvio exemplo do próprio Jesus, S. Paulo foi o primeiro a promover o
celibato como uma forma de "dedicação indivisa ao Senhor"[1]. S.
Paulo escreveu numa época muito anterior à existência de monges ou mosteiros, e
dirige-se tanto a homens como a mulheres. E não se refere ao celibato
sacerdotal ou à «vida consagrada». Está a referir-se ao valor de uma
vocação de celibato vivido no meio do mundo.
A
ideia de que os homossexuais são chamados
ao celibato soa estranha para muitos cristãos hoje. Nós tendemos a
associar o celibato com uma escolha consciente de renúncia ao casamento. Por outras
palavras, só poderia realmente ter uma vocação celibatária, alguém que fosse
primeiro atraído para o casamento, e depois decidisse renunciar a ele como uma
possibilidade para si. O Papa Bento XVI expressou um pensamento nesta
linha em A Luz do Mundo:
“A homossexualidade não é compatível com o sacerdócio. Senão, o celibato
como renúncia também não teria sentido. Seria um grande perigo se o celibato se
tornasse numa oportunidade para introduzir no sacerdócio pessoas que não se
querem casar”[2].
Deixando
agora de lado qualquer discussão sobre a adequação dos homossexuais para o
ministério sacerdotal[3], deve
ser salientado que a visão baseada na escolha, aqui expressa por Bento XVI, não
é o único caminho que a tradição cristã tem à sua disposição para pensar sobre a vida
celibatária em geral.
Dirigindo-se
a mulheres que sabiam que jamais poderiam vir a casar, porque a vida de muitos
dos homens de seu país tinha sido dizimada pela Segunda Guerra Mundial, o Papa
Pio XII afirmou o seguinte, em 1945:
“Quando
se pensa nas mulheres que renunciam voluntariamente ao matrimónio para se
consagrarem a uma vida mais elevada de contemplação, sacrifício e de caridade,
logo aflora aos lábios uma palavra luminosa: a vocação! Esta vocação, este
amoroso chamamento faz-se ouvir de maneiras muito diversas, como infinitamente
distintas são as modulações da voz divina: convites irresistíveis, inspirações
que impelem afectuosamente, suaves impulsos.
Mas também a jovem cristã que
fica sem se casar, mau grado seu, mas que crê firmemente na Providência do Pai
Celeste, reconhece nas vicissitudes da vida a voz do Mestre: “O Mestre está aqui e chama-te!” (João 11, 28. Ela responde; ela
renuncia ao amado sonho da sua adolescência e da sua juventude: ter um
companheiro fiel na vida, formar uma família. E, na impossibilidade do
matrimónio, vislumbra a sua vocação, e então, com o coração desfeito, mas
submisso, também ela se consagra totalmente às obras de beneficência mais
nobres e multiformes”[4].
Para
Pio XII, o "significado" do celibato não está na nossa escolha de um
estado de vida, mas na escolha de Deus sobre nós . Para
um cristão atraído por alguém do mesmo sexo, a questão da sua própria escolha é
irrelevante. A questão importante é o que Deus escolheu para ele. Claro
que o celibato, tal como o casamento, exige o consentimento, não pode ser
imposto, deve ser abraçado em liberdade. Mas a chave para um entendimento
correcto do celibato não é a livre escolha, mas sim a resposta
livre: a resposta livre e obediente ao chamamento divino.
Este
apelo pode manifestar-se de diferentes maneiras. Muitos podem sentir este
chamamento como um suave murmúrio que ressoa aos seus ouvidos, quando, na
oração, procuram discernir qual o estado de vida – entre muitos possíveis – ao
qual são chamados.
No
entanto, para outros – tal como refere Pio XII – o chamamento divino é
percebido no meio e através das circunstâncias da vida de cada um, que muitas
vezes deixam a pessoa com pouca margem de escolha nessa matéria. Mas, em
ambos os casos, a vocação tem a mesma dignidade, contanto que seja abraçada com
a mesma generosidade por parte da pessoa que Deus chama.
Escusado
será dizer, também, que as bênçãos ligadas à vocação do celibato – a
oportunidade de desfrutar de uma união mais profunda nesta vida com Cristo, o
Divino Esposo – estão, em princípio, abertas a todos aqueles que levam uma vida
casta e celibatária, independentemente do modo como tenham vindo a tomar
consciência da sua vocação.
Este
é um ponto importante. Os críticos do ensinamento da Igreja alegam muitas vezes
que ela pede aos homossexuais que desistam da possibilidade de um relacionamento
íntimo, em troca de uma vida de infelicidade e solidão. No entanto, quando se
considera que o que realmente se oferece em troca é a união com Deus através da
castidade, o ‘negócio’ começa a parecer logo mais atraente!
Infelizmente,
as igrejas são muitas vezes lugares pouco acolhedores para
homossexuais. Isto não devia acontecer. Dado a alta consideração da
Igreja, historicamente comprovada, para com aqueles que levam uma vida
celibatária e casta, é normal que a Igreja possa ser o lar acolhedor de um
grupo de pessoas a quem ela mesma chama a levar este género de vida tendo em
conta a sua orientação sexual.
Frequentemente
a Igreja culpa os media por
deturparem os seus ensinamentos, e fazendo-a parecer anti-gay. Embora isso
possa acontecer, há que reconhecer que muitas vezes a culpa disso é dos
católicos. Os seus pronunciamentos limitam-se muitas vezes à denúncia da
incorrecção das práticas homossexuais e à crítica do casamento entre pessoas do
mesmo sexo.
Mas
a verdade é que não tem que ser assim.
A
Igreja, de facto, tem uma mensagem muito especial e positiva para os
homossexuais: “O Mestre está aqui e
chama-te!”
(Notas acrescentadas por mim ao texto original)
Notas finais
1) Na Igreja, estas pessoas estarão com
toda a naturalidade, sem, evidentemente, constituir um grupo, e sem se
distinguirem em nada de outras pessoas que, pelos mais diversos motivos, também não se casaram, e que igualmente procuram santificar-se na continência e na castidade.
2) Em
diversas intervenções recentes, o Papa Francisco terá pretendido corrigir a
acentuação na abordagem negativa e crítica das práticas homossexuais, de resto bem
explícita no Catecismo da Igreja Católica (n. 2357) e no Youcat (n. 65).
É
verdade que o Santo Padre ainda não explicitou a alternativa de santidade proposta a essas pessoas que, no dizer do
mesmo Catecismo da Igreja Católica, “experimentam uma atracção sexual exclusiva
ou predominante para pessoas do mesmo sexo” (n. 2357). Mas
certamente não deixará de o fazer.
De
resto, essa alternativa está já bem delineada
no Catecismo da Igreja Católica, num texto em que a verdade e a caridade se
abraçam harmoniosamente:
“Um número considerável de
homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas.
Esta propensão, objectivamente desordenada, constitui, para a maior parte
deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza.
Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas
pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem
cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem
encontrar devido à sua condição. As pessoas homossexuais são chamadas à
castidade. Pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e,
às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela oração e pela graça
sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição
cristã” (n. 2358 e 2359).
E o mesmo no Youcat:
Todo o ser humano que existe na
Terra provém da união de uma mãe e um pai. Por isso, para algumas pessoas é uma
experiência dolorosa não se sentirem eroticamente atraídas pelo sexo oposto e
terem de sentir, numa união homossexual, a falta da fecundidade física, como é
próprio da natureza do ser humano e da divina ordem da Criação. Frequentemente,
contudo, Deus chama a Si por vias inusitadas: uma carência, uma perda ou uma
ferida - assumida ou aceite - pode tornar-se um trampolim para se lançar nos
braços de Deus, aquele Deus que tudo corrige e Se deixa descobrir mais como
Redentor que como Criador” (n. 65).
(A redacção deste ponto do Youcat parece-me pouco feliz. Destaca a "experiência dolorosa" de duas pessoas do mesmo sexo pelo facto de a sua união [física] ser necessariamente estéril, mas, ao contrário do Catecismo da Igreja Católica, não salienta a não conformidade e mesmo a grave dissonância dessa união em relação ao projecto divino para o ser humano, homem e mulher, tal como reiteradamente é transmitido na Sagrada Escritura e na doutrina da Igreja).
(A redacção deste ponto do Youcat parece-me pouco feliz. Destaca a "experiência dolorosa" de duas pessoas do mesmo sexo pelo facto de a sua união [física] ser necessariamente estéril, mas, ao contrário do Catecismo da Igreja Católica, não salienta a não conformidade e mesmo a grave dissonância dessa união em relação ao projecto divino para o ser humano, homem e mulher, tal como reiteradamente é transmitido na Sagrada Escritura e na doutrina da Igreja).
3) Este «desafio», dirigido às pessoas homossexuais, a
viverem em celibato, como caminho de santificação, não nega que o celibato
livremente escolhido, como no caso do celibato sacerdotal, e a virgindade “pelo
Reino dos Céus”, tenham um valor singular e até superior ao próprio matrimónio,
como sempre considerou a tradição cristã, reiterada por João Paulo II na
Exortação Apostólica Familiaris Consortio,
de 22 de Novembro de 1981, n. 16:
“Tornando
livre de um modo especial o coração humano (cf. 1 Cor. 7, 32-35), «de forma a inebriá-lo muito mais de
caridade para com Deus e para com todos os homens» (Conc. Ecum. Vat. II, Decr.
sobre a renovação da vida religiosa Perfectae
caritatis, 12), a virgindade testemunha que o Reino de Deus e a sua justiça
são aquela pérola preciosa que é preferida a qualquer outro valor, mesmo que
seja grande, e, mais ainda, é procurada como o único valor definitivo. É por
isso que a Igreja, durante toda a sua história, defendeu sempre a superioridade
deste carisma no confronto com o do matrimónio, em razão do laço singular que
ele tem com o Reino de Deus (Cfr. Pio PP. XII, Carta Enc. Sacra Virginitas, II, 174 ss).
E é neste
contexto que o Beato João Paulo II (em breve Santo), alude também, embora sem
especificar as situações, aos que, contra a sua vontade, não se casaram:
“Estas reflexões sobre a virgindade
podem iluminar e ajudar os que, por motivos independentes da sua vontade, não
se puderam casar e depois aceitaram a sua situação em espírito de serviço” (ibid).
[1] Cf. 1 Coríntios 7, 34; cf. Lumen
gentium, n. 42
[2] BENTO
XVI, Luz do mundo, Lucerna, Cascais, 2010, p. 148.
[3] Sobre
este assunto pode ler-se um estudo publicado no site Presbíteros, intitulado: “Homossexualidade e ministério ordenado”.
[4] PIO XII,
Discurso A missão da mulher, 21 de
Outubro de 1945. Tradução portuguesa em: A
família, comunidade de amor e de vida, Secretaria Geral do Episcopado – Ed.
Rei dos Livros, Lisboa, 1994, p. 354.
Mais uma excelente reflexão.
ResponderEliminarUm ótimo domingo na companhia dos Santos Anjos da Guarda.
Bem haja!
Célia Fonseca
Esta síntese, do Beato João Paulo II é um excelente remate para o texto "Chamados a um celibato não escolhido - Aaron Taylor"
ResponderEliminarMuito obrigado!