Concluímos a publicação do artigo do Cardeal Stickler, Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos, cuja primeira, segunda e terceira partes podem ser lidas aqui, aqui e aqui.
V. FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA DISCIPLINA DO CELIBATO
No actual debate sobre o celibato, dá-se maior ênfase
à necessidade de aprofundar teologicamente o sacerdócio, a fim de deduzir e apreciar a verdade única e completa da teologia do celibato da Igreja
Católica Latina.
Temos, portanto, por esse motivo, a tarefa actual e
importante de analisar os elementos teológicos tanto do sacerdócio do Novo
Testamento como, a partir deste, o celibato dos ministros sagrados. Ambos têm
suas raízes nas Escrituras – a principal fonte da Teologia católica – e na
Tradição da Igreja, que revela e interpreta o testemunho escriturístico.
O sacerdócio de Jesus Cristo é um profundo mistério da nossa fé. Para compreender isso, o homem deve abrir-se a uma visão sobrenatural e submeter a sua razão a um modo transcendente de pensar. Em tempos de fé viva, que incentiva e orienta não só cada fiel como pessoa única, mas também permeia a vida e dá forma à vida de toda a comunidade crente, Cristo Sacerdote constitui, na consciência de todos, o centro da vida de fé pessoal e comunitária. Em tempos de declínio do sentido da fé, pelo contrário, a figura de Cristo Sacerdote desbota e desaparece cada vez mais da consciência dos homens e da sociedade, e já não está no centro da vida cristã. Esta mesma imagem é também aplicável no caso de um sacerdote de Cristo.
Em tempos de fé viva, na verdade, não é difícil ao sacerdote reconhecer-se em Cristo, identificar-se com Ele, contemplar e viver a essência do próprio sacerdócio em íntima união com Cristo Sacerdote, ver nele “a única fonte” e o “modelo insubstituível” da própria condição sacerdotal.Mas, no meio de uma atmosfera racionalista que desvia cada vez mais a mente humana do sobrenatural, numa época de materialismo que obscurece cada vez mais a realidade espiritual, torna-se cada vez mais difícil para o sacerdote resistir à pressão da mentalidade secularizante. A identidade espiritual e transcendente de seu sacerdócio tende a desvanecer se ele não se esforça, conscientemente, em aprofundar nela e em mantê-la viva, por meio de uma íntima união pessoal com Cristo.Essa crítica situação torna ainda mais indispensável a ajuda para os sacerdotes de uma ascética e de uma mística adequada ao estado das coisas. É preciso que lhes revelem a tempo os perigos que ameaçam ao seu sacerdócio, mostrando-lhes as necessidades e que se ponham à disposição os meios que a sua vida sacerdotal requerem. A actual crise de identidade do sacerdócio católico manifesta-se em toda a sua crueza através da renúncia de milhares de sacerdotes ao seu ministério, através também da profunda secularização de muitos outros que continuam num serviço puramente formal, e, enfim, através da escassez de vocações causadas pela rejeição a seguir o chamamento de Cristo. Numa situação deste tipo, é uma necessidade fundamental desenvolver uma pastoral sacerdotal nova, que seja consciente das circunstâncias e das exigências actuais e que responda, numa palavra, ao “contexto presente”.
A relação sacerdotal com Cristo
Temos de fazer brilhar com nova luz, com fundamento na
tradição, a essência do sacerdócio católico. O Concílio de Trento, num momento
de crise semelhante ao nosso, estabeleceu com os seus ensinamentos e definições
sobre os sacramentos da Eucaristia e da Ordem, as bases de uma espiritualidade
sacerdotal fortemente referida a Cristo. Um teólogo como M. J. Scheeben soube
explicar, frente ao racionalismo do século passado, que a Ordenação eleva a
quem a recebe a uma orgânica unidade sobrenatural com Cristo, e que o carácter
indelével impresso pelo sacramento da Ordem habilita o ordenado a participar
nas funções sacerdotais de Cristo.
Nos últimos tempos, especialmente desde o Vaticano II
em diante, esta relação do sacerdote com Cristo tem sido cada vez mais posta no
centro da essência do sacerdócio, e foi possível aprofundar e alargar a partir
dessa perspectiva os ensinamentos bíblicos e as doutrinas teológicas e canónicas
sobre o assunto. Tem, assim, adquirido uma nova iluminação teológica a doutrina
tradicional do sacerdos alter Christus.
Se S. Paulo escreve aos Coríntios: “Temos de ser
considerados pelos homens como ministros de Cristo e dispensadores dos
mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1); ou então: “Agimos como embaixadores de Cristo,
como se Deus mesmo vos exortasse através de nós. Suplicamos-vos, pois, em nome
de Cristo, deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Cor 5, 20), essas expressões
podem ser consideradas como autênticas ilustrações bíblicas da identificação do
sacerdote com Cristo.
No Concílio Vaticano II é continuamente expressa a
mesma ideia: “Os bispos, de modo eminente e visível, façam as vezes de Cristo
Mestre, Pastor e Pontífice, e actuem em sua pessoa” (Lumen
Gentium n º 21, com a nota 22, onde se documenta sobre a Igreja
antiga). “Os sacerdotes a eles unidos são partícipes do ofício de Cristo, único
Mediador, e exercitam o seu sagrado ministério agindo in persona Christi (Lumen Gentium n. 28 com a nota 67; Christus Dominus n. 28). Através do sacramento da
Ordem e do carácter por ele impresso, são configurados a Cristo e actuam em seu
nome (Presbyterorum Ordinis nn. 2, 6, 12; Optatam totius n. 8; Sacrosanctum Concilium,
n. º 7).
Após o Concílio aumentaram essas formas de expressão
também por parte da Cúria Romana. A Congregação para a Educação Católica, nas
normas fundamentais para a formação dos sacerdotes, de 1970, acentuou, numa
afirmação de princípio, que o sacerdote se faz, através da Ordem Sagrada, um “alter Christus”. E o novo Código de Direito Canónico de
1983 diz no cânon 1008: “Com o sacramento da Ordem e com o carácter indelével
com o que ficam marcados aqueles que o recebem, os ministros da Igreja são
consagrados e destinados a reunir, cada um no seu próprio nível, os cargos de
ensinar, santificar e governar in persona Christi e
de pastorear o povo de Deus.”
De uma forma ainda mais intensa, ocupou-se do
sacerdócio e do ministério dos sacerdotes, desde o início do seu pontificado, o
Papa João Paulo II. Desde 1979, nas Quintas-Feiras Santas de cada ano, dirigiu
uma mensagem aos sacerdotes. Repetidas vezes utilizou ocasiões especialmente
adequadas – audiências, discursos e, especialmente, as frequentes ordenações
sacerdotais – para posicionar na sua justa luz teológica e pastoral actual, a
natureza e a essência do sacerdócio católico, bem comopara aprofundar o seu
significado.
O mais importante acto oficial do Papa, com referência ao sacerdócio foi, sem dúvida, a convocação e a realização do 8º Sínodo dos Bispos, que teve por objectivo a formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais. Um dos pontos centrais das discussões dos Padres sinodais foi a noção justa da identidade sacerdotal, vistas as coisas no mundo de hoje e no meio da grave crise em que se encontra o sacerdócio católico. Síntese e coroação dos trabalhos sinodais foi a Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis, publicada em 25 de Março de 1992, dedicada precisamente à formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais.No segundo capítulo da Exortação Apostólica, o Papa aborda a “natureza e a missão do sacerdócio ministerial” e informa expressamente que nas intervenções dos Padres na aula sinodal se “mostrou a consciência do vínculo ontológico específico que liga o sacerdote a Cristo, Sumo-sacerdote e Bom Pastor” (n. 11). O Papa conclui essa exposição com uma afirmação verdadeiramente clássica: “O presbítero encontra a plena verdade da sua identidade em ser uma derivação, uma participação específica e uma continuação do mesmo Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote da Eterna Aliança; Ele é uma imagem viva e transparente de Cristo sacerdote. O sacerdócio de Cristo, expressão da sua absoluta «novidade» na história da salvação, é a única fonte e o paradigma insubstituível do sacerdócio do cristão, e, especialmente, do presbítero. A referência a Cristo, então, é a chave essencial para a compreensão das realidades sacerdotais” (n.º 12, ao final).Sobre a base desta afinidade natural entre Cristo e os seus sacerdotes, não será difícil anunciar a teologia do sacerdócio ministerial. O mesmo João Paulo II oferece-nos novamente a chave: “É particularmente importante que o sacerdote compreenda a motivação teológica da lei eclesiástica sobre o celibato. Enquanto lei, ela expressa a vontade da Igreja, antes mesmo da vontade que o sujeito manifesta com a sua disponibilidade. Mas essa vontade da Igreja encontra sua motivação última na relação que o celibato tem com a ordenação sagrada, que configura o sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja. A Igreja, como esposa de Jesus Cristo, quer ser amada pelo sacerdote de modo total e exclusivo como Jesus Cristo, Cabeça e esposo, a tem amado. Assim o celibato sacerdotal é um dom de si em e com Cristo à sua Igreja, e manifesta o serviço do sacerdote à Igreja em e com o Senhor “ (n. 29).
Fundamento histórico doutrinal
Um olhar para trás na Tradição da Igreja pode informarnos,
também nesta ocasião, o desenvolvimento dessa Teologia. O que se pode dizer, em
síntese, sobre esse aspecto, já dissemos em parte, ao analisar os testemunhos
da Igreja Primitiva sobre a continência dos ministros sagrados. Continuar com
as referências históricas sobre o celibato, as referências à Sagrada Escritura
e sua interpretação é certamente uma ajuda que pode ser fornecida à
argumentação teológica dos Padres sinodais e do Santo Padre, porque na
Exortação Apostólica abundam as referências à Sagrada Escritura. A visão do
celibato, do ponto de vista das Escrituras adquiriu, por outro lado, uma
crescente importância na literatura recente sobre o assunto.
Já na primeira lei escrita que conhecemos, no cânon 33
do Concílio de Elvira, estão obrigados à continência os clérigos positi in ministerio, ou seja, aqueles que servem ao
altar. Também os cânones africanos falam continuamente dos que servem ao altar
e, por ser responsável pelo seu serviço, tocam os sacramentos; estes estão
obrigados, por causa da consagração recebida, à castidade, o que, por sua vez,
garante a eficácia da oração de petição (impetratória) diante de Deus.
A este respeito, são particularmente importantes e
instrutivos os documentos do Romano Pontífice que tratam da continência
celibatária. São constantemente consideradas e refutadas nos textos deles, a
partir da Sagrada Escritura, duas objecções. A primeira é a norma que indica
São Paulo a Timóteo (1 Tim 3, 2 e 3, 12) e a Tito (1, 6): os candidatos casados
devem ser só unius uxoris, ou seja, ter sido casado apenas uma vez e
também com uma mulher virgem. Tanto o Papa Sirício como Inocêncio I insistiram
repetidamente em que esta expressão não significa que eles possam continuar com
o desejo de gerar filhos, mas, pelo contrário, foi estabelecida propter continentiam futuram, ou seja, devido à
continência que deveria ser vivida desde então.
Esta interpretação feita pelos Pontífices da conhecida
passagem da Escritura, que foi assumida pelos Concílios, diz que quem tivesse a
necessidade de se casar novamente, demonstrava com isso que não era capaz de
viver a continência exigida aos ministros sagrados e não podia, portanto, ser
ordenado. Assim, essa norma da Escritura, em vez de uma prova contrária ao
celibato, era uma demonstração a favor da continência celibatária e ainda uma
exigência dos Apóstolos. Essa disposição manteve-se viva no futuro. Na Glossa
ordinária ao decreto de Graciano, isto é, no comentário comumente aceite dessa
passagem (princípio da Dist. 26), explica-se que existem quatro razões para que
alguém que foi casado duas vezes não possa ser ordenado. Depois de assinalar
três razões espirituais, a quarta, de carácter prático, diz que seria um sinal
de incontinência que um homem passasse de uma mulher para outra. E o grande e
autorizadíssimo Decretalista Hostiensis, o Cardeal decano Henrique de Susa,
explica no seu comentário às decretais de Gregório IX (X, I, 21, 3 à palavra alienum), que a terceira razão das quatro dessa
proibição foi “porque se deve temer (neste caso) a incontinência”.
Essa interpretação do unius
uxoris vir também era aceite no Oriente. Isto é provado pelo
grande historiador da Igreja antiga, Eusébio de Cesareia, que deve ser
considerado bem informado, já que, como já afirmamos, participou no Concílio de
Niceia e, como amigo dos arianos, tinha defendido o uso do matrimónio por parte
dos padres já casados. No entanto diz expressamente que, comparando o sacerdote
do Antigo Testamento com o do Novo, se confronta a geração corporal com a
espiritual, e que nisso consiste o sentido do unius uxoris vir: em
que aqueles que foram consagrados e dedicados ao culto divino devem abster-se
convenientemente, a partir do momento da Ordenação em adiante, das relações
sexuais com a esposa.
A proibição apostólica de que nenhum casado duas vezes
devia ser admitido às Sagradas Ordens tem sido observada, com todo rigor,
através dos séculos e se encontrava entre as irregularidades no Código de 1917
(cân. 984, 4). Na canonística clássica ensinava-se que a dispensa desta
proibição não era possível nem pelo Sumo Pontífice, pois nem sequer ele poderia
dispensar contra apostolum, isto é, contra a
Sagrada Escritura.
Deve-se notar que também a legislação do Concílio de
Trullo mantém no seu cânon 3 a mesma proibição para sacerdotes, diáconos e
subdiáconos, ou seja, que os candidatos a estas ordens não podiam estar casados
com uma viúva ou com uma mulher que havia sido casada. Só se queria – diziam os
padres trullanos – atenuar a gravidade da Igreja Romana nesse ponto, concedendo
àqueles que tinham pecado contra a dita proibição a possibilidade de
arrependimento e penitência. Se antes de uma data posterior ao Sínodo
tivessem renunciado a esse (segundo) casamento, poderiam permanecer no
exercício do ministério.
A falta de lógica nesta disposição do cânon 3, em
comparação com o cânon 13, que permite aos sacerdotes e diáconos o uso do matrimónio
contraído antes da Ordenação, só pode ser explicado pelo facto de que aquela
proibição apostólica estava também profundamente enraizada na tradição
oriental, mas sem que se perceba já o seu sentido original. Daí surge outra
prova tácita do autêntico significado original, como garantia da total
continência após a Ordenação, tal como permaneceu vivo no Ocidente, sempre
aceite com fiel observância por parte de Roma.
Deve-se mencionar neste contexto de duas outras
passagens das Escrituras que não se encontram explicitamente nos testemunhos
antigos, a segunda das quais é hoje invocada contra a continência dos mesmos
Apóstolos.
Entre as qualidades que São Paulo exigia ao ministro
da Igreja se encontra também a de ser “encratés”, ou seja,
continente. Este termo significa a continência sexual, como se deduz do texto
paralelo no qual São Paulo exorta os fiéis casados à continência, a necessária
abstinência para dedicar-se à oração, e também dos posteriores textos gregos
sobre o celibato, reunidos, por exemplo, na colecção oficial do Pedalion.
A segunda passagem da Escritura é encontrada em 1 Coríntios 9, 5, onde São Paulo diz que também ele tem o direito de levar consigo uma mulher, como fazem os outros apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas. Muitos interpretaram a expressão “mulher” como a “esposa” dos Apóstolos, que no caso de Pedro o poderia ser verdade. Mas é preciso se ter claramente presente o facto de o texto original grego não falar simplesmente de “ginaika”, que podia perfeitamente significar também esposa. Certamente não sem intenção, São Paulo acrescenta a palavra “adelfén”, ou seja, mulher “irmã”, o que exclui qualquer confuso mal-entendido com esposa.
A segunda passagem da Escritura é encontrada em 1 Coríntios 9, 5, onde São Paulo diz que também ele tem o direito de levar consigo uma mulher, como fazem os outros apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas. Muitos interpretaram a expressão “mulher” como a “esposa” dos Apóstolos, que no caso de Pedro o poderia ser verdade. Mas é preciso se ter claramente presente o facto de o texto original grego não falar simplesmente de “ginaika”, que podia perfeitamente significar também esposa. Certamente não sem intenção, São Paulo acrescenta a palavra “adelfén”, ou seja, mulher “irmã”, o que exclui qualquer confuso mal-entendido com esposa.
Somos convencidos facilmente deste sentido rectificador pelo facto de que, de aqui em adiante, os testemunhos mais importantes da continência dos ministros sagrados mostram que ao falar da esposa de tais ministros, no contexto da posterior continência sexual, sempre se usa a palavra “sóror”, irmã. Do mesmo modo, a relação entre marido e mulher depois da Ordenação do marido é visto como o de um irmão com sua irmã. São Gregório Magno, por exemplo, diz: “Desde sua Ordenação, o sacerdote amará (sua esposa) como a uma irmã”. O Concílio de Gerona (ano 517) decidiu que “se tiverem sido ordenados aqueles que antes estiveram casados, não devem viver juntos com aquela que de esposa se tornou irmã”. E o Concílio de Auvergne (ano 535), por sua vez, dispôs que “quando um sacerdote ou um diácono recebeu a Ordenação para o serviço divino, passa imediatamente de ser marido a ser irmão da sua esposa”. Este uso das palavras é encontrado em muitos textos patrísticos e conciliares.
O ensinamento do Antigo Testamento
É necessário agora que tratemos outro ponto que é
muitas vezes invocado como um argumento contra a continência dos ministros nos
primeiros séculos. Costuma-se apelar, como muitas vezes já afirmámos, ao Antigo
Testamento, em que, como sabemos, era legítimo e até mesmo necessário o uso
pleno do matrimónio por parte dos sacerdotes e levitas, nos dias em que viviam
em suas casas, livres do serviço do Templo. A essa objecção se pode responder
de duas maneiras.
Antes de tudo deve-se assinalar que o sacerdócio
vetero-testamentário havia sido confiado a uma única tribo que devia ser
conservada, e isso fazia necessário o matrimónio. O sacerdócio do Novo
Testamento não foi definido, no entanto, como o sacerdócio de sucessão pelo
sangue e não se baseia na descendência familiar. Um segundo e mais importante
argumento a favor da distinção entre um sacerdócio e outro diz: os sacerdotes
do Antigo Testamento prestavam um serviço temporal limitado no templo, enquanto
os sacerdotes do Novo Testamento mantêm um serviço permanente, por isso a
obrigação temporal de continência e de pureza se estendeu a uma observância
ilimitada e contínua.
Como explicação convincente se recorre à passagem de
S. Paulo em I Cor 7, 5, na qual o Apóstolo aconselha aos esposos que não se
recusem um ao outro, a não ser de comum acordo, por um tempo determinado e para
dedicar-se à oração. Os sacerdotes do Novo Testamento, no entanto, devem rezar
continuamente e dedicar-se a um serviço diário ininterrupto, no qual, através
de suas mãos, é dada a graça do perdão e é oferecido o Corpo de Cristo. A
Sagrada Escritura exorta-os a ser em tudo puros para este serviço e os Padres
mandavam conservar a abstinência corporal.
Os mesmos documentos também oferecem outros motivos de
carácter pastoral: como poderia um padre pregar sobre a continência e sobre a
pureza a uma viúva ou a uma virgem, se ele mesmo desse maior valor o trazer filhos
ao mundo que a Deus? Assim, a objecção contrária torna-se argumento a favor da
continência ministerial.
A partir dessas considerações se deduz uma imagem do
sacerdote do Novo Testamento modelado sobre a vontade de Cristo, e distinta
substancialmente daquela imagem do Antigo Testamento. Esta última foi
configurada apenas como uma função, limitada no tempo e puramente externa.
Aquela, ao contrário, implica por natureza a toda a pessoa do sacerdote, no
externo e no interno, e, portanto, o seu serviço. Cristo exige ao seu sacerdote
alma, coração, corpo, pureza e continência em todo seu ministério como um
testemunho de que já não vive segundo a carne, mas pelo Espírito (Rom 8, 8). O
sacerdócio funcional do Antigo Testamento nunca pode ser um modelo do sacerdócio
ontológico do Novo, configurado com o de Cristo. Este supera o antigo
sacerdócio essencialmente.
Assim, aqueles que receberam a mensagem da salvação de
Cristo compreenderam, já desde o início, a exigência de Mestre aos seus
Apóstolos de chegar a renunciar inclusive ao casamento pelo Reino dos Céus (Mt
19, 12), e que, tal como um discípulo em sentido rigoroso e pleno, deve estar
disposto deixar pai, mãe, esposa, filhos, irmão e irmã (Lc 18, 29; 14, 26).
Também se entende assim as palavras de S. Paulo sobre a diversa relação com
Deus dos celibatários e dos casados (1 Cor 7, 32-33) e o seu significado no que
diz respeito ao celibato eclesiástico.
Foi tarefa da escola, ou seja, da canonística clássica
a partir do século XII em diante, descobrir, explicar e desenvolver as razões
que ligam continência e sacerdócio neotestamentário. Na história do
desenvolvimento científico do tema, brevemente descrito na segunda parte deste
trabalho, mencionaram-se as dificuldades existentes então para se chegar à elaboração
de uma teoria satisfatória. Embora os antigos Padres tivessem já entendido que
a continência pertencia à essência do sacerdócio novo – como, por exemplo,
quando Epifânio disse que o carisma do sacerdócio consiste na continência; ou
Santo Ambrósio que apontava a obrigação de rezar continuamente como o
mandamento da Nova Aliança –, os glossistas, no entanto, foram incapazes de
construir uma teologia do celibato, talvez porque eram demasiado pouco
teólogos. Em seus trabalhos sobre a disciplina celibatária no Ocidente,
estiveram também muito influenciadas pela disciplina oriental, cuja
legitimidade tomaram por boa ao aceitar tanto a lenda de Pafnucio como a
legislação trullana.
No entanto a partir dos documentos da Igreja Católica
sobre este assunto, tentaram desenvolver uma teoria na qual se continham os
elementos essenciais para uma Teologia válida. Compreenderam, sobretudo, que a
continência está em relação estreita com o ordo sacer, e que
essa lei tinha sido dada à Igreja propter ordinis reverentiam,
pela reverência que é devida à Ordem. Também entenderam que a continência está
mais unida ao Sacramento da Ordem recebido que ao homem ordenado, o qual era
livre de aceitar a Ordenação, sabendo que aceitava também a obrigação anexa.
Desde a síntese realizada por S. Raimundo de Peñafort,
já mencionado, se deriva com toda certeza que naquele tempo se tinha como
verdadeiro motivo da continência clerical não tanto a pureza do ministro – que
se adequaria muito bem com a práxis oriental estabelecida no Concílio Trullano
– quanto a eficácia da oração mediadora do ministro sagrado, que procedia da
sua total dedicação a Deus. De um modo geral eram apresentadas já então as
verdadeiras razões da perfeita continência: a possibilidade de rezar com
liberdade, assim como a também completa liberdade de desenvolver o próprio
ministério e para dedicar-se ao serviço da Igreja.
Embora a Teologia dos séculos posteriores até hoje,
não descurasse a reflexão sobre o sacerdócio do Novo Testamento, a crise dos
sacerdotes e das vocações para sacerdócio nestas últimas décadas – difundidas e
ampliadas através dos meios de comunicação social – exigiu com urgência um
especial aprofundamento na matéria. O fundamento para isso tinha sido posto
pelo Concílio Vaticano II, sobre o que se baseou o ensinamento do Papa João
Paulo II, que fez do sacerdócio um motivo particular do seu programa doutrinal
e pastoral desde o começo do seu pontificado. É significativo nesse sentido,
que já na sua primeira mensagem aos sacerdotes, por ocasião da quinta-feira
santa, dissesse sobre o celibato que a Igreja ocidental o quis no passado e o
quer no futuro enquanto se “inspira no exemplo mesmo de Nosso Senhor Jesus
Cristo, na doutrina apostólica e em toda a Tradição que lhe é própria”. Nos
anos seguintes voltou várias vezes a tratar o tema do sacerdócio e do celibato
unido a ele, e pôs um grande empenho em travar as demasiado fáceis dispensas
nesta matéria.
O ponto mais alto dessas preocupações de sua
elevadíssima consciência pastoral constituiu a convocatória, para Outubro de
1990, do oitavo Sínodo dos Bispos, que devia abordar a questão da formação
sacerdotal no contexto das circunstâncias actuais. Isto foi feito de uma forma
exaustiva através das vozes dos representantes do episcopado mundial, e esta
questão encontrou a sua mais perfeita expressão na Exortação Apostólica
Pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, que pode ser
considerada uma “Carta Magna” da Teologia do
sacerdócio, e que permanecerá como norma autorizada no futuro da Igreja.
A Teologia do celibato sacerdotal
Não é possível fazer aqui um completo desenvolvimento
deste tema, nem este é o objectivo da nossa exposição histórica, mas esta
permite-nos dar uma palavra final sobre a Teologia do celibato sacerdotal, a
qual está intimamente relacionada com a Teologia do sacerdócio.
A principal motivação do celibato e da vontade da
Igreja neste ponto é “a relação que o celibato tem com a sagrada Ordenação que
configura o sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja” (Pastores dabo Vobis, n. 29). Estas palavras podem ser
consideradas o núcleo da Teologia do celibato desenvolvida pela Exortação
Apostólica, e é oferecida para ser meditada e colocada na base de qualquer
desenvolvimento posterior.
A partir desta afirmação central do documento papal,
tentámos indicar, a partir do início desta quinta parte do nosso trabalho, os
elementos da Teologia do celibato que já estavam presentes na Tradição, mas que
tinham sido desenvolvidos de maneira insuficiente. Agora somos capazes de ver
não só que todos estes elementos foram recolhidos e desenvolvidos
sistematicamente na Exortação, mas também foram utilizados nela outros não
considerados antes.
Deve ser valorizado, acima de tudo, neste sentido,
aquilo que é afirmado no capítulo três, especialmente nos números 22 e 23,
acerca da “configuração com Jesus Cristo Cabeça e Pastor e a caridade
pastoral”. Cristo nos é mostrado aqui no mesmo sentido de Ef 5, 23-32, como Esposo
da Igreja, assim como ela é a única Esposa de Cristo. Em ligação com outros
textos das Escrituras, nesta passagem da Exortação se contempla a profunda e
misteriosa união entre Cristo e a Igreja, que é colocado imediatamente em
relação com o sacerdote: “O sacerdote está chamado a ser uma imagem viva de
Jesus Cristo, Esposo da Igreja… Está chamado, portanto, a reviver na sua vida
espiritual o amor de Cristo Esposo pela Igreja Esposa.” Não lhe falta, por
isso, ao sacerdote um amor esponsal, pois tem a Igreja como esposa. “Sua vida
deve também estar iluminada e orientada por esta relação esponsal, que lhe pede
ser testemunho do amor esponsal de Cristo, ser capaz de amar as pessoas com um
coração novo, grande e puro, com autêntico desapego de si, com plena dedicação,
contínua e fiel e, ao mesmo tempo, com uma forma especial de zelo (cf. 2 Cor
11, 2), com uma ternura que se reveste também com acentos do amor maternal,
capaz de tomar a cargo das ‘dores de parto’ para que ‘Cristo’ seja formado nos
fiéis (cf. Gal 4, 19)”.
“O princípio interno, a força que anima e orienta a
vida espiritual do presbítero, enquanto configurado a Cristo Cabeça e Pastor, é
a caridade pastoral, participação da caridade pastoral do mesmo Jesus Cristo”. O
seu conteúdo essencial “é o dom de si, o dom total de si à Igreja, à imagem e
em união com o dom de Cristo…” “Com a caridade pastoral, que converte o
exercício do ministério sacerdotal num amoris officium, o
sacerdote que recebe sua vocação ao ministério está em condições de fazer disso
uma escolha de amor, pela qual a Igreja e as almas se tornam seu principal
interesse”.
VI. CONCLUSÃO
O sacerdócio da Igreja Católica manifesta-se, pois, como um mistério inserido, por sua vez, no mistério da Igreja. Qualquer das questões que estão relacionadas com ele e sobretudo o problema grave e sempre actual do celibato, não pode ser considerado e resolvido por argumentos puramente antropológicos, psicológicos, sociológicos e, em geral, profanos e terrenos. Este problema, aliás, não pode ser resolvido com puras disposições disciplinares. Todas as manifestações da vida e das actividades do sacerdócio, a sua natureza e identidade, requerem, acima de tudo, uma justificação teológica. Aqui, no que diz respeito ao celibato, tentámos tratá-lo através da sua história, e apoiando-nos numa análise baseada nas fontes da Revelação. Note-se, falando no plano formal, que uma explicação satisfatória desse mistério não pode ser compatível com um tipo de linguagem meramente profano. Exige, pelo contrário, um modo elevado de expressão, digna do mistério. Além disso, considerando a natureza do sacerdócio católico, não é suficiente recorrer à reflexão sobre esse tema por razões, digamos assim, externas, ou seja, o que tornaria mais “funcional” o serviço da Igreja: a salvaguarda ou a renúncia do celibato? O sacerdócio do Novo Testamento não responde a uma noção funcional, como sucedia no caso do Antigo Testamento, mas é uma realidade ontológica, à qual só corresponde uma forma adequada de agir: a que é derivada do axioma agere sequitur esse, quer dizer, a acção segue ao ser. Ante essa Teologia do sacerdócio do Novo Testamento, que tem sido confirmada e aprofundada pelo Magistério oficial da Igreja, devemos perguntar-nos: essas razões que têm sido expostas a favor do celibato, falam só de sua “conveniência” ou de algo realmente necessário e irrenunciável? Não existe realmente um iunctum – um vínculo de unidade – entre sacerdócio e celibato? Somente com uma resposta adequada a esta pergunta se poderá responder a esta outra: poderia a Igreja decidir um dia a modificação da obrigação do celibato, ou aboli-la? Para não correr riscos na resposta a essa pergunta, deverá partir-se do facto de que o sacerdócio católico não foi estabelecido pelo Fundador da Igreja sobre os homens, que se transformam e mudam, mas sobre o mistério imutável da Igreja e do próprio Cristo.
Ler mais:
Laurent TOUZE,
Célibat sacerdotal et théologie nuptiale de l’ordre, Dissertationes - Series
Theologica, IX, Edizioni Università
della Santa Croce, Roma, 2002, 311 pp.
Mais informações aqui.
L'avenir du célibat sacerdotal et sa logique sacramentelle, Lethielleux, Collection Culture et Religion, Paris, 2009.
Roman Cholij, Priestly
celibacy in patristics and in the history of the Church, disponível aqui em inglês, ou, em português (do Brasil), aqui.
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