quinta-feira, fevereiro 28, 2013

Não podemos ter dois Papas


Não podemos ter dois Papas

Depois das sentidas homenagens a Bento XVI, que culminaram na sua última audiência geral, é tempo de fazer silêncio.

É tempo de retirar das sacristias a sua fotografia, e de não mais dizer o seu nome na Oração Eucarística.

É tempo – com grande tristeza o digo – de não mais vermos nem ouvirmos Bento XVI, que voluntariamente vai entrar num recolhimento definitivo.
 
 

Não tendo feito luto por Bento XVI, que, graças a Deus, ainda está neste mundo, temos de proceder, porém, como se já não estivesse entre nós, porque, apesar dos títulos que continuará a usar, e que evocam o ministério a que renunciou, a partir das 20h00 (19h00 em Portugal) do último dia de Fevereiro de 2013, não mais será Papa.

Com grande tristeza o digo. Mas não poderia mesmo ser de outra maneira, porque não podemos ter dois Papas.

terça-feira, fevereiro 19, 2013

O novo movimento litúrgico que Bento XVI desejou

O Cardeal António Cañizares Llovera, Prefeito da Congregação para o Culto Divino, deu, em Dezembro de 2010, uma entrevista a Il Giornale, (acessível aqui), e que se reproduz abaixo, em tradução portuguesa.
Quando se multiplicam as expressões de gratidão para com Bento XVI, não seria justo esquecer o que fez pela liturgia.
 
 
Bento XVI celebra Missa no Terreiro do Paço (10.05.2010)
 

 
É verdade que Bento XVI fez mais do que aquilo que Cañizares refere nesta entrevista. Seria justo, por amor pela verdade histórica, mencionar também a liberalização, pelo Papa, mediante o motu próprio Summorum Pontificum, de 7 de Julho de 2007, (ver aqui uma tradução portuguesa), da celebração do rito romano antiquior, («mais antigo»), ou seja, a permissão do “uso do Missal de 1962, como Forma extraordinária da Liturgia da Missa”, tal como Bento XVI explicou na Carta que dirigiu aos Bispos na ocasião.
 
De tudo o que o Cardeal Cañizares refere, destaca-se, no entanto, a afirmação de que Bento XVI desejou “um novo movimento litúrgico”.

Embora discretamente, este “novo movimento litúrgico” está já a acontecer em muitas partes do mundo, e o seu fruto será certamente aprofundar a compreensão da liturgia como encontro com o mistério.




 
Bento XVI celebra Missa na Catedral de Westminster (18.10.2010)
 
 
 
O novo movimento litúrgico que Bento XVI desejou
 
A liturgia católica vive “uma certa crise” e Bento XVI quer dar vida a um novo movimento litúrgico, que traga novamente mais sacralidade e silêncio na Missa e mais atenção à beleza no canto, na música e na arte sacra. O Cardeal António Cañizares Llovera, de 65 anos, Prefeito da Congregação para o Culto Divino, que enquanto bispo na Espanha era chamado de “o pequeno Ratzinger”, é o homem ao qual o Papa confiou esta tarefa. Nesta entrevista a Il Giornale, o “ministro” da liturgia de Bento XVI revela e explica programas e projectos.
 
Como cardeal, Joseph Ratzinger tinha lamentado uma certa pressa na reforma litúrgica pós-conciliar. Qual é a sua opinião?

A reforma litúrgica foi realizada com muita presa. Havia óptimas intenções e o desejo de aplicar o Vaticano II. Mas houve precipitação. Não se deu tempo e espaço suficientes para acolher e interiorizar os ensinamentos do Concílio. De uma vez, mudou-se o modo de celebrar. Recordo bem a mentalidade então difundida: era preciso mudar, criar alguma coisa nova. Aquilo que havíamos recebido, a tradição, era vista como um obstáculo. A reforma foi compreendida como obra humana; muitos pensavam que a Igreja fosse obra de nossas mãos e não de Deus. A renovação litúrgica foi vista como uma pesquisa de laboratório, fruto da imaginação e da criatividade - a palavra mágica de então.
 
Como cardeal, Ratzinger desejou uma “reforma da reforma” litúrgica, palavras actualmente impronunciáveis, mesmo no Vaticano. Todavia, parece evidente que Bento XVI a deseja. Pode falar-nos dela?
Não sei se se pode ou se é conveniente falar de “reforma da reforma”. O que vejo absolutamente necessário e urgente, segundo o que deseja o Papa, é dar vida a um novo, claro e vigoroso movimento litúrgico em toda a Igreja. Porque, como explica Bento XVI no primeiro volume de sua Opera Omnia, na relação com a liturgia decide-se o destino da fé e da Igreja. Cristo está presente na Igreja através dos sacramentos. Deus é o sujeito da história, não nós. A liturgia não é uma acção do homem, mas é acção de Deus.


O Papa, mais que com decisões impostas de cima, fala com o exemplo. Como ler as mudanças introduzidas por ele nas celebrações papais?
Antes de tudo, não deve haver nenhuma dúvida sobre a bondade da renovação litúrgica conciliar, que trouxe grandes benefícios para a vida da Igreja, como a participação mais consciente e activa dos fiéis e a presença enriquecida da Sagrada Escritura.
Mas, além destes e outros benefícios, não faltaram sombras, surgidas nos anos seguintes ao Vaticano II: a liturgia, isto é um facto, foi “ferida” por deformações arbitrárias, provocadas também pela secularização que desgraçadamente atinge também o interior da Igreja. Consequentemente, em muitas celebrações, já não se coloca Deus no centro, mas o homem e o seu protagonismo, a sua acção criativa; o papel principal é dado à assembleia. A renovação conciliar foi entendida como uma ruptura e não como um desenvolvimento orgânico da tradição.
Devemos reavivar o espírito da liturgia e para isso são significativos os gestos introduzidos nas liturgias do Papa: a orientação da acção litúrgica, a cruz no centro do altar, a comunhão de joelhos, o canto gregoriano, o espaço para o silêncio, a beleza na arte sacra. É também necessário e urgente promover a adoração eucarística: diante da presença real do Senhor, não se pode senão estar em adoração.
 
 
Quando se fala de uma recuperação da dimensão do sagrado, há sempre quem apresente tudo isso como um simples retorno ao passado, fruto de nostalgia. Como responderia?

A perda do sentido do sagrado, do Mistério, de Deus, é uma das perdas de consequências mais graves para um verdadeiro humanismo. Quem pensa que reavivar, recuperar e reforçar o espírito da liturgia e a verdade da celebração possa ser um simples retorno a um passado superado, ignora a verdade das coisas. Colocar a liturgia no centro da vida da Igreja efectivamente não é nostálgico, mas, ao contrário, é a garantia de estar a caminho em direcção ao futuro.
Como avalia o estado da liturgia católica no mundo?

Diante do risco da rotina, diante de algumas confusões, da pobreza e da banalidade do canto e da música sacra, pode-se dizer que há uma certa crise. Por isso é urgente um novo movimento litúrgico. Bento XVI, indicando o exemplo de São Francisco de Assis, muito devoto do Santíssimo Sacramento, explicou que o verdadeiro reformador é alguém que obedece à fé: não age de modo arbitrário e não se arroga nenhuma autoridade sobre o rito. Não é o dono, mas o guardião do tesouro instituído pelo Senhor e a nós confiado. O Papa, portanto, pede à nossa Congregação que promova uma renovação conforme o Vaticano II, em sintonia com a tradição litúrgica da Igreja, sem esquecer a norma conciliar que prescreve não introduzir inovações, excepto quando as requererem uma verdadeira e comprovada utilidade para a Igreja, com a advertência de que as novas formas, em todo caso, devem surgir organicamente daquelas já existentes.
O que pretende fazer como Congregação?
Devemos considerar a renovação litúrgica segundo a hermenêutica da continuidade, na forma indicada por Bento XVI para ler o Concílio. E para fazer isto, é necessário superar a tendência de “congelar” o estado actual da reforma pós-conciliar de um modo que não faz justiça ao desenvolvimento orgânico da liturgia da Igreja. Estamos procurando levar adiante um grande empenho na formação dos sacerdotes, seminaristas, consagrados e fiéis leigos, para favorecer a compreensão do verdadeiro significado das celebrações da Igreja. Isto requer uma adequada e ampla instrução, vigilância e fidelidade nos ritos, e uma autêntica educação para vivê-los plenamente. Este empenho será acompanhado da revisão e da actualização dos textos introdutórios das diversas celebrações (prenotanda). Também estamos conscientes que dar impulso a este novo movimento não será possível sem uma renovação da pastoral da iniciação cristã.


Uma perspectiva que deveria ser aplicada também à arte e à música…
O novo movimento litúrgico deverá fazer descobrir a beleza da liturgia. Por isso, abriremos uma nova seção da nossa Congregação dedicada à “Arte e música sacra” a serviço da liturgia. Isso nos levará a oferecer, quanto antes, critérios e orientações para a arte, canto e a música sacras. Como também pensamos em oferecer o mais rapidamente possível critérios e orientações para a pregação.

Nas Igrejas desaparecem os genuflexórios, a Missa às vezes é ainda um espaço aberto à criatividade, cortam-se até mesmo as partes mais sagradas do Cânon. Como inverter esta tendência?

A vigilância da Igreja é fundamental e não deve ser considerada como algo inquisitório ou repressivo, mas como um serviço. Em todo o caso, devemos tornar todos conscientes da exigência, não só dos direitos dos fiéis, mas também do “direito de Deus”.
Existe também o risco oposto, isto é, o de se crer que a sacralidade da liturgia dependa da riqueza dos paramentos: uma posição fruto de esteticismo que parece ignorar o coração da liturgia…
A beleza é fundamental, mas é algo muito diferente de um esteticismo vazio, formalista e estéril, no qual se cai às vezes. Existe o risco de se acreditar que a beleza e a sacralidade da liturgia dependem da riqueza ou da antiguidade dos paramentos. É necessária uma boa formação e uma boa catequese baseada no Catecismo da Igreja Católica, evitando também o risco oposto, o da banalização, e actuando com decisão e energia quando se recorrem a costumes que tiveram seu sentido no passado, mas que actualmente não têm ou não ajudam de nenhum modo a verdade da celebração.


Pode dar-nos alguma indicação concreta sobre o que poderia mudar na liturgia?
Mais que pensar em mudanças, devemos empenhar-nos em reavivar e promover um novo movimento litúrgico, seguindo o ensinamento de Bento XVI, a reavivar o sentido do sagrado e do Mistério, colocando Deus no centro de tudo. Devemos impulsionar a adoração eucarística, renovar e melhorar o canto litúrgico, cultivar o silêncio, dar mais espaço à meditação. Disso surgirão as mudanças…
 

domingo, fevereiro 17, 2013

Uma luta de dimensão cósmica


Uma luta de dimensão cósmica


Começou a Quaresma: já demos por isso? Mas qual é o interesse da Quaresma? Que «utilidade» é que tem? O interesse da Quaresma, a utilidade que tem, está bem expressa na oração inicial da Missa do 1º Domingo: “Concedei-nos, Deus omnipotente, que, pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo, e a nossa vida seja um digno testemunho”.
É isso que está em jogo na Quaresma: que consigamos ter uma “maior compreensão do mistério de Cristo”, e a nossa vida, com toda a normalidade, e em todas as circunstâncias, fale de Jesus Cristo aos outros.
Terminada a Quaresma, na Semana Santa, iremos acompanhar de novo, com enorme assombro, os últimos momentos da vida de Jesus neste mundo: a última Ceia com os discípulos, a oração no Jardim das Oliveiras, a prisão, o julgamento, a condenação, a flagelação, a coroação de espinhos, o carregar da cruz sobre os ombros e todos os outros dolorosos tormentos que suportou, e por fim a sua morte na cruz. A força, o drama e o mistério da paixão de Jesus não se atenuaram com o passar dos tempos, pelo contrário, sobressaem ainda mais nitidamente para quem os quiser ver, tal como o filme «A Paixão de Cristo» conseguiu exprimir, de uma forma extraordinariamente verídica, bela e expressiva.
Mas a morte de Jesus não foi o fim: a paixão de Jesus foi coroada pela sua gloriosa ressurreição, que é a obra mais admirável do poder de Deus. A ressurreição de Jesus enche de assombro a mente humana, e inunda de luz e sentido toda a nossa vida, dando-nos a paz no meio das provas, uma esperança inabalável e uma alegria constante e profunda, mesmo por entre as tristezas e dificuldades desta vida.
E a Quaresma existe para nos ajudar a celebrar, na próxima Páscoa, de coração purificado, com um novo amor, com uma fé vibrante, a espantosa paixão e morte de Jesus Cristo, Filho de Deus, e a sua luminosa ressurreição, pela qual Se torna presente a todos os tempos e contemporâneo de todos os homens, de cada um de nós.
A Quaresma é um tempo em que nos tornamos conscientes daquilo que é essencial na nossa vida.
De acordo com uma prática constante ao longo de vinte séculos, todos os cristãos procuram viver, não apenas simbolicamente, mas de um modo efectivo, um maior desprendimento de si mesmos, traduzida numa maior sobriedade na comida e na bebida, e também nos divertimentos e nos gastos supérfluos, não só para criar essa liberdade interior que é necessária para celebrar a Páscoa, mas também para dar a cada um novas oportunidades de exercer uma partilha efectiva com os outros, especialmente os mais necessitados.
Há pessoas que, na Quaresma, de acordo com a mais genuína tradição, praticam um efectivo jejum, outros, pelo menos, não comem doces habitualmente, ou não bebem vinho, ou não bebem café, e esta privação de alimentos ou bebidas faz sentido, porque nos torna menos dependentes do que é relativo e secundário, e mais disponíveis para o essencial, que é o mistério de Cristo, revelação perfeitíssima da infinita misericórdia de Deus para com todos os homens.
Mas, na base destas escolhas pequenas de cada dia, embora importantes, há uma escolha primeira e essencial, uma opção de fundo, que o próprio Jesus viveu antes de nós, e da qual Ele é também, para cada um de nós, um admirável exemplo e um insuperável modelo.
Logo no início da sua vida pública, depois de passar quarenta dias de um rigoroso jejum no deserto, Jesus foi tentado pelo diabo a seguir outros caminhos, totalmente opostos ao projecto do Pai. Depois de ter sido reconhecido pelo Pai, no momento do baptismo, no rio Jordão, como “o Filho muito amado” (Lucas 3, 22), Jesus foi agora posto à prova na sua fidelidade a Deus.
Gustave Doré, As tentações de Cristo
 
Contudo, ao contrário do que normalmente acontece connosco, Jesus não teve nenhuma cumplicidade interior com as tentações que o diabo Lhe sugeriu. Já connosco isso não se passa: temos sempre uma certa apetência para aquele mal que nos é proposto na tentação, mesmo que o queiramos rejeitar. Isso pode até acontecer, por exemplo, com uma pessoa que deixou de fumar ou de beber: se alguém lhe oferecer um cigarro ou uma bebida, pode sentir uma certa apetência interior, ou mesmo um forte desejo, embora sinceramente queira rejeitar essa oferta, e de facto não a aceite.
Jesus, porém, não sentiu nenhum apreço pelas tentações, detestou-as profundamente no seu íntimo, mas elas foram-lhe levadas ao espírito pelo adversário, e teve de as rejeitar explicitamente, pelo terrível desvio que elas representariam ao caminho da salvação. Com absoluta firmeza e impressionante serenidade, Jesus resistiu à tentação, e triunfou sobre o maligno.
Mas há ainda um ensinamento muito importante neste relato das tentações de Jesus. Este episódio revela-nos que há “uma luta, de dimensão cósmica – como a classificou João Paulo II – das forças do mal contra a realização do plano salvífico que o Filho de Deus veio proclamar e inaugurar na sua própria pessoa”.

Em Jesus inicia-se a nova criação; n’Ele se realiza a nova e perfeita aliança entre Deus e a humanidade inteira. N’Ele nos é oferecida a misericórdia de Deus, n’Ele os homens encontram a salvação. Por isso, não admira que o maligno se oponha desesperadamente a Jesus, ouse enfrentá-Lo, e tente, com alguns atractivos absurdos, desviá-Lo do seu caminho.
O Evangelho mostra-nos que Jesus sai vencedor neste primeiro assalto, e vencerá de novo, definitivamente, na hora derradeira da sua paixão e morte. Mas o maligno não desiste, e hoje, como salientou também o Papa João Paulo II, “este combate contra o espírito do mal envolve cada um de nós, chamado a seguir o exemplo do divino Mestre”.

A Quaresma é um tempo de graça para confirmarmos a nossa luta, a nossa esperança e a nossa fidelidade. S. Paulo diz, na Carta aos Romanos: dirigindo-se pessoalmente a cada um dos seus leitores: “Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor, e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo” (Romanos 10, 9).
Sabemos que hoje os cristãos podem enfrentar muitas tentações contra a fé. E podem ser tentados a assumir estilos de vida marcados pelo materialismo ou pela sensualidade desordenada, que os afastam da simplicidade do Evangelho e da beleza do amor cristão. É fortíssima a tentação de viver sem Deus, numa indiferença sobranceira e absurda, que retira do espírito humano a admiração e a gratidão. Mas o mistério de Jesus Cristo, se for olhado “em espírito e verdade”, será sempre atraente e fascinante.

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Sede vacante


«Sede vacante»



 
 

Quando morre o Papa, ficamos de luto.

E quando renuncia, também.

A inesperada decisão de Bento XVI, apesar dos inúmeros comentários cheios de respeito, compreensão e admiração, que também partilho, não pode deixar de magoar e entristecer profundamente a consciência dos católicos.

Enquanto durar a «sede vacante», e mesmo que, por agora, apenas anunciada, sinto-me órfão.

Até à eleição do novo Papa, estamos de luto.

domingo, fevereiro 10, 2013

O «abortivo»


No 5º Domingo do «Tempo Comum», no Ano C, lê-se, na 2ª leitura, uma passagem da 1ª Carta aos Coríntios, que é um precioso testemunho da ressurreição de Jesus, a que devemos dar a nossa maior atenção.

Há tempos, um eclesiástico que escreve no «Diário de Notícias», publicou uma crónica em que afirma que, depois da morte de Jesus, os discípulos fizeram um balanço de toda a sua vida, e então concluíram ou “acreditaram que ele está vivo em Deus”. (Respondi a esta crónica num post anterior intitulado «Da ressurreição aos Evangelhos da Infância. Resposta a Anselmo Borges»).

Mas salta à vista que os textos do Novo Testamento dizem muito mais. Recordemos apenas o que diz S. Paulo neste texto da 1ª Carta aos Coríntios:

“Transmiti-vos em primeiro lugar o que eu mesmo recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maior parte ainda vive, enquanto alguns já faleceram. Posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como o abortivo” (1 Coríntios 15, 3-8).

O abortivo”. Esta última palavra também se poderia traduzir como: «alguém que nasceu fora de tempo». Que significa? Um erudito exegeta do séc. XVII, o jesuíta Cornelius a Lapide (1567 – 1637), explica deste modo, no seu comentário à 1ª Epístola aos Coríntios, este estranho qualificativo:

“De acordo com alguns autores, como Santo Ambrósio de Milão e S. João Crisóstomo, abortivo significa tardio, fora de tempo; ou seja, já depois de Cristo ter subido ao Céu é que Paulo nasceu em Cristo e se tornou Apóstolo. De acordo com Santo Anselmo, S. Paulo fala assim de si mesmo porque foi derrubado por terra pelo poder divino, (como lemos nos Actos dos Apóstolos), compelido e como que obrigado a nascer de novo; os que nascem fora de tempo são empurrados para o mundo pela violência da natureza. Ora, como Santo Anselmo de novo observa, alguns que nascem assim, vêm em perigo de vida e por vezes nascem cegos. E na verdade S. Paulo ficou algum tempo cego depois da sua conversão. (…)
Conclui-se deste versículo que Cristo apareceu a Paulo, não por um anjo, como pensa Haymo (monge do séc. IX), mas em pessoa; não numa visão, como lhe apareceu noutro momento, em Actos 21, 18, nem em êxtase, como se regista em 2 Coríntios 12. 2, mas no espaço, em forma corpórea; pois foi assim que Cristo apareceu a Cefas (Pedro), Tiago e outros apóstolos; Além disso, se fosse qualquer outro tipo de manifestação, não seria prova da Ressurreição de Cristo. A aparição de Cristo a que alude aqui é a que aconteceu na conversão de Paulo (Actos 9. 3), quando ele viu Cristo antes que a luz brilhante o cegasse”.

E Cornelius a Lapide conclui, com uma interessante aplicação à Eucaristia:

“Portanto, conclui-se também que Cristo então desceu do Céu, visto que, como S. Tomás e outros autores dizem, S. Paulo ouviu a voz de Cristo a falar diante de si. Donde resulta novamente que Cristo estava, então, em dois lugares, no Céu e no nosso mundo, perto de Paulo; porque, de acordo com Actos 3, 21, Cristo nunca deixou o Céu ao qual subiu. Se Cristo está então em dois lugares, por que não pode Ele estar ao mesmo tempo no Céu e na Eucaristia?”
 
O que fica muito claro, em relação a S. Paulo, é que o Apóstolo dos Gentios não teve apenas uma visão mental, como escreve o Pe. Ryan Erlenbush, O. P., num post do seu blog, (que pode ser lido aqui), em que me inspirei para a anterior citação de Cornelius a Lapide e para a citação do Catecismo da Igreja Católica, que virá mais adiante.

Esclarece o Pe. Ryan: “Não foi apenas uma «visão» meramente intelectual ou imaginativa. Mais: tal como o nosso Salvador apareceu no seu próprio e verdadeiro corpo diante dos outros apóstolos, assim também nosso Senhor revelou o seu corpo próprio e natural a S. Paulo”.

Portanto, foi, sem dúvida, uma aparição absolutamente excepcional, como ensina o Catecismo da Igreja Católica, nesta excelente síntese sobre as manifestações de Cristo ressuscitado:

“«Então, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi elevado ao céu e sentou-se à direita de Deus» (Marcos 16, 19). O corpo de Cristo foi glorificado desde o momento da sua ressurreição, como o provam as propriedades novas e sobrenaturais de que, a partir de então, ele goza permanentemente (Actos 10, 41). Mas, durante os quarenta dias em que vai comer e beber familiarmente com os discípulos (Actos 10, 41) e instruí-los sobre o Reino (Actos 1, 3), a sua glória fica ainda velada sob as aparências duma humanidade normal (cf. Marcos 16, 12; Lucas 24. 15; João 20, 14-15; 21, 4.). A última aparição de Jesus termina com a entrada irreversível da sua humanidade na glória divina, simbolizada pela nuvem (cf. Actos 1, 9; também Lucas 9. 34-35; Êxodo 13, 22) e pelo céu (cf. Lucas 24, 51), onde a partir de então, está sentado à direita de Deus (cf. Marcos 16, 19; Actos 2, 33; 7. 56: também Salmo 110, 1). Só de modo absolutamente excepcional e único é que Se mostrará a Paulo, «como a um aborto» (1 Coríntios 15, 8), numa última aparição que o constitui Apóstolo (cf. 1 Coríntios 9, 1: Gálatas 1, 16)” (n. 659).
 
MICHELANGELO Buonarroti, A conversão de Saulo, Fresco, Cappella Paolina, Vaticano
 
Escreve ainda pertinentemente o Pe. Ryan Erlenbush:

“Fica assim muito claro que a aparição a S. Paulo é radicalmente diversa de qualquer outra visão concedida aos Santos. Porque, mesmo que o nosso Salvador tenha manifestado ocasionalmente a sua Sagrada Humanidade a videntes e místicos, não podemos de modo algum pensar que o seu corpo veio do céu para a Terra no seu estado verdadeiro e natural. Essa seria a Segunda Vinda!
Ou antes, sempre que um místico parece falar como se tivesse «tocado» ou «visto» o corpo físico e verdadeiro de Jesus (isto é, Cristo na sua aparência verdadeira, como quando caminhava sobre a terra ou apareceu após a Ressurreição), devemos entender isto como tendo sido apenas uma visão. Porque nenhum outro senão S. Paulo viu o corpo físico, natural e verdadeiro de Cristo segundo o modo próprio das manifestações da Ressurreição”.
 
E conclui:
“É por isso que S Paulo é um apóstolo – porque ele viu o Senhor ressuscitado, tal como fizeram S. Pedro e os outros. Mas é isto que faz também dele um «abortivo» ou nascido fora de tempo: viu Jesus ressuscitado por esta via absolutamente única e excepcional, porque o Senhor voltou à Terra, não para ser visto por todos, como acontecerá na sua Segunda Vinda, mas apenas para ser visto por aquele que quis consagrar como Apóstolo dos Gentios”.


 

domingo, fevereiro 03, 2013

Ano da Fé e indulgências.


O Ano da Fé, proclamado pelo Papa Bento XVI, teve início no dia 11 de Outubro e concluir-se-á a 24 de Novembro de 2013. Trata-se de uma oportunidade para “comemorar o dom precioso da fé” (Carta Porta Fidei, 8).

Para ajudar a alcançar esse objectivo, no dia 14 de Setembro de 2012, a Penitenciaria Apostólica emanou um Decreto, através do qual o Papa Bento XVI concede especiais indulgências, “a fim de que os fiéis sejam mais estimulados ao conhecimento e ao amor pela doutrina da Igreja católica e obtenham dela frutos espirituais mais abundantes”.

O Catecismo da Igreja Católica contém uma boa síntese da doutrina das Indulgências, que é oportuno recordar:

As indulgências

A doutrina e a prática das indulgências na Igreja estão estreitamente ligadas aos efeitos do sacramento da Penitência.

QUE É A INDULGÊNCIA?

«A indulgência é a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados cuja culpa já foi apagada; remissão que o fiel devidamente disposto obtém em certas e determinadas condições, pela acção da Igreja, a qual, enquanto dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos»[1] . «A indulgência é parcial ou plenária, consoante liberta parcialmente ou na totalidade da pena temporal devida ao pecado»[2].  «O fiel pode lucrar para si mesmo as indulgências [...], ou aplicá-las aos defuntos»[3] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1471).

AS PENAS DO PECADO

Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, deve ter-se presente que o pecado tem uma dupla consequência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, portanto, torna-nos incapazes da vida eterna, cuja privação se chama «pena eterna» do pecado. Por outro lado, todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório. Esta purificação liberta do que se chama «pena temporal» do pecado. Estas duas penas não devem ser consideradas como uma espécie de vingança, infligida por Deus, do exterior, mas como algo decorrente da própria natureza do pecado. Uma conversão procedente duma caridade fervorosa pode chegar à total purificação do pecador, de modo que nenhuma pena subsista[4] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1472).

O perdão do pecado e o restabelecimento da comunhão com Deus trazem consigo a abolição das penas eternas do pecado. Mas subsistem as penas temporais. O cristão deve esforçar-se por aceitar, como uma graça, estas penas temporais do pecado, suportando pacientemente os sofrimentos e as provações de toda a espécie e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte: deve aplicar-se, através de obras de misericórdia e de caridade, bem como pela oração e pelas diferentes práticas da penitência, a despojar-se completamente do «homem velho» e a revestir-se do «homem novo»[5] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1473).

O cristão que procura purificar-se do seu pecado e santificar-se com a ajuda da graça de Deus, não se encontra só. «A vida de cada um dos filhos de Deus está ligada de modo admirável, em Cristo e por Cristo, à vida de todos os outros irmãos cristãos, na unidade sobrenatural do corpo Místico de Cristo, como que numa pessoa mística»[6] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1474).

Na comunhão dos santos, «existe, portanto, entre os fiéis – os que já estão na pátria celeste, os que foram admitidos à expiação do Purgatório, e os que vivem ainda peregrinos na terra – um constante laço de amor e uma abundante permuta de todos os bens»[7]. Nesta admirável permuta, a santidade de um aproveita aos demais, muito para além do dano que o pecado de um tenha podido causar aos outros. Assim, o recurso à comunhão dos santos permite ao pecador contrito ser purificado mais depressa e mais eficazmente das penas do pecado (Catecismo da Igreja Católica, n. 1475).

A estes bens espirituais da comunhão dos santos, também lhes chamamos o tesouro da Igreja, «que não é um somatório de bens, como quando se trata das riquezas materiais acumuladas no decurso dos séculos, mas sim o preço infinito e inesgotável que têm junto de Deus as expiações e méritos de Cristo, nosso Senhor, oferecidos para que a humanidade seja liberta do pecado e chegue à comunhão com o Pai. É em Cristo, nosso Redentor, que se encontram em abundância as satisfações e os méritos da sua redenção»[8] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1476).

«Pertencem igualmente a este tesouro o preço verdadeiramente imenso, incomensurável e sempre novo que têm junto de Deus as orações e boas obras da bem‑aventurada Virgem Maria e de todos os santos, que se santificaram pela graça de Cristo, seguindo as suas pegadas, e que realizaram uma obra agradável ao Pai; de modo que, trabalhando pela sua própria salvação, igualmente cooperaram na salvação dos seus irmãos na unidade do corpo Místico»[9] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1477).

OBTER A INDULGÊNCIA DE DEUS MEDIANTE A IGREJA

A indulgência obtém-se mediante a Igreja que, em virtude do poder de ligar e desligar que lhe foi concedido por Jesus Cristo, intervém a favor dum cristão e lhe abre o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das penas temporais devidas pelos seus pecados. É assim que a Igreja não quer somente vir em ajuda deste cristão, mas também incitá-lo a obras de piedade, penitência e caridade[10] (Catecismo da Igreja Católica, n. 1478).

Uma vez que os fiéis defuntos, em vias de purificação, também são membros da mesma comunhão dos santos, nós podemos ajudá-los, entre outros modos, obtendo para eles indulgências, de modo que sejam libertos das penas temporais devidas pelos seus pecados (Catecismo da Igreja Católica, n. 1479).


[1] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, Normae. I: AAS 59 (1967) 21
[2] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, Normae. 2: AAS 59 (1967) 21.
[3] CIC can. 994.
[4] Cf. Concílio de Trento, Sess. 14ª, Canones de sacramento Paenitentiae. can. 12-13: DS 1712-1713; Id., Sess. 25ª, Decretum de purgatorio: DS 1820.
[5] Cf. Efésios4, 24.
[6] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, 5: AAS 59 (1967) 11.
[7] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, 5: AAS 59 (1967) 12.
[8] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, 5: AAS 59 (1967) 11
[9] Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, 5: AAS 59 (1967) 11-12
[10] Cf. Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina, 8: AAS 59 (1967) 16-17; Concílio de Trento, Sess. 25ª, Decretum de Indulgentiis: DS 1835.