Partilho o texto sobre este assunto publicado no «Observador»:
http://observador.pt/opiniao/fatima-visoes-ou-aparicoes/
FÁTIMA: VISÕES OU APARIÇÕES?
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Leopoldo de Almeida - Martins Barata, Altar de Nossa Senhora de Fátima - Igreja de Santo Eugénio, Roma (1951) |
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Pode haver visões ou aparições? Como se
distinguem? E que aconteceu em Fátima? Foram aparições ou simplesmente visões?
O filósofo francês Jean Guitton (1901-1999),
num livro intitulado Os misteriosos
poderes da fé, escrito em diálogo com o jornalista e escritor Jean-Jacques
Antier, (edição francesa de 1997 e tradução portuguesa de 2000), observa que as
pessoas com fé tendem a admitir que as visões ou aparições são possíveis e que até
já aconteceram muitas vezes, ao passo que os descrentes ou céticos dirão que
não têm qualquer consistência ou realidade, nem sequer podem existir. Para
estes, aquilo a que chamamos visão ou aparição não é mais do que um estado
doentio em que o protagonista se apercebe de uma sensação sem que esta tenha
nenhuma causa real na sua origem. Para os crentes, porém, a aparição ou visão é
uma experiência real (p. 283 da edição portuguesa).
Admitindo que possam existir, como se distinguem
«visões» de aparições»?
O mesmo filósofo distingue entre visões
exteriores e visões interiores. “As visões exteriores, ou visões sensíveis, ou
aparições, implicam a representação de uma entidade sobrenatural – por exemplo
a Virgem Maria – sob uma forma percetível aos sentidos”. Aqui, “o objeto apresenta-se
no espaço real e aqueles que acompanham o vidente podem vê-lo ou não. Pelo
contrário, as visões interiores são circunscritas exclusivamente à consciência
do vidente, e as eventuais testemunhas não as veem” (p. 284).
A distinção essencial é, portanto, entre “visão
interior, cujo objeto está circunscrito à consciência do sujeito, e a visão
exterior (ou aparição), cujo objeto se apresenta sensivelmente no espaço real”
(p. 285).
O teólogo francês Louis Bouyer, no seu Dicionário de Teologia, define assim o
conceito de aparição: “Chama-se aparição a uma manifestação de Deus, dos anjos
ou até de seres humanos que já morreram, (santos ou não), que se apresenta de
uma forma que impressiona os sentidos”. E conclui: “Deus, os anjos e os santos
podem manifestar-se a nós, se tal for a vontade divina, tanto por uma simples
impressão sobrenatural feita sobre a nossa imaginação, como pela apresentação objetiva
aos nossos sentidos de uma realidade corporal ou material de origem milagrosa”
(trad. espanhola de 1990, p. 84).
E em Fátima, para aqueles que acreditam, houve
visões ou aparições?
O filósofo português Carlos Henrique do Carmo
Silva, num artigo publicado por ocasião do 80º aniversário dos acontecimentos
de Fátima (“Aparições e experiências místicas: reflexão sobre o fenómeno de
Fátima e contributo para uma sua renovada meditação espiritual”, Didaskalia, Lisboa 1998), caracteriza o
que aqui aconteceu como “um celeste contacto” (p. 21), expressão que, só por si,
alude à mesma “realidade objetiva” de que falam os autores anteriormente
citados.
Uma aparição é, portanto, “um celeste
contacto”, que ali está, “no espaço exterior”, sob a forma de “uma realidade
corporal ou material”, mas indubitavelmente – e nem poderia ser de outra
maneira – “de origem milagrosa”.
Assim sempre se considerou terem sido os
acontecimentos de Fátima: isto é, “aparições”, e não simplesmente “visões” da
Virgem Santa Maria.
“Na idílica, porém rústica, paisagem da Cova da
Iria, como já nos Valinhos, e no pastoreio a que se dedicavam Lúcia, Francisco
e Jacinta, surgem recortes de uma outra Presença que lhes aparece e se torna sensível”. Assim resume Carlos Henrique
do Carmo Silva estes acontecimentos, fazendo notar logo de seguida que “se toma
aqui a aparição não como uma visão (de diversas «imagens invisíveis», de um
magma fantasmático, ou de uma clarividência confusa, semelhante à da
consciência onírica...), mas na aceção do aparecer visível de uma figura, um
recorte presencial que distintamente se sobrepõe ao regime do mundo da perceção
habitual” (p. 37 e nota 82).
As aparições de Fátima são esta presença objetiva
e exterior da Virgem, manifestada aos três Videntes, presença tão objetiva como
a das árvores ou das casas, ou das próprias ovelhas que pastoreavam, distinta
destas ou de quaisquer outras realidades, porém, por ser sobrenatural e de
origem miraculosa.
Em sentido contrário, porém, temos um texto
assinado pelo Cardeal J. Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, ao tempo Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, sob o título de Comentário Teológico, e incluído num conjunto de Documentos sobre «A Mensagem de Fátima», com data de 26
de junho de 2000.
O Comentário começa por recordar a distinção
perfeitamente tradicional entre os três tipos de visões:
“A antropologia teológica distingue, neste
âmbito, três formas de perceção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a perceção
externa corpórea; a perceção interior; e a visão espiritual”.
Mas, depois de ter reconhecido a existência de
três tipos de visão, o Comentário limita consideravelmente o seu alcance, pois,
segundo ele, quer a visão seja interna ou externa, o vidente deforma
necessariamente o que viu.
O Comentário exclui em seguida categoricamente
que os acontecimentos de Fátima (ou de Lourdes) possam ser visões exteriores ou
sensíveis, e classifica-as deliberadamente entre as visões interiores:
“É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc.,
não se trata da perceção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras
vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo,
uma árvore ou uma casa”.
Para o provar, dá um exemplo que parece
incontestável:
“Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da
visão do inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou então
na visão descrita na terceira parte do «segredo».
Mas também não se tratou de uma simples visão
espiritual ou intelectual:
“De igual modo, é claro que não se trata duma
«visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística.
Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a perceção interior que, para o
vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa
sensível”.
E acrescenta:
“Este ver interiormente não significa que se
trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjetiva.
Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está
para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível
aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se de
verdadeiros «objetos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível
que nos é habitual. (…) A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde
é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis”.
E insiste:
(…) As imagens por eles [os pastorinhos de
Fátima] delineadas (…) também não se hão de imaginar como se por um instante se
tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade
pura, como esperamos vê-lo um dia na união definitiva com Deus”.
O Comentário nega, portanto, a realidade dos
fenómenos exteriores, e não vê, nas visões de Fátima, senão uma perceção
interior dos videntes. Para ele, em Fátima como em Lourdes, as figuras vistas
pelos videntes não se encontram exteriormente no espaço!
A descrição da Virgem pelas crianças não seria,
portanto, mais do que uma imagem daquilo que eles captaram interiormente. Por
outras palavras, Nossa Senhora não teria vindo a Fátima: os visitantes não
tiveram senão uma perceção interior da sua presença.
Esta leitura do Cardeal Ratzinger pode ser
contestada?
Pode, claramente, em primeiro lugar porque,
embora seja um texto oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, não é uma
“Instrução” nem uma “Notificação”, como tantas que o Cardeal Ratzinger assinou,
recebendo depois a aprovação do Papa, que ordena em seguida a sua publicação. Veja-se
como termina, por exemplo, uma “Instrução sobre as orações para alcançar de
Deus a cura”, publicada em 14 de Setembro de 2000: “O Sumo Pontífice João
Paulo II, na Audiência concedida ao abaixo-assinado Prefeito, aprovou a
presente Instrução, decidida na reunião ordinária desta Congregação, e mandou
que fosse publicada”.
Este modo solene de conclusão com a aprovação papal
não existe neste caso, o que se compreende, porque o texto em apreço não
pretende ser mais do que um “Comentário”, que intencionalmente não se reveste
de especial autoridade no âmbito do Magistério da Igreja. Será legítimo,
portanto, se houver razões para isso, pensar de modo diferente ou até discordar
sobre matérias que nele se abordam, sem prejuízo do grande respeito que nos
merecerá sempre o seu Autor.
Julgo, porém, que existem muitas razões para
discordar da classificação dos acontecimentos de Fátima neste género
intermédio, isto é, como sendo simples visões interiores, ainda que genuínas e
de origem sobrenatural.
A verdade é que a Ir. Lúcia era de uma opinião
totalmente contrária: ela estava certa de ter visto realmente a Virgem Maria,
como esperava um dia vê-la no Céu. Em 1924, na comissão de inquérito canónico, foi-lhe
feita esta pergunta: “Tens a certeza de que viste realmente uma Senhora em cima
da carrasqueira e de que não te enganaste?”
E Lúcia respondeu: “Tenho a certeza de que a vi
e de que não me enganei; ainda que me matassem, ninguém me faria dizer o
contrário”.
“E quem era essa Senhora?”
Respondeu: “Antes de ela dizer que era a
Senhora do Rosário, não sabia quem era; agora estou convencida de que era Nossa
Senhora” (Documentação Crítica de Fátima,
doc. 82, p. 324).
No decurso da sua vida, a Ir. Lúcia não teve só
visões sensíveis ou aparições, mas foi sujeita aos três tipos de visões acima
referidos. As inspirações que receberá do Céu em resposta às suas interrogações
serão frequentemente uma perceção interior. Já a visão de Tuy (13 de Junho de
1929) deverá, pelo contrário, integrar-se no segundo tipo, pois a Ir. Lúcia diz
que viu, e não há nenhuma razão para duvidar do seu testemunho. Mas as
personagens ou objetos desta imagem não estavam presentes fisicamente, em
particular Deus Pai: portanto, dificilmente pode tratar-se de uma visão
sensível.
A visão do inferno pode igualmente ser inserida
nesta categoria, visto que, como nota o Comentário do Cardeal Ratzinger, o fogo
não se ateou na Cova da Iria! Claro que o inferno não esteve, fisicamente,
diante dos pequenos videntes: eles viram-no graças àquela luz que emanava das
mãos da Virgem.
Mas o facto de a visão do inferno ser da
categoria das visões imaginativas, não prova que o resto da visão o seja, pois,
como diz Adolfo Tanquerey, numa obra clássica sobre o assunto, nada impede que
haja diversas perceções diferentes no decurso de uma mesma aparição. Esta dupla
perceção já se produziu, aliás, na primeira aparição de 13 de Maio de 1917.
Pelo reflexo vindo das mãos da Virgem, os pastorinhos viram-se em Deus: esta
visão é muito provavelmente uma visão interior, que vem acrescentar-se à visão
sensível da Senhora. Nas aparições de 1917, é fácil discernir as visões interiores,
pois elas são precedidas de um gesto de abertura das mãos da Virgem e por um
raio de luz que emana das suas mãos, como para materializar a graça da visão
dada.
Mas as visões de Nossa Senhora são seguramente
visões sensíveis. É seguro que a Virgem Maria apareceu aos pastorinhos sob uma
forma exterior sensível. O carácter ofuscante das aparições é também uma prova
da realidade do corpo glorioso da Santíssima Virgem. A Lúcia foi muitas vezes
obrigada a baixar os olhos, tão viva era a luz que emanava da Virgem. O Cón.
Formigão perguntou-lhe:
– Por que razão não raro baixas os olhos
deixando de fitar a Senhora?
– É que ela às vezes cega (Documentação Crítica de Fátima, p. 58)
Na narrativa que fez da aparição de 13 de
Outubro, disse:
“Veio no meio dum esplendor. Desta vez também
cegava. De vez em quando eu tinha de esfregar os olhos” (J. de Marchi, Era uma Senhora mais branca que o sol, p.
177).
Também os fenómenos físicos que acompanharam os
acontecimentos de Fátima e foram observados por numerosas testemunhas, não
podem ser frutos de uma visão imaginativa. O seu número é impressionante. Esses
fenómenos exteriores manifestam sem qualquer dúvida possível a presença efetiva
de uma pessoa celeste.
Não só os videntes, mas também muitos daqueles
que tiveram a graça de assistir (exteriormente) às aparições observaram esses
fenómenos físicos, e isto em todas as aparições e não somente por ocasião do
milagre do sol. Em parte nenhuma fora de Fátima, a Virgem rodeou a sua vinda e
autenticou a sua presença de tantos sinais tão extraordinários. E essas
testemunhas eram particularmente numerosas: cerca de 50 na 2ª aparição, 3 a
4000 na 3ª, 18 a 20.000 na 4ª, 25 a 30.000 na 5ª e cerca de 70.000 na última,
estando alguns por vezes a vários quilómetros do lugar das aparições!
Por ocasião dos acontecimentos de Fátima, as
testemunhas mais próximas puderam observar diversos fenómenos dificilmente
atribuíveis a visões interiores. Mas outros fenómenos puderam ser observados
por um grande número de testemunhas exteriores.
Foram
eles os seguintes:
I
– Relâmpagos, que sempre antecedem as Aparições. Trovões, no momento preciso da
Aparição, ou no seu termo, e cuja origem parecia provir da azinheira.
II – Curvatura do arbusto, como se tivesse estado coberto por um manto,
e com as folhas todas inclinadas na mesma direção (na segunda Aparição).
III – Perfume, de essência nova e desconhecida, evolando-se do ramo da
azinheira cortado dos Valinhos, e sentido pela senhora Maria Rosa e
circunstantes, após a quarta Aparição.
IV – Nubescente globo luminoso, avançado de Este para Oeste, e
deslizando majestosamente através do espaço, até tocar a azinheira (na quinta
Aparição).
V
– Nuvem branca ou matizada, e de vista agradabilíssima, que várias vezes se
formou em torno dos Videntes, com vaporizações de fumo ascendente até cinco ou
seis metros de altura. E, isto, por três vezes bem distintas, na mesma
Aparição.
VI – Chuva evanescente de rosas, com rosinhas brancas, maiores vistas de
longe, e que, pouco a pouco, se vão tornando mais pequenas, com o
aproximarem-se do chão, até desaparecendo de todo.
VII – Diminuição da luz solar em pleno meio-dia, sem nuvens nem
eclipses. Viam-se a Lua e as estrelas. Este fenómeno verificou-se em todas as
Aparições, à excepção da última. Quanto à primeira Aparição, não se sabe.
VIII – Milagre do Sol, que, segundo os testemunhos, consta de três
fases:
a) O Sol torna-se opaco, com reflexos de
madrepérola; pode-se fixar sem dificuldade, havendo ausência absoluta de nuvens
e de eclipse;
b) Irradiações de cores, com rotação em feixes
irisados que se difundem por todo o céu, semelhantes a fogo-de-artifício,
c) Movimento do disco solar, como que
aumentando, ao princípio e dando a sensação de se precipitar sobre a terra; em
seguida, movimento de translação do disco sobre o firmamento, de relance, tanto
em linha retilínea, como quebrada.
“Em geral, podemos dividir, em
duas classes, todos estes fenómenos: a primeira consta de fenómenos
instantâneos; a segunda, de fenómenos estáveis. Os primeiros foram os
relâmpagos e os trovões; os segundos, todos os outros. Compreende-se desta
forma que Fátima se tenha imposto e triunfado..." (Sebastião Martins dos
Reis, “Síntese crítica de Fátima”, Junta Distrital de Lisboa, Boletim Cultural,
1987/68. p. 86-88).
O Cardeal J. Ratzinger foi
eleito Papa em 2005. O seu pensamento sobre Fátima mudou?
Os seguintes pronunciamentos
falam por si:
1. “Decorre hoje
o nonagésimo aniversário das APARIÇÕES de Nossa Senhora em Fátima. Com o seu
veemente apelo à conversão e à penitência é, sem dúvida, a mais profética das
APARIÇÕES modernas. Vamos pedir à Mãe da Igreja, Ela que conhece os sofrimentos
e as esperanças da humanidade, que proteja nossos lares e nossas comunidades”.
(Papa Bento XVI, 13/5/2007)
2. "Prova disto mesmo é este lugar bendito. Mais sete anos e voltareis
aqui para celebrar o centenário da primeira VISITA feita pela Senhora «vinda do
Céu», como Mestra que introduz os pequenos videntes no conhecimento íntimo do
Amor Trinitário e os leva a saborear o próprio Deus como o mais belo da
existência humana." (Papa Bento XVI, 13/5/2010)
3. "Com a
família humana pronta a sacrificar os seus laços mais sagrados no altar de
mesquinhos egoísmos de nação, raça, ideologia, grupo, indivíduo, VEIO DO CÉU a
nossa bendita Mãe oferecendo-Se para transplantar no coração de quantos se Lhe
entregam o Amor de Deus que arde no seu. Então eram só três, cujo exemplo de
vida irradiou e se multiplicou em grupos sem conta por toda a superfície da
terra, nomeadamente à passagem da Virgem Peregrina, que se votaram à causa da
solidariedade fraterna. Possam os sete anos que nos separam do centenário das APARIÇÕES
apressar o anunciado triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da
Santíssima Trindade. (Papa Bento XVI, 13/5/2010)
4. «O meu
pensamento vai para Nossa Senhora de Fátima, de quem hoje recordamos a última
APARIÇÃO. À Celeste Mãe de Deus vos confio, caros jovens, para que possais
generosamente responder à chamada do Senhor.» (Papa Bento XVI, 13/10/2010).