No
XIX Domingo do tempo Comum, no «Ano C», lê-se, na 2ª leitura, uma passagem do Capítulo
11 da Epístola aos Hebreus, que começa assim, segundo a versão do Leccionário em uso
em Portugal:
“Irmãos:
A fé é a garantia dos bens que se esperam e a certeza das realidades que não se
vêem” (v. 1).
É
de notar que se lê a seguir o v. 2, e depois se passa logo para o v. 8, que fala
de Abraão. Ao omitir esses 5 versículos em falta, perdem-se afirmações importantes, como esta:
“Ora,
sem fé é impossível agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se
aproxima de Deus creia que Ele existe, e que recompensa os que O procuram” (v.
6).
Este
versículo, bem como os restantes versículos que foram omitidos na versão
litúrgica (talvez para não alongar a leitura) são citados e brevemente comentados pelo Papa Francisco, na Encíclica Lumen Fidei:
“A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a propósito de Henoc, que «tinha agradado a Deus», sendo isso impossível sem a fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que O procuram » (Heb. 11, 5.6). Deste modo, é possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé, em virtude da qual foram agradáveis a Deus os seus dons, a oferenda dos primogénitos dos seus rebanhos (cf. Heb. 11, 4). O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de coração sincero” (Papa Francisco, Encíclica Lumen Fidei, de 29 de Junho de 2013, n. 35).
Mas
é o primeiro versículo deste capítulo 11 da Carta aos Hebreus, que citei no
início, que apresenta uma espécie de definição da fé, que, porém,
não é de interpretação evidente, e nem sequer é fácil de traduzir. A ele se
dedicou S. Tomás de Aquino, num texto denso da Summa Theologiae, II-IIae, q. 4, a. 1.
Por
isso resulta fascinante este comentário de Bento XVI, na Encíclica Spe salvi, (a segunda da trilogia que
foi agora concluída com a Encíclica Lumen
fidei, assinada já pelo papa Francisco).
É
um comentário luminoso, de grande profundidade e também de grande beleza,
tornado ainda mais oportuno no contexto actual do «Ano da Fé»:
“Devemos
voltar, uma vez mais, ao Novo Testamento. No décimo primeiro capítulo da Carta
aos Hebreus (v. 1), encontra-se, por assim dizer, uma certa definição da fé que
entrelaça estreitamente esta virtude com a esperança. À volta da palavra
central desta frase começou a gerar-se desde a Reforma, uma discussão entre os
exegetas, mas que parece hoje encaminhar-se para uma interpretação comum. Por
enquanto, deixo o termo em questão sem traduzir. A frase soa, pois, assim: «A
fé é hypostasis das coisas que se
esperam; prova das coisas que não se vêem». Para os Padres e para os teólogos
da Idade Média era claro que a palavra grega hypostasis devia ser traduzida em latim pelo termo substantia. De facto, a tradução latina
do texto, feita na Igreja antiga, diz: «Est
autem fides sperandarum substantia rerum, argumentum non apparentium – a fé
é a ‘substância’ das coisas que se esperam; a prova das coisas que não se vêem».
“Tomás de
Aquino (na Summa Theologiae, II-IIae,
q. 4, a. 1), servindo-se da terminologia da tradição filosófica em que se
encontra, explica: a fé é um «habitus»,
ou seja, uma predisposição constante do espírito, em virtude do qual a vida
eterna tem início em nós e a razão é levada a consentir naquilo que não vê.
Deste modo, o conceito de «substância» é modificado para significar que pela
fé, de forma incoativa – poderíamos dizer «em gérmen» e portanto segundo a
«substância» – já estão presentes em nós as coisas que se esperam: a
totalidade, a vida verdadeira. E precisamente porque a coisa em si já está
presente, esta presença daquilo que há-de vir cria também certeza: esta «coisa»
que deve vir ainda não é visível no mundo externo (não «aparece»), mas pelo
facto de a trazermos, como realidade incoativa e dinâmica dentro de nós, surge
já agora uma certa percepção dela.
"Para Lutero,
que não nutria muita simpatia pela Carta aos Hebreus em si própria, o conceito
de «substância», no contexto da sua visão da fé, nada significava. Por isso,
interpretou o termo hipóstase/substância não no sentido objectivo (de realidade
presente em nós), mas no subjectivo, isto é, como expressão de uma atitude
interior e, consequentemente, teve naturalmente de entender também o termo argumentum como uma disposição do
sujeito. No século XX, esta interpretação impôs-se também na exegese católica –
pelo menos na Alemanha – de modo que a tradução ecuménica em alemão do Novo
Testamento, aprovada pelos Bispos diz: «Glaube
aber ist: Feststehen in dem, was man erhofft, Überzeugtsein von dem, was man
nicht sieht» (A fé é: permanecer firmes naquilo que se espera, estar
convencidos daquilo que não se vê).
"Em si mesmo,
isto não está errado; mas não é o sentido do texto, porque o termo grego usado
(elenchos) não tem o valor subjectivo
de «convicção», mas o valor objectivo de «prova». Com razão, pois, a recente
exegese protestante chegou a uma convicção diversa: «Agora, porém, já não
restam dúvidas de que esta interpretação protestante, tida como clássica, é insustentável»
(H. Köster).
"A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que hão-de vir, mas estão ainda totalmente ausentes; ela dá-nos algo. Dá-nos já agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma «prova» das coisas que ainda não se vêem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro «ainda-não». O facto de este futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras” (Bento XVI, Encíclica Spe salvi, de 30 de Novembro de 2007, n. 7).
Boa noite, Padre José Manuel dos Santos Ferreira.
ResponderEliminarAcabei de ler esta sua reflexão e gostei imenso.
Para S.Tomás de Aquino, a fé é uma convicção tão inabalável como o conhecimento, mas,ao contrário deste, não se baseia na visão racional, depende, sim, da aceitação de algo que se apresenta como uma revelação divina.
Há quem defenda a ideia que tudo o que nós temos é o passado e que o futuro são apenas possibilidades.
Na verdade, o texto de Bento XVI, Encíclica Spe salvi, que acabou de citar equaciona muito bem a questão da fé na sua relação com o presente e futuro.
Com efeito, o facto de existir uma possibilidade, acaba por modificar o nosso presente e a forma como nos relacionamos com ele.
Cordialmente,
Célia Fonseca