Uma
luta de dimensão cósmica
Começou a
Quaresma: já demos por isso? Mas qual é o interesse da Quaresma? Que «utilidade»
é que tem? O interesse da Quaresma, a utilidade que tem, está bem expressa na
oração inicial da Missa do 1º Domingo: “Concedei-nos, Deus omnipotente, que,
pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo,
e a nossa vida seja um digno testemunho”.
É isso que
está em jogo na Quaresma: que consigamos ter uma “maior compreensão do mistério
de Cristo”, e a nossa vida, com toda a normalidade, e em todas as
circunstâncias, fale de Jesus Cristo aos outros.
Terminada a
Quaresma, na Semana Santa, iremos acompanhar de novo, com enorme assombro, os
últimos momentos da vida de Jesus neste mundo: a última Ceia com os discípulos,
a oração no Jardim das Oliveiras, a prisão, o julgamento, a condenação, a
flagelação, a coroação de espinhos, o carregar da cruz sobre os ombros e todos
os outros dolorosos tormentos que suportou, e por fim a sua morte na cruz. A
força, o drama e o mistério da paixão de Jesus não se atenuaram com o passar
dos tempos, pelo contrário, sobressaem ainda mais nitidamente para quem os
quiser ver, tal como o filme «A Paixão de Cristo» conseguiu exprimir, de uma
forma extraordinariamente verídica, bela e expressiva.
Mas a morte de
Jesus não foi o fim: a paixão de Jesus foi coroada pela sua gloriosa
ressurreição, que é a obra mais admirável do poder de Deus. A ressurreição de
Jesus enche de assombro a mente humana, e inunda de luz e sentido toda a nossa
vida, dando-nos a paz no meio das provas, uma esperança inabalável e uma
alegria constante e profunda, mesmo por entre as tristezas e dificuldades desta
vida.
E a Quaresma
existe para nos ajudar a celebrar, na próxima Páscoa, de coração purificado, com
um novo amor, com uma fé vibrante, a espantosa paixão e morte de Jesus Cristo,
Filho de Deus, e a sua luminosa ressurreição, pela qual Se torna presente a
todos os tempos e contemporâneo de todos os homens, de cada um de nós.
A Quaresma é
um tempo em que nos tornamos conscientes daquilo que é essencial na nossa vida.
De acordo com
uma prática constante ao longo de vinte séculos, todos os cristãos procuram
viver, não apenas simbolicamente, mas de um modo efectivo, um maior
desprendimento de si mesmos, traduzida numa maior sobriedade na comida e na
bebida, e também nos divertimentos e nos gastos supérfluos, não só para criar
essa liberdade interior que é necessária para celebrar a Páscoa, mas também
para dar a cada um novas oportunidades de exercer uma partilha efectiva com os
outros, especialmente os mais necessitados.
Há pessoas
que, na Quaresma, de acordo com a mais genuína tradição, praticam um efectivo
jejum, outros, pelo menos, não comem doces habitualmente, ou não bebem vinho,
ou não bebem café, e esta privação de alimentos ou bebidas faz sentido, porque
nos torna menos dependentes do que é relativo e secundário, e mais disponíveis
para o essencial, que é o mistério de Cristo, revelação perfeitíssima da
infinita misericórdia de Deus para com todos os homens.
Mas, na base
destas escolhas pequenas de cada dia, embora importantes, há uma escolha
primeira e essencial, uma opção de fundo, que o próprio Jesus viveu antes de
nós, e da qual Ele é também, para cada um de nós, um admirável exemplo e um
insuperável modelo.
Logo no início
da sua vida pública, depois de passar quarenta dias de um rigoroso jejum no
deserto, Jesus foi tentado pelo diabo a seguir outros caminhos, totalmente
opostos ao projecto do Pai. Depois de ter sido reconhecido pelo Pai, no momento
do baptismo, no rio Jordão, como “o Filho muito amado” (Lucas 3, 22), Jesus foi agora posto à prova na sua fidelidade a
Deus.
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Gustave Doré, As tentações de Cristo |
Contudo, ao
contrário do que normalmente acontece connosco, Jesus não teve nenhuma
cumplicidade interior com as tentações que o diabo Lhe sugeriu. Já connosco
isso não se passa: temos sempre uma certa apetência para aquele mal que nos é
proposto na tentação, mesmo que o queiramos rejeitar. Isso pode até acontecer,
por exemplo, com uma pessoa que deixou de fumar ou de beber: se alguém lhe
oferecer um cigarro ou uma bebida, pode sentir uma certa apetência interior, ou
mesmo um forte desejo, embora sinceramente queira rejeitar essa oferta, e de
facto não a aceite.
Jesus, porém,
não sentiu nenhum apreço pelas tentações, detestou-as profundamente no seu
íntimo, mas elas foram-lhe levadas ao espírito pelo adversário, e teve de as
rejeitar explicitamente, pelo terrível desvio que elas representariam ao
caminho da salvação. Com absoluta firmeza e impressionante serenidade, Jesus
resistiu à tentação, e triunfou sobre o maligno.
Mas há
ainda um ensinamento muito importante neste relato das tentações de Jesus. Este
episódio revela-nos que há “uma luta, de dimensão cósmica – como a classificou
João Paulo II – das forças do mal contra a realização do plano salvífico que o
Filho de Deus veio proclamar e inaugurar na sua própria pessoa”.
Em Jesus
inicia-se a nova criação; n’Ele se realiza a nova e perfeita aliança entre Deus
e a humanidade inteira. N’Ele nos é oferecida a misericórdia de Deus, n’Ele os
homens encontram a salvação. Por isso, não admira que o maligno se oponha
desesperadamente a Jesus, ouse enfrentá-Lo, e tente, com alguns atractivos
absurdos, desviá-Lo do seu caminho.
O
Evangelho mostra-nos que Jesus sai vencedor neste primeiro assalto, e vencerá
de novo, definitivamente, na hora derradeira da sua paixão e morte. Mas o
maligno não desiste, e hoje, como salientou também o Papa João Paulo II, “este
combate contra o espírito do mal envolve cada um de nós, chamado a seguir o
exemplo do divino Mestre”.
A Quaresma é
um tempo de graça para confirmarmos a nossa luta, a nossa esperança e a nossa
fidelidade. S. Paulo diz, na Carta aos Romanos: dirigindo-se pessoalmente a
cada um dos seus leitores: “Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor,
e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo”
(Romanos 10, 9).
Sabemos
que hoje os cristãos podem enfrentar muitas tentações contra a fé. E podem ser
tentados a assumir estilos de vida marcados pelo materialismo ou pela
sensualidade desordenada, que os afastam da simplicidade do Evangelho e da
beleza do amor cristão. É fortíssima a tentação de viver sem Deus, numa
indiferença sobranceira e absurda, que retira do espírito humano a admiração e
a gratidão. Mas o mistério de Jesus Cristo, se for olhado “em espírito e
verdade”, será sempre atraente e fascinante.