quarta-feira, setembro 25, 2013

Chamados a um celibato não escolhido - Aaron Taylor


A crise na vida familiar que tem convulsionado o Ocidente desde os anos 60 do século passado fez com que a Igreja, nos últimos tempos, se tenha, em grande medida, dedicado a apresentar uma visão coerente e convincente do matrimónio cristão, o que se justifica totalmente. 
Mas isso não deve levar os cristãos a minimizar a nobreza da vida celibatária, que a tradição cristã sempre teve na mais alta consideração. É particularmente importante ter isto presente, no momento em que a Igreja se esforça por encontrar a melhor forma de ajudar as pessoas homossexuais a serem santas.
Além do óbvio exemplo do próprio Jesus, S. Paulo foi o primeiro a promover o celibato como uma forma de "dedicação indivisa ao Senhor"[1]. S. Paulo escreveu numa época muito anterior à existência de monges ou mosteiros, e dirige-se tanto a homens como a mulheres. E não se refere ao celibato sacerdotal ou à «vida consagrada». Está a referir-se ao valor de uma vocação de celibato vivido no meio do mundo.
A ideia de que os homossexuais são chamados ao celibato soa estranha para muitos cristãos hoje. Nós tendemos a associar o celibato com uma escolha consciente de renúncia ao casamento. Por outras palavras, só poderia realmente ter uma vocação celibatária, alguém que fosse primeiro atraído para o casamento, e depois decidisse renunciar a ele como uma possibilidade para si. O Papa Bento XVI expressou um pensamento nesta linha em A Luz do Mundo: “A homossexualidade não é compatível com o sacerdócio. Senão, o celibato como renúncia também não teria sentido. Seria um grande perigo se o celibato se tornasse numa oportunidade para introduzir no sacerdócio pessoas que não se querem casar”[2].
Deixando agora de lado qualquer discussão sobre a adequação dos homossexuais para o ministério sacerdotal[3], deve ser salientado que a visão baseada na escolha, aqui expressa por Bento XVI, não é o único caminho que a tradição cristã tem à sua disposição para pensar sobre a vida celibatária em geral. 
Dirigindo-se a mulheres que sabiam que jamais poderiam vir a casar, porque a vida de muitos dos homens de seu país tinha sido dizimada pela Segunda Guerra Mundial, o Papa Pio XII afirmou o seguinte, em 1945:

“Quando se pensa nas mulheres que renunciam voluntariamente ao matrimónio para se consagrarem a uma vida mais elevada de contemplação, sacrifício e de caridade, logo aflora aos lábios uma palavra luminosa: a vocação! Esta vocação, este amoroso chamamento faz-se ouvir de maneiras muito diversas, como infinitamente distintas são as modulações da voz divina: convites irresistíveis, inspirações que impelem afectuosamente, suaves impulsos.
Mas também a jovem cristã que fica sem se casar, mau grado seu, mas que crê firmemente na Providência do Pai Celeste, reconhece nas vicissitudes da vida a voz do Mestre: “O Mestre está aqui e chama-te!” (João 11, 28. Ela responde; ela renuncia ao amado sonho da sua adolescência e da sua juventude: ter um companheiro fiel na vida, formar uma família. E, na impossibilidade do matrimónio, vislumbra a sua vocação, e então, com o coração desfeito, mas submisso, também ela se consagra totalmente às obras de beneficência mais nobres e multiformes”[4].

Para Pio XII, o "significado" do celibato não está na nossa escolha de um estado de vida, mas na escolha de Deus sobre nós . Para um cristão atraído por alguém do mesmo sexo, a questão da sua própria escolha é irrelevante. A questão importante é o que Deus escolheu para ele. Claro que o celibato, tal como o casamento, exige o consentimento, não pode ser imposto, deve ser abraçado em liberdade. Mas a chave para um entendimento correcto do celibato não é a livre escolha, mas sim a resposta livre: a resposta livre e obediente ao chamamento divino.
Este apelo pode manifestar-se de diferentes maneiras. Muitos podem sentir este chamamento como um suave murmúrio que ressoa aos seus ouvidos, quando, na oração, procuram discernir qual o estado de vida – entre muitos possíveis  ao qual são chamados.
No entanto, para outros – tal como refere Pio XII – o chamamento divino é percebido no meio e através das circunstâncias da vida de cada um, que muitas vezes deixam a pessoa com pouca margem de escolha nessa matéria. Mas, em ambos os casos, a vocação tem a mesma dignidade, contanto que seja abraçada com a mesma generosidade por parte da pessoa que Deus chama.
Escusado será dizer, também, que as bênçãos ligadas à vocação do celibato – a oportunidade de desfrutar de uma união mais profunda nesta vida com Cristo, o Divino Esposo – estão, em princípio, abertas a todos aqueles que levam uma vida casta e celibatária, independentemente do modo como tenham vindo a tomar consciência da sua vocação. 
Este é um ponto importante. Os críticos do ensinamento da Igreja alegam muitas vezes que ela pede aos homossexuais que desistam da possibilidade de um relacionamento íntimo, em troca de uma vida de infelicidade e solidão. No entanto, quando se considera que o que realmente se oferece em troca é a união com Deus através da castidade, o ‘negócio’ começa a parecer logo mais atraente!
Infelizmente, as igrejas são muitas vezes lugares pouco acolhedores para homossexuais. Isto não devia acontecer. Dado a alta consideração da Igreja, historicamente comprovada, para com aqueles que levam uma vida celibatária e casta, é normal que a Igreja possa ser o lar acolhedor de um grupo de pessoas a quem ela mesma chama a levar este género de vida tendo em conta a sua orientação sexual. 
Frequentemente a Igreja culpa os media por deturparem os seus ensinamentos, e fazendo-a parecer anti-gay. Embora isso possa acontecer, há que reconhecer que muitas vezes a culpa disso é dos católicos. Os seus pronunciamentos limitam-se muitas vezes à denúncia da incorrecção das práticas homossexuais e à crítica do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Mas a verdade é que não tem que ser assim.
A Igreja, de facto, tem uma mensagem muito especial e positiva para os homossexuais: “O Mestre está aqui e chama-te!”


Aaron Taylor, Called to Celibacy Unchosen, 13 de Julho de 2013

(Notas acrescentadas por mim ao texto original)



Notas finais

1) Na Igreja, estas pessoas estarão com toda a naturalidade, sem, evidentemente, constituir um grupo, e sem se distinguirem em nada de outras pessoas que, pelos mais diversos motivos, também não se casaram, e que igualmente procuram santificar-se na continência e na castidade.

2) Em diversas intervenções recentes, o Papa Francisco terá pretendido corrigir a acentuação na abordagem negativa e crítica das práticas homossexuais, de resto bem explícita no Catecismo da Igreja Católica (n. 2357) e no Youcat (n. 65).
É verdade que o Santo Padre ainda não explicitou a alternativa de santidade proposta a essas pessoas que, no dizer do mesmo Catecismo da Igreja Católica, “experimentam uma atracção sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo sexo” (n. 2357). Mas certamente não deixará de o fazer.

De resto, essa alternativa está já bem delineada no Catecismo da Igreja Católica, num texto em que a verdade e a caridade se abraçam harmoniosamente:

“Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objectivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã” (n. 2358 e 2359).

E o mesmo no Youcat:

Todo o ser humano que existe na Terra provém da união de uma mãe e um pai. Por isso, para algumas pessoas é uma experiência dolorosa não se sentirem eroticamente atraídas pelo sexo oposto e terem de sentir, numa união homossexual, a falta da fecundidade física, como é próprio da natureza do ser humano e da divina ordem da Criação. Frequentemente, contudo, Deus chama a Si por vias inusitadas: uma carência, uma perda ou uma ferida - assumida ou aceite - pode tornar-se um trampolim para se lançar nos braços de Deus, aquele Deus que tudo corrige e Se deixa descobrir mais como Redentor que como Criador” (n. 65).

(A redacção deste ponto do Youcat parece-me pouco feliz. Destaca a "experiência dolorosa" de duas pessoas do mesmo sexo pelo facto de a sua união [física] ser necessariamente estéril, mas, ao contrário do Catecismo da Igreja Católica, não salienta a não conformidade e mesmo a grave dissonância dessa união em relação ao projecto divino para o ser humano, homem e mulher, tal como reiteradamente é transmitido na Sagrada Escritura e na doutrina da Igreja).

3) Este «desafio», dirigido às pessoas homossexuais, a viverem em celibato, como caminho de santificação, não nega que o celibato livremente escolhido, como no caso do celibato sacerdotal, e a virgindade “pelo Reino dos Céus”, tenham um valor singular e até superior ao próprio matrimónio, como sempre considerou a tradição cristã, reiterada por João Paulo II na Exortação Apostólica Familiaris Consortio, de 22 de Novembro de 1981, n. 16:


“Tornando livre de um modo especial o coração humano (cf. 1 Cor. 7, 32-35), «de forma a inebriá-lo muito mais de caridade para com Deus e para com todos os homens» (Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, 12), a virgindade testemunha que o Reino de Deus e a sua justiça são aquela pérola preciosa que é preferida a qualquer outro valor, mesmo que seja grande, e, mais ainda, é procurada como o único valor definitivo. É por isso que a Igreja, durante toda a sua história, defendeu sempre a superioridade deste carisma no confronto com o do matrimónio, em razão do laço singular que ele tem com o Reino de Deus (Cfr. Pio PP. XII, Carta Enc. Sacra Virginitas, II, 174 ss). 

E é neste contexto que o Beato João Paulo II (em breve Santo), alude também, embora sem especificar as situações, aos que, contra a sua vontade, não se casaram:
“Estas reflexões sobre a virgindade podem iluminar e ajudar os que, por motivos independentes da sua vontade, não se puderam casar e depois aceitaram a sua situação em espírito de serviço” (ibid).




[1] Cf. 1 Coríntios 7, 34; cf. Lumen gentium, n. 42
[2] BENTO XVI, Luz do mundo, Lucerna, Cascais, 2010, p. 148.
[3] Sobre este assunto pode ler-se um estudo publicado no site Presbíteros, intitulado: “Homossexualidade e ministério ordenado”. 
[4] PIO XII, Discurso A missão da mulher, 21 de Outubro de 1945. Tradução portuguesa em: A família, comunidade de amor e de vida, Secretaria Geral do Episcopado – Ed. Rei dos Livros, Lisboa, 1994, p. 354.

2 comentários:

  1. Mais uma excelente reflexão.
    Um ótimo domingo na companhia dos Santos Anjos da Guarda.
    Bem haja!
    Célia Fonseca

    ResponderEliminar
  2. Esta síntese, do Beato João Paulo II é um excelente remate para o texto "Chamados a um celibato não escolhido - Aaron Taylor"
    Muito obrigado!

    ResponderEliminar