III. DESENVOLVIMENTO DO TEMA DA CONTINÊNCIA NA IGREJA LATINA
(continuação)
(continuação)
Continuamos a publicação do artigo do Cardeal Stickler,
Celibato eclesiástico – história e
fundamentos teológicos, cuja primeira parte pode ser lida aqui.
O testemunho da Igreja de Roma
No contexto do testemunho africano sobre o celibato,
já escutamos uma voz muito autorizada por parte de Roma: o legado pontifício
Faustino, que manifestou em Cartago a plena correspondência de Roma sobre essa
questão, suscitada ali incidentalmente.
Roma, aliás, já tinha enviado uma carta aos bispos da
África, na época do Papa Sirício, que comunicava as decisões do Sínodo Romano
de 386, nas quais se insistia novamente em algumas importantes disposições
apostólicas. Esta carta tinha sido comunicada durante o Concílio de Telepte do
ano 418. A última parte da mesma (can. 9.) trata precisamente da continência do
clero.
Com esse documento, introduzimo-nos no segundo
conjunto de testemunhos sobre o celibato – presentes nas disposições dos
Romanos Pontífices sobre esse tema – que tem claramente maior peso, não só
quanto à consciência da tradição observada pela Igreja Universal, mas também
para o desenvolvimento posterior e para a observância do celibato clerical.
Uma afirmação geral sobre a importância da posição de
Roma sobre qualquer assunto e, portanto, também sobre o celibato, é proveniente
de Santo Ireneu, que, tendo sido discípulo de São Policarpo, estava relacionado
com a tradição joânica, que ele – como bispo de Lyon, a partir do ano 178 –
transmitia também para a Igreja na Europa. Se, na sua principal obra, Contra as heresias, afirma que a tradição
apostólica é preservada na Igreja de Roma, fundada pelos apóstolos Pedro e
Paulo, e é por isso que todas as outras igrejas devem concordar com ela,
podemos dizer que isso vale também para a tradição sobre a continência dos
eclesiásticos.
Os primeiros testemunhos explícitos a este respeito
provêm de dois Papas: Sirício e Inocêncio I. Ao predecessor do primeiro, o Papa
Dâmaso, tinham sido apresentadas pelo bispo Himério de Tarragona algumas
questões às quais só o seu sucessor, ou seja, Sirício, tinha dado uma resposta.
Quando perguntado sobre a obrigação por parte dos clérigos maiores à continência, o Papa
respondeu na carta Directa, em
385, dizendo que os sacerdotes e diáconos que, depois da Ordenação, geram
filhos, actuam contrariamente a uma lei irrenunciável, que obriga aos clérigos
maiores desde o início da Igreja. O apelo ao facto de que, no Antigo
Testamento, os sacerdotes e levitas podiam usar do matrimónio, fora do tempo do
seu serviço no Templo, foi refutada pelo Novo Testamento, no qual os clérigos
maiores devem prestar culto sagrado todos os dias; por isso a partir do dia da
sua ordenação, devem viver continuamente a continência.
Uma segunda carta do mesmo Papa, referindo-se à mesma
questão, e que já mencionámos, é a que foi enviada aos bispos africanos em 386, e que
relatou as deliberações de um Sínodo Romano. Essa carta é especialmente
ilustrativa sobre o tema do celibato. O Papa assinalou, acima de tudo, que os
pontos tratados no Sínodo não se referem a novas obrigações, mas sim a pontos
de fé e de disciplina, que, por causa da preguiça e da inércia de alguns, têm
sido negligenciados. Devem, portanto, ser revitalizados, pois, segundo as
palavras da Sagrada Escritura – “Sê forte e observa as nossas tradições, que
recebestes, quer oralmente, quer por escrito” (2 Tes 2, 15) - trata-se de
disposições dos Padres Apostólicos. O Sínodo Romano está consciente, portanto,
de que as tradições recebidas apenas oralmente são vinculativas. E aludindo ao
juízo divino, observa que todos os bispos católicos devem observar as nove
disposições que são enumeradas.
A nona dessas é exposta com detalhe: “Os sacerdotes e
levitas não devem ter relações sexuais com assuas esposas, porque devem estar
ocupados diariamente com o seu ministério sacerdotal”.
S. Paulo escreveu aos Coríntios que eles deviam
abster-se das relações sexuais para se dedicar à oração (1 Cor 7, 5). Se aos
leigos a continência é imposta, a fim de serem ouvidos na sua oração, com muito
maior razão deve estar disposto em todo o momento o sacerdote para oferecer,
com castidade verdadeira, o Sacrifício, e para administrar o Baptismo. Depois de
outras considerações ascéticas, é rejeitada – que eu saiba, pela primeira vez
no Ocidente – pelos oitenta bispos reunidos, uma objecção, ainda hoje viva, que
visa provar a continuidade no uso do matrimónio com base nas palavras do
Apóstolo S. Paulo, segundo as quais o candidato às Sagradas Ordens só podia ter
estado casado uma única vez (1 Tim 3, 2). Essas palavras, apontaram os bispos,
não querem dizer que se pode continuar a viver a vida conjugal e a gerar filhos,
mas foram precisamente ditas em favor da futura continência. É ensinado, por
conseguinte, oficialmente – e será repetido continuamente – que as segundas
núpcias ou o matrimónio com uma viúva não oferecem segurança de continência futura.
A carta conclui com uma exortação a obedecer estas disposições que estão
sustentadas pela tradição.
O seguinte Romano Pontífice que se ocupou amplamente
da continência do clero é Inocêncio I (401-417). Provavelmente é sua uma carta
sobre essa matéria, atribuída primeiro a Dâmaso e depois a Sirício. Quando
foram apresentadas algumas questões pelos bispos da Gália, foram examinadas num
Sínodo Romano uma série de questões práticas, cujos resultados ou respostas foram comunicados na carta Dominus inter no
começo do século IV. A terceira das dezasseis perguntas referia-se à “castidade
e pureza dos sacerdotes”. Na introdução, o Papa constata que “muitos bispos em
várias igrejas particulares têm mudado temerariamente a tradição dos Padres, e
caíram na escuridão da heresia, preferindo a honra que vem dos homens, ao
mérito diante de Deus”.
E como o demandante, movido não pela curiosidade, mas
pelo desejo de estar seguro na fé, tratava de alcançar da autoridade da Sé
Apostólica informações sobre as leis e sobre as tradições, comunica-lhes numa
linguagem simples, mas de conteúdo seguro, o que se deve saber para poder
corrigir todas as deficiências que a arrogância humana causou.
À terceira das questões propostas dá a seguinte
resposta:
“Em primeiro lugar, no que diz respeito aos bispos, sacerdotes e diáconos, que devem participar nos sacrifícios divinos, por cujas mãos se comunicam a graça do baptismo e se oferecem o Corpo de Cristo, decidiu-se que estão obrigados, não só por nós, mas pela Divina Escritura, à castidade (pelo que também os Padres ordenaram que observassem a continência corporal)”.
Continua então uma ampla exposição – que ainda hoje é
digna de ser recordada – dos motivos, sobretudo bíblicos, da dita prescrição, e
conclui dizendo que, ainda que só fosse pela veneração devida à religião, não
se deve confiar o ministério divino aos desobedientes.
Outras três cartas do mesmo Papa repetem os conceitos
de seu antecessor, Sirício, com os quais se identifica plenamente. Trata-se da carta a Vitrício
de Rouen, de 15 de Fevereiro de 404; da dirigida a Exupério de Tolosa, de 20 de
Fevereiro de 405; e da dirigida aos bispos Máximo e Severo de Calábria, de data
incerta. É importante notar que sempre se pedem sanções contra os impenitentes
que devem ser afastados do ministério clerical.
Os seguintes Pontífices Romanos também se esforçaram
para preservar a estrita observância da tradicional continência do clero. Basta
recordar, entre os mais importantes destes séculos, os depoimentos de dois
deles: S. Leão Magno e S. Gregório Magno.
S. Leão Magno, em 456, escreveu ao bispo Rústico de
Narbona:
“A lei da continência é a mesma para os ministros do altar (diáconos), para os sacerdotes e bispos. Quando eram ainda leigos e leitores, podiam casar-se e gerar filhos. Mas, ao serem elevados aos graus anteriormente citados, começou a não ser lícito para eles o que antes o era. De facto, para que o matrimónio carnal chegue a ser um matrimónio espiritual, não é necessário que as esposas sejam afastadas, mas sim que vivam como se não as tivessem: deste modo se salva o amor conjugal e, ao mesmo tempo, cessa o uso do matrimónio”.
O Papa confirmou assim outro ponto relacionado com a
continência dos clérigos casados, que, na legislação precedente, era também
mencionado, a saber: que as esposas dos clérigos casados, após a Ordenação de
seus maridos, devem ser sustentadas pela Igreja. A posterior coabitação com o
marido, então obrigado à continência, não era geralmente tolerada pelo perigo
de faltar à obrigação assumida. Foi permitida apenas nos casos em que esse
risco estava excluído. Qualquer texto contra o abandono das esposas deve ser
interpretado nesse mesmo sentido, como é evidente nesse fragmento de S. Leão
Magno.
Deve acrescentar-se que este Papa estendeu aos
subdiáconos a obrigação à continência posterior à sagrada Ordenação, o que até
agora não estava claro, por causa da dúvida que existia sobre se a Ordem do
subdiaconado pertencia ou não às Ordens maiores.
S. Gregório Magno (590-604) faz compreender nas suas
cartas, ao menos indirectamente, que a continência dos eclesiásticos era
substancialmente observada na Igreja Ocidental. Dispôs simplesmente que também
a ordenação de subdiácono comportava, definitivamente e para todos, a obrigação
de perfeita continência. Ele também sugeriu, repetidamente, que a coexistência
entre clérigos maiores e mulheres não autorizadas para isso continuava a estar
absolutamente proibida, e devia, portanto, ser impedida. E como as esposas não
pertenciam normalmente à categoria das autorizadas, dava com isso uma
significativa interpretação ao cânon 3 do Concílio de Niceia.
Do acima exposto, podemos já deduzir uma primeira
constatação de singular importância: na Igreja Ocidental, ou seja, na Europa e
nas regiões da África pertencentes ao Patriarcado de Roma, a unidade da fé era
e permanecia sempre viva, junto com a unidade também da disciplina, algo que se
manifesta pela comunicação, mais ou menos intensa, mas nunca interrompida,
entre as várias igrejas regionais. Assim, os representantes de outras regiões
eram admitidos nos Concílios Provinciais. Em Elvira, por exemplo, esteve
presente, entre outros, Eutiques, como representante de Cartago, e no Concílio
de Cartago de 418, que tratou da questão dos pelagianos, estavam também bispos
da Espanha.
Essa consciência de unidade e de substancial
uniformidade é encontrada explicitamente nas actas conciliares da época. O
Primado Romano estava cada vez mais operativo desde o momento em que as
perseguições tinham terminado: era a actualização e a concretização do
princípio da unidade. Essa realidade reflecte-se sobretudo nas questões
essenciais para a fé da Igreja Universal, mas nós podemos constatá-la também
nas questões disciplinares, especialmente no ambiente do Patriarcado Romano.
Uma prova de primeira ordem desta unidade disciplinar
é precisamente a que se adverte na questão que nos ocupa: sobre a continência
do clero. Junto à práxis conciliar, que é eficaz desde o início, afirmando-a e
confirmando-a, surge a acção orientadora e o cuidado universal na sua
conservação por parte dos Romanos Pontífices, começando pelo Papa Siríaco. Se o
celibato eclesiástico correctamente entendido foi conservado claramente em
conformidade com a consciência clara da sua origem e da sua antiga tradição,
apesar das dificuldades que surgem sempre e em toda a parte, devemo-lo, sem
dúvida, à solicitude ininterrupta dos Papas. Uma prova a sensu contrario desta afirmação será dada
pela história do celibato na Igreja Oriental. Mas antes de entrar nela, devemos
ainda prosseguir com outras fases do seu desenvolvimento na Igreja do Ocidente.
O testemunho dos Padres e dos escritores
eclesiásticos
Os Padres e os escritores eclesiásticos pertencem à
categoria das mais importantes testemunhas da fé e da tradição nos primórdios
da Igreja.
Sobre a questão da continência do clero é conveniente
escutar primeiro Santo Ambrósio. Na sua sede em Milão, na qualidade de “Consularis Aemiliae et Liguriae”, Ambrósio,
eleito bispo, tornou-se rapidamente um dos mais importantes homens da Igreja do
Ocidente. No que diz respeito ao nosso assunto, esse Pastor, especialmente
sensível às obrigações jurídicas, devido à sua anterior actividade civil, tinha
ideias muito claras. Ensina que os ministros do altar que estavam casados antes
de sua Ordenação, não deveriam continuar a usar do matrimónio depois da
Ordenação – ainda que essa obrigação não tivesse sido sempre observada do modo
devido, nas regiões mais remotas. Confrontado com a permissão
vetero-testamentária, esclarece que deve-se ver aqui um novo mandato do Novo
Testamento, pois os sacerdotes deste estão obrigados a uma oração e a um
ministério santo, constante e contínuo.
São Jerónimo, que conhecia bem por experiência própria
tanto a tradição do Ocidente como a do Oriente, disse, na sua refutação do ano
393 a Joviniano, sem insinuar nenhuma distinção entre Ocidente e Oriente, que o
Apóstolo Paulo, na famosa passagem de sua carta a Tito, ensinou que um
candidato casado à Ordem sagrada deveria ter casado uma só vez, deveria ter
educado bem aos filhos que tivesse, mas não podia procriar outros filhos.
Devia, portanto, dedicar-se à oração e ao serviço divino, e não só por um tempo
limitado, como no Antigo Testamento, e, como consequência, “si semper orandum et ergo semper et semper carendum
matrimonio”.
Na sua dissertação Adversus
Vigilantium, do ano 406, São
Jerónimo repetia o dever por parte dos ministros do altar de serem sempre
continentes. E neste sentido afirma que esta é a prática da Igreja do Oriente,
do Egipto e da Sé Apostólica, onde só se aceitam clérigos celibatários e continentes,
ou, se são casados, que tenham renunciado previamente à vida matrimonial. Já no
seu Apologeticum ad Pammachium, tinha
dito que também os Apóstolos eram “vel virgines
vel post nuptias continentes”; y que “presbiteri, episcopi, diaconi aut virgines eliguntur aut
vidui aut certe post sacerdotium in aeternum pudici”.
Santo Agostinho, bispo de Hipona desde o ano 395/96,
conhecia bem a obrigação geral do clero maior relativamente à continência, ele
que havia participado no Concílio de Cartago, onde tal obrigação tinha sido
repetidamente afirmada, apontando a sua origem nos mesmos Apóstolos e numa
constante tradição do passado. Não se conhece nenhuma dissidência sua em tais
ocasiões. Em sua dissertação De coniugiis
adulterinis também afirma que homens casados que, de repente e
por isso mesmo, quase contra sua vontade, fossem chamados a fazer parte
do clero maior e ordenados, estariam obrigados à continência, tornando-se,
assim, um exemplo para aqueles leigos que, por viver longe de suas mulheres, são
especialmente vulneráveis ao adultério.
O quarto grande Padre da Igreja Ocidental, S. Gregório
Magno, já foi exposto como testemunha da continência dos ministros sagrados ao
examinar os Romanos Pontífices.
Da prática disciplinar ocidental considerada até o
momento, concluímos que: a continência própria dos três últimos graus do
ministério clerical se manifesta na Igreja como uma obrigação que remonta aos
começos da Igreja, e que foi transmitida como um património da tradição oral.
Após a era de perseguição e, especialmente em consequência das conversões cada
vez mais numerosas, que exigiram também numerosas ordenações, houve amplas
transgressões dessa obrigação, contra ao quais os Concílios e a solicitude dos
Romanos Pontífices procederam cada vez com maior insistência por meio de leis e
disposições escritas. Nessas aparecem também as consequências de tais
transgressões que consistiam na suspensão ou expulsão do sagrado ministério.
Tudo isso nunca é apresentado como uma inovação, mas é
sempre posto em referência com a origem da Igreja. Estamos autorizados,
portanto, em conformidade com as regras de um correcto método
jurídico-histórico, a considerar a dita práxis como uma verdadeira obrigação
vinculante transmitida por tradição oral antes de ter sido fixado por leis
escritas. Quem quiser afirmar o contrário não somente se oporia a uma
metodologia científica válida, mas também estaria a arguir de mentirosos –
porque de ignorância não poderiam ser acusados – a todos os testemunhos
unânimes que até agora escutámos.
Evolução da questão nos séculos seguintes
Nesta base, deduzida da prática da Igreja primitiva,
podemos acompanhar o desenvolvimento do celibato eclesiástico nos séculos
seguintes. Primeiro, vamos referir-nos ao Ocidente.
Tal como nos primeiros tempos, também nas épocas
posteriores muitos dos ministros sagrados eram, sem dúvida, escolhidos entre os
homens casados. Esta situação é demonstrada pelo facto de que muitos Concílios
da Espanha e da Gália insistirem repetidamente e sem interrupção na obrigação
da continência desses ministros.
As sanções foram atenuadas em algumas ocasiões, como,
por exemplo, no Concílio de Tours, no ano 461, onde não se pune já com a e
excomunhão para toda a vida, mas apenas com a exclusão do serviço eclesiástico.
Além disso, é cada vez mais acentuada a preocupação da
Igreja em dispor de candidatos às ordens maiores que sejam celibatários, e em
reduzir o número dos candidatos casados, já que a experiência mostrava o perigo
permanente da debilidade humana ante as obrigações assumidas por estes
candidatos.
Outra disposição que deve ser constantemente recordada
e renovada, foi a proibição de que qualquer clérigo maior vivesse sob o mesmo
tecto com mulheres que não oferecesse plena confiança pelo que se refere à
observância da continência.
Para estabelecer um juízo de conjunto sobre a
disciplina celibatária na Europa medieval, são muito significativas as
disposições relativas à Igreja na Grã-Bretanha. Os Livros Penitenciais, que
reflectem fielmente a vida e a disciplina em vigor nesta igreja, em muitos
aspectos demonstram inequivocamente a validade para os clérigos maiores
insulares previamente casados, das mesmas obrigações que estamos vendo. O que
continuasse usando do matrimónio com sua esposa era considerado culpado de adultério
e castigado convenientemente. Se essas obrigações onerosas eram exigidas e
observadas substancialmente também na Igreja Insular, na qual estavam em vigor
rudes costumes entre os seus habitantes, dos quais esses livros nos dão uma
viva prova, temos uma óptima demonstração de que o celibato era também possível
ali, ainda que, provavelmente, só por uma nobre tradição que ninguém punha em
dúvida.
Juntamente com os perigos gerais periódicos que
ameaçavam sempre e em toda parte a continência do clero, sempre existiram na
história da Igreja momentos, circunstâncias e regiões onde surgiram perigos
extraordinários que provocavam de modo muito especial a autoridade da Igreja.
As dificuldades desse tipo eram produzidas pelas heresias bastante difundidas.
Um exemplo é o arianismo dos visigodos, ainda a operar após a conversão ao
catolicismo de seu reino na Península Ibérica. O Concílio de Toledo de 569 e o
de Zaragoza em 592 emanaram normas explícitas neste sentido para os clérigos
provenientes do arianismo.
A Reforma Gregoriana
Uma das mais graves crises que afectou a continência
do clero foi a que se deu em todas as regiões da Igreja Católica Ocidental,
afectadas pelas desordens que levaram à Reforma Gregoriana. Essas regiões eram
aquelas partes da Europa onde tinha penetrado, com maior ou menor difusão, o
chamado sistema beneficial eclesiástico, que, basicamente, dominou toda a vida
pública e, mais tarde, também a vida privada da Igreja e da sociedade
eclesiástica.
Os bens patrimoniais do benefício eclesiástico, que
estavam ligados a todos os ofícios da Igreja, altos ou baixos, conferiam ao
detentor do benefício, e portanto também do ofício, uma grande independência
económica e, por isso, frequentemente profissional, uma vez que o ofício que
acompanhava o benefício não se podia retirar facilmente. A concessão do
benéfico-ofício, que vinha realizada com frequência através de leigos que
possuíam esse direito – proveniente da Igreja em sentido estrito ou lato –
situava nos ofícios eclesiásticos de bispos, abades e, inclusive, de párocos, a
candidatos com frequência pouco preparados e, até mesmo, indignos. A concessão
e a designação dos ofícios por parte de leigos poderosos, que nesse assunto
atendiam mais aos interesses seculares e profanos que aos espirituais e religiosos
da Igreja, conduziam aos outros dois males fundamentais: a simonia, ou seja, a
compra dos ofícios, e o nicolaísmo, isto é, a estendida violação do celibato
eclesiástico.
Após o fracasso das reformas regionais, os Papas
começaram a enfrentar essa situação difícil da Igreja Europeia. Conseguiram,
devido ao empenho de Gregório VII, enfrentar este grave perigo que tinha
envolvido a hierarquia da Igreja em todos os seus graus.
Assim, esse perigo levou a um impulso decidido para a
reintegração da antiga disciplina celibatária; para isso foi necessário cuidar
especialmente da eleição e da formação dos candidatos ao sacerdócio, para o
qual se limitava cada vez mais a aceitação de homens casados, buscando, assim,
o retorno a uma observância geral da obrigação da continência.
Outra consequência importante dessa reforma é a
disposição, solenemente declarada no segundo Concílio de Latrão do ano de 1139,
de que os casamentos contraídos pelos clérigos maiores, como também os das
pessoas consagradas mediante votos de vida religiosa, não só eram ilícitos, mas
também inválidos. Isto levou a um grande equívoco difundido ainda hoje: o de
que o celibato eclesiástico foi introduzido somente a partir do Concílio
Lateranense II. Na realidade, ali só se afirmou que era inválido o que sempre
tinha sido proibido. Esta nova sanção confirmava, de facto, uma obrigação
existente há muitos séculos.
O Celibato no direito canónico clássico.
Quase ao mesmo tempo que começou a vida e a actividade
do direito da Igreja, o monge camaldulense João Graciano, compôs,
aproximadamente em 1142, em Bolonha, seu Concórdia
discordantium canonum, em seguida simplesmente chamado Decreto de Graciano, no qual foi
recolhido todo o material jurídico do primeiro milénio da Igreja, e no qual harmonizou,
ou pelo menos tentou fazê-lo, as mais variadas normas. Com ele começava a
escola do Direito da Igreja, associada a sua paralela do Direito Romano, e que
será chamada de escola dos glossistas ou glossadores, ou seja, dos intérpretes
das compilações do Direito Eclesiástico (e do Direito Romano) e dos seus textos
legais.
O decreto de Graciano trata também, naturalmente, a
questão e a obrigação da continência dos clérigos, especificamente, nas
distinções 26–34 e mais adiante nas distinções 81–4, da primeira parte. O mesmo
irá acontecer também em outras partes do Corpus
Juris (Canonici), que desde então vai se formando com a
promulgação das respectivas leis.
Para compreender correctamente as explicações que os
canonistas deram dessas leis, devemos considerar que, tal como os seus colegas
romanistas, não realizaram as investigações e estudos histórico-jurídicos, o
que só ocorreu mais tarde na escola dos cultos, ou seja, na escola jurídica
humanística dos séculos XVI em diante. Não devemos, portanto, surpreender-nos
de que os glossadores, ou seja, a escola jurídica clássica, tenha desconhecido
– também no domínio da canonística – uma crítica em sentido próprio das fontes
e dos textos.
Isso é importante para o nosso assunto, pois, ao falar
de Graciano, imediatamente encontramos o facto de que, na questão do celibato
eclesiástico, aceitou como algo realmente ocorrido no Concílio de Niceia a lendária
história de Pafnucio, e assumiu, acriticamente, juntamente com o cânon 13 do
Concílio Trullano II de 691, a diferença da práxis celibatária da Igreja
Ocidental e da Oriental. Embora essa não fosse uma ocasião para ele justificar
a razão das diferentes práticas da Igreja Latina, tanto ele como a escola
clássica de Direito Canónico, colocam a atenção no motivo da diferente
obrigação na questão da continência do clero maior oriental. Voltaremos a falar
desse diferente tratamento histórico do celibato na Igreja Oriental.
Temos de dizer agora, no entanto, que precisamente
devido a essa negligência crítica, as dúvidas já existentes no Ocidente sobre
esse assunto, e que Gregório VII e outros reformadores, incluindo especialmente
Bernoldo de Constança, tinham reconhecido, não produziram uma impressão
decisiva sobre a escola canonística, que reconheceu também as deliberações do
Concílio Trulano II como plenamente válidas para a Igreja Oriental. Nesse mesmo
Concílio, como veremos, foi fixada a disciplina celibatária da Igreja Bizantina
e das dependentes dela.
No entanto, como já mencionámos, não existia entre os
canonistas medievais nenhuma dúvida sobre a obrigação, para a Igreja Ocidental,
da continência de todo o clero maior. E isso, na verdade, porque conheciam bem
os documentos dos Concílios ocidentais, os já tratados anteriormente, sobretudo
dos Concílios africanos (Graciano, no entanto, não demonstra conhecer o cânon
33 de Elvira), dos Pontífices Romanos e dos Padres. Todos os canonistas
estavam, em geral, de acordo em que a proibição do casamento para os clérigos
maiores devia ser atribuída aos Apóstolos – tanto ao exemplo deles, como às
suas disposições. Alguns atribuíam aos Apóstolos a proibição do uso do
matrimónio contraído antes da Ordenação, outros a disposições legislativas
posteriores, sobretudo dos Romanos Pontífices, começando por Siríaco. Tentavam
explicar as razões sobre as que se baseia tal proibição, ainda que com
argumentos em parte contrapostos. Uns relacionavam-na com um voto, expresso ou
tácito, ou com uma ordem anexa ou solenizada pela legítima autoridade. Frente à
dificuldade de que ninguém pode impor a outro um votum, tratava-se de encontrar a solução na
constatação de que não se tentava de impor à pessoa, mas somente ao ofício, que
trazia anexa esta condição. Que a Igreja pudesse fazê-lo não oferecia nenhuma
dúvida a quaisquer canonistas, que o explicavam com argumentos bem interessantes
e convincentes.
A doutrina que mais convence afirma que esta disposição podia ficar unida
através de uma lei, sobretudo pontifícia, à Ordem Sagrada, e que isso era o que
realmente tinha sido realizado desde os primeiros tempos da Igreja pelos Concílios
e pelos Romanos Pontífices, tanto para o caso dos bispos, como para os
sacerdotes e diáconos. No caso dos subdiáconos, só havia sido decidido
definitivamente a partir do Papa Gregório I. Nenhum canonista medieval
duvidada, por outro lado, que esta obrigação vinculava ilimitadamente desde o
momento de sua introdução. É particularmente destacável o facto de que alguns
glossadores façam referência explícita, como fontes da obrigação da continência
clerical, a normas meramente tradicionais, que já existiam antes de sua
prescrição legal, e a que uma obrigação originada por um voto não era
dispensável nem mesmo pelo Papa. Por esse motivo se inclinavam pela teoria que
punha a causa eficiente da obrigação numa lei, pois o Papa, sim, podia
dispensar de uma lei geral. De qualquer modo, um bom número deles era da
opinião de que uma dispensa deste tipo podia ocorrer somente em alguns casos
particulares e não em geral, porque isso equivalia à abolição de uma obrigação
contrária ao status ecclesiae, coisa
que nem para o Papa era possível.
Após esta exposição sintética do pensamento dos
glossistas sobre o celibato eclesiástico, correctamente entendido, vigente na
Igreja, vale à pena mencionar alguns dos mais importantes textos sobre o nosso
tema, que podem ser considerados especialmente representativos dessa doutrina.
Primeiro, devemos mencionar S. Raimundo de Peñafort.
Este autor compôs também o Liber Extra do
Papa Gregório IX (parte central do Corpus
Iuris Canonici) e pode, pois, ser considerado como homem de
confiança do Papa, e é também representante qualificado da ciência canonística,
já então bem madura. No que diz respeito à origem e ao conteúdo da obrigação de
continência dos homens casados antes da sagrada Ordenação diz:
“Os bispos, sacerdotes e diáconos devem observar a continência também com sua esposa (de antes). Isto é o que os Apóstolos ensinaram com seu exemplo e também com suas disposições, como alguns dizem, para quem a palavra “ensinamento” (Dist. 84, can. 3) pode ser interpretada de maneira diversa. Isso foi renovado no Concílio de Cartago, como na citada disposição Cum in merito, do Papa Siríaco”.
Depois de resumir outras explicações, Raimundo
refere-se às razões para a introdução de tal obrigação:
“A razão era dupla: uma, a pureza sacerdotal, para que possam obter com toda a sinceridade o que com a sua oração pedem a Deus” (Dist. 84 , cap. 3 e dict. 1 p. c. 1 Dist. 31); “a segunda razão é que possam orar sem impedimentos (1 Cor 7, 5) e exercer seu ofício, pois não podem fazer as duas coisas: servir à mulher e à Igreja, ao mesmo tempo”.
A continuidade da doutrina da Igreja na
Idade Moderna
Giuseppe Maria Crespi, O sacramento da Ordem (1712) |
A contínua vida de sacrifício que implica tão grave
compromisso só pode ser vivida se for alimentada por uma fé viva, já que a
fraqueza humana é sentida continuamente. A motivação sobrenatural só pode ser
entendida de modo permanente com essa fé, sempre conscientemente vivida. Se a
fé se esfria, também diminui a força para perseverar; onde a fé morre, morre
também a continência.
Todos os movimentos heréticos e cismáticos que
apareceram na Igreja são uma renovada demonstração dessa verdade. Uma das
primeiras consequências que ocorrem entre os seus seguidores é a renúncia da
continência clerical. Não pode, portanto, causar surpresa o facto de que também
nas grandes heresias e defecções da unidade da Igreja Católica no século XVI,
ou seja, entre os luteranos, calvinistas, seguidores de Zwinglio, ou
Anglicanos, se renuncia imediatamente ao celibato eclesiástico. Os esforços de
reforma do Concílio de Trento para restaurar a verdadeira fé e a boa disciplina
na Igreja Católica, portanto, deverão também abordar os ataques contra a
continência dos ministros sagrados.
Da história deste Concílio já é conhecida, com
absoluta certeza, que muitas pessoas, especialmente imperadores, reis,
príncipes e mesmo representantes da própria Igreja, com a boa intenção de
recuperar os ministros sagrados que haviam deixado a Igreja Católica, se
empenharam em obter uma redução ou uma dispensa desse dever. Mas uma comissão
criada pelos Romanos Pontífices para tratar dessa questão, concluiu,
considerando toda a tradição precedente, que se devia manter sem comprometer a
obrigação do celibato: a Igreja não estava capacitada para renunciar a uma
obrigação válida desde o seu começo e depois sempre renovada.
Por razões pastorais deu-se permissão especial para
que na Alemanha e na Inglaterra os sacerdotes apóstatas, depois de renunciar a
toda convivência e uso do matrimónio, podiam ser absolvidos e reintegrados no
seu ministério na Igreja Católica. Caso rejeitassem o retorno ao clero, podia
ser sanada a invalidez de seu matrimónio; mas, nesse caso, seriam excluídos
para sempre do ministério sagrado.
Note-se também que os Padres do Concílio de Trento,
não só renovaram todas as obrigações nesta matéria, mas também se recusaram a
declarar a lei do celibato da Igreja Latina como uma lei puramente
eclesiástica, da mesma forma que haviam negado incluir à Virgem Maria sob a lei
universal do pecado original.
Mas a decisão mais radical do Concílio de Trento para
salvaguardar o celibato eclesiástico foi a fundação de Seminários para a
formação de sacerdotes, que foi estabelecido pelo famoso cânone 18, da Sessão
XXIII, e imposta a todas as dioceses. Os jovens deveriam ser eleitos para o
sacerdócio, formados e fortalecidos para o ministério nesses Seminários.
Essa decisão providencial, que se tornou realidade
progressivamente em todos os lugares, permitiu à Igreja contar com tantos
candidatos celibatários para os graus superiores do sagrado ministério, que, a
partir de então, se pode ir prescindindo de ordenar homens casados, o que tinha
sido um desejo explícito de muitos Padres conciliares.
Desde então, a noção de celibato até então dominante e
muito presente na mentalidade dos fiéis, que incluía tanto a obrigação de
continência completa no uso do matrimónio contraído antes da ordenação, bem
como a proibição de se contrair novas núpcias, foi restringida a esta última.
Daí procede que hoje se entenda o dever do celibato eclesiástico só como
proibição de se casar.
A Igreja tem sido sempre forte em preservar a sua
tradição em relação ao celibato, mesmo nos tempos difíceis que se seguiram. Um
claro testemunho é fornecido pela Revolução do final do século XVIII e início
do século XIX. Também se adoptou nesta ocasião a prática do século XVI: os
sacerdotes que se tinham casado durante a Revolução tinham de decidir: ou
renunciar ao matrimónio civil invalidamente contraído, ou procurar sanar esta
invalidez na Igreja. No primeiro caso, podiam ser readmitidos ao sagrado
ministério; no segundo, ficavam excluídos definitivamente do ministério, como
já havia estabelecido a primeira lei escrita sobre essa matéria, que já
conhecemos: a do Concílio de Elvira.
A Igreja opôs-se também a todas as outras tentativas
feitas para abolir o celibato dos ministros sagrados, como os esforços feitos
em Baden-Wurttemberg em tempos de Gregório XVI, ou o movimento Jednota da
Bohemia, em tempos de Bento XV.
É novamente importante a abolição imediata do celibato
entre os “velhos católicos” após o Concílio Vaticano I. Não é menos clara a oposição
da Igreja contra as tentativas, constantemente renovadas após o Concílio
Vaticano II, de ordenar viri probati,
quer dizer, homens casados sem exigir-lhes a renúncia ao matrimónio, ou de
permitir o matrimónio dos sacerdotes.
Padre José Manuel dos Santos Ferreira..
ResponderEliminarDesejo-lhe um Santo Natal!
Que a luz de Cristo nos acompanhe sempre.
Bem haja.
Célia Fonseca