Na Encíclica Redemptoris Mater, publicada em 25 de Março de 1987, o Beato João Paulo II reflectiu longamente sobre a fé de Maria.
Vale a pena reler estas palavras e aferir a sua mensagem. Numa homilia na Casa de Santa Marta, em 20 de Dezembro de 2013, o Papa Francisco, falando da presença de Maria no Calvário, aludiu às meditações de João Paulo II sobre a fé de Maria nesse momento.
Mas que dizia exactamente João Paulo II?
O
ponto em que o Papa Wojtyla fala de Maria no Calvário é o que se encontra no nº. 18. Mas
vale a pena ler toda a secção da Encíclica em que este número se insere.
Feliz daquela que acreditou
12. Logo depois de ter narrado a Anunciação, o
Evangelista São Lucas faz-nos de guia, seguindo os passos da Virgem em direcção
a "uma cidade de Judá" (Lc 1, 39). Segundo os estudiosos, esta cidade
devia ser a "Ain-Karim" de hoje, situada entre as montanhas, não
distante de Jerusalém. Maria dirigiu-se para lá "apressadamente",
para visitar Isabel, sua parente. O motivo desta visita há-de ser procurado
também no facto de Gabriel, durante a Anunciação, ter nomeado de maneira
significativa Isabel, que em idade avançada tinha concebido do marido Zacarias
um filho, pelo poder de Deus: "Isabel, tua parente, concebeu um filho, na
sua velhice; e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada
é impossível a Deus" (Lc 1, 36-37). O mensageiro divino tinha recorido ao
evento, que se realizara em Isabel, para responder à pergunta de Maria:
"Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?" (Lc 1, 34). Sim,
será possível exactamente pelo "poder do Altíssimo", como e ainda
mais do que no caso de Isabel.
Maria dirige-se, pois, impelida pela caridade, a casa
da sua parente. Quando aí entrou, Isabel, ao responder à sua saudação, tendo
sentido o menino estremecer de alegria no próprio seio, "cheia do Espírito
Santo", saúda por sua vez Maria em alta voz: "Bendita és tu entre as
mulheres e bendito o fruto do teu ventre" (cf. Lc 1, 40-42). Esta
proclamação e aclamação de Isabel veio a entrar na Ave-Maria, como continuação
da saudação do Anjo, tornando-se assim uma das orações mais frequentes da
Igreja. Mas são ainda mais significativas as palavras de Isabel, na pergunta
que se segue: "E donde me é dada a dita que venha ter comigo a mãe do meu
Senhor?" (Lc 1, 43). Isabel dá testemunho acerca de Maria: reconhece e
proclama que diante de si está a Mãe do Senhor, a Mãe do Messias. Neste
testemunho participa também o filho que Isabel traz no seio: "estremeceu
de alegria o menino no meu seio" (Lc 1, 44). O menino é o futuro João
Baptista, que, nas margens do Jordão, indicará em Jesus o Messias.
Todas as palavras, nesta saudação de Isabel, são
densas de significado; no entanto, parece ser algo de importância fundamental o
que ela diz no final: "Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento
as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor" (Lc 1, 45)[1]. Estas
palavras podem ser postas ao lado do apelativo "cheia de graça" da
saudação do Anjo. Em ambos os textos se revela um conteúdo mariológico
essencial, isto é, a verdade acerca de Maria, cuja presença se tornou real no
mistério de Cristo, precisamente porque ela "acreditou". A plenitude
de graça, anunciada pelo Anjo, significa o dom de Deus mesmo; a fé de Maria,
proclamada por Isabel aquando da Visitação, mostra como a Virgem de Nazaré
tinha correspondido a este dom.
13. "A Deus que Se revela é devida «a obediência
da fé» (Rom 16, 26; cf. Rom 1, 5; 2 Cor 10, 5-6), pela qual o homem se entrega
total e livremente a Deus", como ensina o Concílio Vaticano II[2]. Exactamente
esta descrição da fé teve em Maria uma actuação perfeita. O momento
"decisivo" foi a Anunciação; e as palavras de Isabel - "feliz
daquela que acreditou" - referem-se em primeiro lugar precisamente a esse
momento.
Na Anunciação, de facto, Maria entregou-se a Deus
completamente, manifestando "a obediência da fé" Àquele que lhe
falava, mediante o seu mensageiro, prestando-lhe o "obséquio pleno da
inteligência e da vontade"[3]. Ela
respondeu, pois, com todo o seu "eu" humano e feminino. Nesta
resposta de fé estava contida uma cooperação perfeita com a "prévia e
concomitante ajuda da graça divina" e uma disponibilidade perfeita à acção
do Espírito Santo, o qual "aperfeiçoa continuamente a fé mediante os seus
dons"[4].
A palavra de Deus vivo, anunciada pelo Anjo a Maria,
referia-se a ela própria: "Eis que conceberás e darás à luz um filho"
(Lc 1, 31). Acolhendo este anúncio, Maria devia tornar-se a "Mãe do
Senhor" e realizar-se-ia nela o mistério divino da Encarnação: "O Pai
das misericórdias quis que a aceitação por parte da que Ele predestinara para
mãe, precedesse a Encarnação"[5]. E
Maria dá esse consenso, depois de ter ouvido todas as palavras do mensageiro.
Diz: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra"
(Lc 1, 38). Este fiat de Maria -
"faça-se em mim" - decidiu, da parte humana, o cumprimento do
mistério divino. Existe uma consonância plena com as palavras do Filho que,
segundo a Carta aos Hebreus, ao vir a este mundo, diz ao Pai: "Não
quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo... Eis que venho...
para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hebr 10, 5-7). O mistério da Encarnação
realizou-se quando Maria pronunciou o seu "fiat": "Faça-se em mim segundo a tua palavra",
tornando possível, pelo que a ela competia no desígnio divino, a aceitação do
oferecimento do seu Filho.
Maria pronunciou este "fiat" mediante a fé. Foi mediante a fé que ela "se
entregou a Deus" sem reservas e "se consagrou totalmente, como
escrava do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho"[6]. E a este
Filho - como ensinam os Padres da Igreja - concebeu-o na mente antes de o
conceber no seio: precisamente mediante a fé![7] Com
justeza, portanto, Isabel louva Maria: "Feliz daquela que acreditou que
teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor".
Essas coisas já se tinham cumprido: Maria de Nazaré apresenta-se no limiar da
casa de Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta jubilosa
de Isabel: "A mãe do meu Senhor vem ter comigo!"
14. Por conseguinte, também a fé de Maria pode ser
comparada com a de Abraão, a quem o Apóstolo chama "nosso pai na fé"
(cf. Rom 4, 12). Na economia salvífica da Revelação divina, a fé de Abraão
constitui o início da Antiga Aliança; a fé de Maria, na Anunciação, dá início à
Nova Aliança. Assim como Abraão, "esperando contra toda a esperança,
acreditou que haveria de se tornar pai de muitos povos" (cf. Rom 4, 18),
também Maria, no momento da Anunciação, depois de ter declarado a sua condição
de virgem ("Como será isto, se eu não conheço homem?"), acreditou que
pelo poder do Altíssimo, por obra do Espírito Santo, se tornaria a mãe do Filho
de Deus segundo a revelação do Anjo: "Por isso mesmo o Santo que vai
nascer será chamado Filho de Deus" (Lc 1, 35).
Entretanto, as palavras de Isabel: "Feliz daquela
que acreditou" não se aplicam apenas àquele momento particular da
Anunciação. Esta representa, sem dúvida, o momento culminante da fé de Maria na
expectação de Cristo, mas é também o ponto de partida, no qual se inicia todo o
seu "itinerário para Deus", toda a sua caminhada de fé. E será ao
longo deste caminho, que a "obediência" por ela professada à palavra
da revelação divina irá ser actuada, de modo eminente e verdadeiramente heróico
ou, melhor dito, com um heroísmo de fé cada vez maior. E esta "obediência
da fé" da parte de Maria, durante toda a sua caminhada, terá
surpreendentes analogias com a fé de Abraão. Do mesmo modo que o patriarca do
Povo de Deus, também Maria, ao longo do caminho do seu fiat filial e materno, "esperando contra toda a esperança,
acreditou". Especialmente ao longo de algumas fases deste seu caminhar, a
bênção concedida "àquela que acreditou" tornar-se-á manifesta com
particular evidência. Acreditar quer dizer "abandonar-se" à própria
verdade da palavra de Deus vivo, sabendo e reconhecendo humildemente
"quanto são insondáveis os seus desígnios e imperscrutáveis as suas
vias" (Rom 11, 33). Maria, que pela eterna vontade do Altíssimo veio a
encontrar-se, por assim dizer, no próprio centro daquelas "imperscrutáveis
vias" e daqueles "insondáveis desígnios" de Deus, conforma-se a
eles na obscuridade da fé, aceitando plenamente e com o coração aberto tudo
aquilo que é disposição dos desígnios divinos.
15. Na Anunciação, quando Maria ouve falar do Filho de
que deve tornar-se mãe e ao qual "porá o nome de Jesus" (= Salvador),
fica também a conhecer que "o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai
David", que ele "reinará sobre a casa de Jacob eternamente e o seu
reinado não terá fim" (Lc 1, 32-33). Era neste sentido que se orientava
toda a esperança de Israel. O Messias prometido devia ser "grande"; e
também o mensageiro celeste anuncia que "será grande": grande, quer
pelo nome de Filho do Altíssimo, quer pelo facto de assumir a herança de David.
Há-de, portanto, ser rei, há-de reinar "sobre a casa de Jacob". Maria
tinha crescido no meio desta expectativa do seu povo: estaria ela em condições
de captar, no momento da Anunciação, qual o sentido essencial que podiam ter as
palavras do Anjo, e como devia ser entendido aquele "reino", que
"não terá fim"?
Se bem que, mediante a fé, ela possa ter-se sentido
naquele instante mãe do "Messias-rei", contudo, respondeu: "Eis
a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1, 38). Desde
o primeiro momento, Maria professou sobretudo "a obediência da fé",
abandonando-se àquele sentido que dava às palavras da Anunciação Aquele do qual
elas provinham: o próprio Deus.
16. No caminho da "obediência da fé", ainda,
Maria, um pouco mais tarde, ouve outras palavras: aquelas que foram
pronunciadas por Simeão, no templo de Jerusalém. Estava-se já no quadragésimo
dia depois do nascimento de Jesus, quando Maria e José, segundo a prescrição da
Lei de Moisés, "levaram o menino a Jerusalém, para o oferecer ao
Senhor" (Lc 2, 22). O nascimento verificara-se em condições de extrema
pobreza. Com efeito, sabemos através de São Lucas que, por ocasião do recenseamento
da população ordenado pelas autoridades romanas, Maria se dirigiu com José a
Belém; e não tendo encontrado "lugar na hospedaria", deu à luz o seu
Filho num estábulo e "reclinou-o numa manjedoura" (cf. Lc 2, 7).
Nossa Senhora dos Reis (portal sul da Igreja de Santa Maria de Belém) |
Um homem justo e piedoso, de nome Simeão,
aparece naquele momento dos inícios do "itinerário" da fé de Maria.
As suas palavras, sugeridas pelo Espírito Santo (cf. Lc 2, 25-27), confirmam a
verdade da Anunciação. Lemos, efectivamente, que ele "tomou nos seus
braços" o menino, ao qual - segundo a palavra do Anjo - deram o nome de
Jesus" (cf. Lc 2, 21). Aquilo que Simeão diz está conforme com o
significado deste nome, que quer dizer Salvador: "Deus é a salvação".
Dirigindo-se ao Senhor, ele exprime-se assim: "Os meus olhos viram a tua
salvação, que preparaste em favor de todos os povos; luz para iluminar as
nações e glória de Israel, teu povo" (Lc 2, 30-32). Nessa mesma altura,
porém, Simeão dirige-se a Maria com as seguintes palavras: "Ele é destinado
a ser ocasião de queda e de ressurgimento para muitos em Israel e a ser um
sinal de contradição... a fim de se revelarem os pensamentos de muitos
corações"; e acrescenta, com referência directa a Maria: "E tu mesma
terás a alma trespassada por uma espada" (Lc 2, 34-35). As palavras de
Simeão colocam sob uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo: Jesus
é o Salvador, é "luz para iluminar" os homens. Não foi isso que, de
algum modo, se manifestou na noite de Natal, quando os pastores vieram ao
estábulo? (cf. Lc 2, 8-20). Não foi isso o que se manifestou também e ainda
mais, aquando da vinda dos Magos do Oriente? (cf. Mt 2, 1-12) . Ao mesmo tempo,
porém, logo desde o início da sua vida, o Filho de Maria, e com ele a sua Mãe,
experimentarão em si mesmos a verdade daquelas outras palavras de Simeão:
"Sinal de contradição" (Lc 2, 34). Aquilo que Simeão diz,
apresenta-se como um segundo anúncio a Maria, uma vez que indica a dimensão
histórica concreta em que o Filho realizará a sua missão, ou seja, na
incompreensão e na dor. Se este outro anúncio confirma, por um lado, a sua fé
no cumprimento das promessas divinas da salvação, por outro, também lhe revela
que ela terá que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do
Salvador que sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor.
Com efeito, depois da visita dos Magos, depois de eles lhe terem rendido
homenagem ("prostrados, adoraram-No") e depois da oferta dos dons
(cf. Mt 2, 11), sucede que Maria, com o menino, tem de fugir para o Egipto sob
a proteção desvelada de José, porque Herodes estava a "procurar o menino
para o matar" (cf. Mt 2, 13). E teriam de ficar no Egipto até à morte de
Herodes (cf. Mt 2, 15).
17. Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno
da Sagrada Família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela
que "acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do
Senhor" (Lc 1, 45) vive no dia-a-dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a
quem deu o nome de Jesus está quotidianamente ao seu lado; assim, no contacto
com ele, usa certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a
ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo, em
Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de Jesus,
foi chamado pelo Anjo "Filho do Altíssimo" (cf. Lc 1, 32). Maria sabe
que o concebeu e deu à luz "sem ter conhecido homem", por obra do
Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre ela estendeu a sua sombra
(cf. Lc 1, 35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem ocultava
a presença de Deus (cf. Ex 24, 16; 40, 34-35; 1 Rs 8, 10-12). Maria sabe,
portanto, que o Filho, por ela dado à luz virginalmente, é precisamente aquele
"Santo", "o Filho de Deus" de que lhe havia falado o Anjo.
Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de
Nazaré, também a vida de Maria "está escondida com Cristo em Deus"
(cf. Col 3, 3) mediante a fé. A fé, efectivamente, é um contacto com o mistério
de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o mistério
inefável de Deus que se fez homem, mistério que supera tudo aquilo que foi
revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da Anunciação, a mente da
Virgem-Mãe foi introduzida na "novidade" radical de auto-revelação de
Deus e tornada cônscia do mistério. Ela é a primeira daqueles
"pequeninos" dos quais um dia Jesus dirá: "Pai, (...) escondeste
estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos" (Mt
11, 25). Na verdade, "ninguém conhece o Filho senão o Pai" (Mt 11,
27). Como poderá então Maria "conhecer o Filho"? Certamente, não como
o Pai O conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai
"o quis revelar" (cf. Mt 11, 26-27; 1 Cor 2, 11). Se, porém, desde o
momento da Anunciação lhe foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece
completamente, como Aquele que o gera no "hoje" eterno (cf. Sl 2, 7),
então Maria, a Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e
mediante a fé! Portanto, é feliz porque "acreditou"; e acredita dia-a-dia,
no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância de Jesus
e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando ele "lhes
era submisso" (Lc 2, 51): submisso a Maria e também a José, porque José,
diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e era por isso que o Filho
de Maria era tido pela gente do lugar como "o filho do carpinteiro"
(Mt 13, 55).
A Mãe, por conseguinte, lembrada de tudo o que lhe
havia sido dito acerca deste seu Filho, na Anunciação e nos acontecimentos
sucessivos, é portadora em si mesma da "novidade" radical da fé: o
início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da
jubilosa nova.
Não é difícil, porém, perceber naquele início um
particular aperto do coração, unido a uma espécie de "noite da fé" -
para usar as palavras de São João da Cruz - como que um "véu" através
do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o
mistério[8]. Foi
deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na
intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à
medida em que Jesus "crescia em sabedoria (...) e graça, diante de Deus e
dos homens" (Lc 2, 52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens
a predilecção que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas
admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José, vivia na
mesma casa em Nazaré.
Todavia, na ocasião em que o reencontraram no templo,
à pergunta da Mãe: "Por que procedeste assim connosco?", Jesus -
então menino de doze anos - respondeu: "Não sabíeis que devo ocupar-me das
coisas de meu Pai?"; e o Evangelista acrescenta: "Mas eles (José e
Maria) não entenderam as suas palavras" (Lc 2, 48-50). Portanto, Jesus
tinha a consciência de que "só o Pai conhece o Filho" (cf. Mt 11,
27); tanto assim, que até aquela a quem tinha sido revelado mais profundamente
o mistério da sua filiação divina, a sua Mãe, vivia na intimidade com este
mistério somente mediante a fé! Encontrando-se constantemente ao lado do Filho,
sob o mesmo tecto, e "conservando fielmente a união com o Filho" Ela
"avançava na peregrinação da fé", como acentua o Concílio[9]. E
assim sucedeu também durante a vida pública de Cristo (cf. Mc 3, 21-35) pelo
que, dia a dia, se cumpriram nela as palavras de louvor pronunciadas por
Isabel, aquando da Visitação: "Feliz daquela que acreditou".
18. Estas palavras de louvor atingem a plenitude do
seu significado, quando Maria está aos pés da Cruz do seu Filho (cf. Jo 19,
25). O Concílio Vaticano II afirma que isso "aconteceu não sem um desígnio
divino": "padecendo acerbamente com o seu Unigénito, associando-se
com ânimo maternal ao seu sacrifício e consentindo com amor na imolação da
vítima que ela havia gerado", foi deste modo que Maria "conservou
fielmente a união com seu Filho até à Cruz"[10], a
união mediante a fé: a mesma fé com a qual tinha acolhido a revelação do Anjo
no momento da Anunciação. Nesse momento ela tinha também ouvido dizer:
"será grande (...), o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David
(...), reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim"
(Lc 1, 32-33).
E agora, estando ali aos pés da Cruz, Maria é
testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal dessas palavras. O seu
Filho agoniza, suspenso naquele madeiro como um condenado. "Desprezado e
rejeitado pelos homens; homem das dores...; era menosprezado e nenhum caso
fazíamos dele" (...), como que destruído (cf. Is 53, 3-5). Quão grande e
quanto foi heroica então a "obediência da fé" demonstrada por Maria
diante dos "insondáveis desígnios" de Deus! Como ela se
"abandonou nas mãos de Deus" sem reservas, "prestando o pleno
obséquio da inteligência e da vontade"[11] Àquele
cujas "vias são imperscrutáveis!" (cf. Rom 11, 33). E, ao mesmo
tempo, quanto se mostra potente a acção da graça na sua alma e quanto é
penetrante a influência do Espírito Santo, da sua luz e da sua virtude!
Mediante essa sua fé, Maria está perfeitamente unida a
Cristo no seu despojamento. Com efeito, "Jesus Cristo, (...) subsistindo
na natureza divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus; mas
despojou-se a si mesmo tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos
homens": precisamente sobre o Gólgota "humilhou-se a si mesmo,
fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz" (cf. Flp 2, 5-8). E aos
pés da Cruz, Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse
despojamento. Isso constitui, talvez, a mais profunda "kénose" da fé
na história da humanidade. Mediante a fé, a Mãe participa na morte do Filho, na
sua morte redentora; mas, bem diferente da fé dos discípulos, que se davam à fuga,
a fé de Maria era muito mais esclarecida. Sobre o Gólgota, Jesus confirmou
definitivamente, por meio da Cruz, que era "o sinal de contradição"
predito por Simeão. Ao mesmo tempo, cumpriram-se aí as palavras dirigidas pelo
mesmo ancião a Maria: "E tu mesma terás a alma trespassada por uma
espada"[12].
19. Sim, verdadeiramente, "feliz daquela que
acreditou"! Estas palavras, pronunciadas por Isabel já depois da
Anunciação, parecem ressoar aqui, aos pés da Cruz, com suprema eloquência; e a
força que elas encerram, torna-se penetrante. Da Cruz ou, por assim dizer, do
próprio coração do mistério da Redenção, se estende o alcance e se dilata a
perspectiva daquelas palavras que louvam a sua fé. Elas remontam "até ao
princípio" e, como participação no sacrifício de Cristo, novo Adão,
tornam-se, em certo sentido, o contrabalanço da desobediência e da
incredulidade presentes no pecado dos nossos primeiros pais. Assim o ensinam os
Padres da Igreja, especialmente Santo Ireneu, citado na Constituição Lumen Gentium: "O nó da desobediência
de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a Virgem Eva atou,
com a sua incredulidade, a Virgem Maria desatou-o com a sua fé"[13]. À
luz desta comparação com Eva, os mesmos Padres - como recorda ainda o mesmo Concílio
- chamam a Maria "mãe dos vivos" e afirmam muitas vezes: "A
morte veio por Eva, a vida por meio de Maria"[14].
Com razão, portanto, podemos encontrar na expressão
"feliz daquela que acreditou" como que uma chave que nos abre o
acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como
"cheia da graça". Se como "cheia de graça" ela esteve
eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele
participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: "avançou na
peregrinação da fé" e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas directa e
eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda
continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela está presente
entre os homens. Deste modo, através do mistério do Filho, esclarece-se também
o mistério da Mãe.
[1] Cf Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, III, 3: PL 40, 398; Sermo 25,
7: PL 46, 937 s.
[2] Dei
Verbum, n. 5.
[3] Ibid.
[4] Lumen
Gentium, 56.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Cf. Ibid.,
n. 35; 55; Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, III, 5: PL
40, 598; Sermo 215, 4: PL 38, 1074; Sermo 196,
1: PL 38, 1019; De peccatorum meritis et remissione.I, 29, 57: PL 44,
142;Sermo 25, 7: PL 46, 937 s.; S. Leão Magno, Tractatus
21, De natale Domini, I: CCL 158, 86.
[8] Cf. Subida
do Monte Carmelo, II, cap. 5, 4-6.
[9] Cf. Lumen
Gentium, 58.
[10] Ibid.
[11] Dei
Verbum, n. 5.
[12] Cf S.
Bernardo, In Dominica infra octavam Assumptionis Sermo, 14: S.
Bernardi Opera, V,1968, 275.
[13] Cf. Santo
Ireneu, Adversus Haereses, III, 22, 4: S. Ch.
211, 468-444; cf. Lumen Gentium, 56, nota 6.
[14] Cf. Lumen
Gentium, 56.
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