domingo, dezembro 29, 2013

A fé de Maria

Na Encíclica Redemptoris Mater, publicada em 25 de Março de 1987, o Beato João Paulo II reflectiu longamente sobre a fé de Maria. 

Vale a pena reler estas palavras e aferir a sua mensagem. Numa homilia na Casa de Santa Marta, em 20 de Dezembro de 2013, o Papa Francisco, falando da presença de Maria no Calvário, aludiu às meditações de João Paulo II sobre a fé de Maria nesse momento. 

Mas que dizia exactamente João Paulo II? 

O ponto em que o Papa Wojtyla fala de Maria no Calvário é o que se encontra no nº. 18. Mas vale a pena ler toda a secção da Encíclica em que este número se insere.

Feliz daquela que acreditou


12. Logo depois de ter narrado a Anunciação, o Evangelista São Lucas faz-nos de guia, seguindo os passos da Virgem em direcção a "uma cidade de Judá" (Lc 1, 39). Segundo os estudiosos, esta cidade devia ser a "Ain-Karim" de hoje, situada entre as montanhas, não distante de Jerusalém. Maria dirigiu-se para lá "apressadamente", para visitar Isabel, sua parente. O motivo desta visita há-de ser procurado também no facto de Gabriel, durante a Anunciação, ter nomeado de maneira significativa Isabel, que em idade avançada tinha concebido do marido Zacarias um filho, pelo poder de Deus: "Isabel, tua parente, concebeu um filho, na sua velhice; e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus" (Lc 1, 36-37). O mensageiro divino tinha recorido ao evento, que se realizara em Isabel, para responder à pergunta de Maria: "Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?" (Lc 1, 34). Sim, será possível exactamente pelo "poder do Altíssimo", como e ainda mais do que no caso de Isabel.
Maria dirige-se, pois, impelida pela caridade, a casa da sua parente. Quando aí entrou, Isabel, ao responder à sua saudação, tendo sentido o menino estremecer de alegria no próprio seio, "cheia do Espírito Santo", saúda por sua vez Maria em alta voz: "Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre" (cf. Lc 1, 40-42). Esta proclamação e aclamação de Isabel veio a entrar na Ave-Maria, como continuação da saudação do Anjo, tornando-se assim uma das orações mais frequentes da Igreja. Mas são ainda mais significativas as palavras de Isabel, na pergunta que se segue: "E donde me é dada a dita que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?" (Lc 1, 43). Isabel dá testemunho acerca de Maria: reconhece e proclama que diante de si está a Mãe do Senhor, a Mãe do Messias. Neste testemunho participa também o filho que Isabel traz no seio: "estremeceu de alegria o menino no meu seio" (Lc 1, 44). O menino é o futuro João Baptista, que, nas margens do Jordão, indicará em Jesus o Messias.
Todas as palavras, nesta saudação de Isabel, são densas de significado; no entanto, parece ser algo de importância fundamental o que ela diz no final: "Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor" (Lc 1, 45)[1]. Estas palavras podem ser postas ao lado do apelativo "cheia de graça" da saudação do Anjo. Em ambos os textos se revela um conteúdo mariológico essencial, isto é, a verdade acerca de Maria, cuja presença se tornou real no mistério de Cristo, precisamente porque ela "acreditou". A plenitude de graça, anunciada pelo Anjo, significa o dom de Deus mesmo; a fé de Maria, proclamada por Isabel aquando da Visitação, mostra como a Virgem de Nazaré tinha correspondido a este dom.
13. "A Deus que Se revela é devida «a obediência da fé» (Rom 16, 26; cf. Rom 1, 5; 2 Cor 10, 5-6), pela qual o homem se entrega total e livremente a Deus", como ensina o Concílio Vaticano II[2]. Exactamente esta descrição da fé teve em Maria uma actuação perfeita. O momento "decisivo" foi a Anunciação; e as palavras de Isabel - "feliz daquela que acreditou" - referem-se em primeiro lugar precisamente a esse momento.
Na Anunciação, de facto, Maria entregou-se a Deus completamente, manifestando "a obediência da fé" Àquele que lhe falava, mediante o seu mensageiro, prestando-lhe o "obséquio pleno da inteligência e da vontade"[3]. Ela respondeu, pois, com todo o seu "eu" humano e feminino. Nesta resposta de fé estava contida uma cooperação perfeita com a "prévia e concomitante ajuda da graça divina" e uma disponibilidade perfeita à acção do Espírito Santo, o qual "aperfeiçoa continuamente a fé mediante os seus dons"[4].
A palavra de Deus vivo, anunciada pelo Anjo a Maria, referia-se a ela própria: "Eis que conceberás e darás à luz um filho" (Lc 1, 31). Acolhendo este anúncio, Maria devia tornar-se a "Mãe do Senhor" e realizar-se-ia nela o mistério divino da Encarnação: "O Pai das misericórdias quis que a aceitação por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a Encarnação"[5]. E Maria dá esse consenso, depois de ter ouvido todas as palavras do mensageiro. Diz: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1, 38). Este fiat de Maria - "faça-se em mim" - decidiu, da parte humana, o cumprimento do mistério divino. Existe uma consonância plena com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir a este mundo, diz ao Pai: "Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo... Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hebr 10, 5-7). O mistério da Encarnação realizou-se quando Maria pronunciou o seu "fiat": "Faça-se em mim segundo a tua palavra", tornando possível, pelo que a ela competia no desígnio divino, a aceitação do oferecimento do seu Filho.
Maria pronunciou este "fiat" mediante a fé. Foi mediante a fé que ela "se entregou a Deus" sem reservas e "se consagrou totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho"[6]. E a este Filho - como ensinam os Padres da Igreja - concebeu-o na mente antes de o conceber no seio: precisamente mediante a fé![7] Com justeza, portanto, Isabel louva Maria: "Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor". Essas coisas já se tinham cumprido: Maria de Nazaré apresenta-se no limiar da casa de Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta jubilosa de Isabel: "A mãe do meu Senhor vem ter comigo!"
14. Por conseguinte, também a fé de Maria pode ser comparada com a de Abraão, a quem o Apóstolo chama "nosso pai na fé" (cf. Rom 4, 12). Na economia salvífica da Revelação divina, a fé de Abraão constitui o início da Antiga Aliança; a fé de Maria, na Anunciação, dá início à Nova Aliança. Assim como Abraão, "esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitos povos" (cf. Rom 4, 18), também Maria, no momento da Anunciação, depois de ter declarado a sua condição de virgem ("Como será isto, se eu não conheço homem?"), acreditou que pelo poder do Altíssimo, por obra do Espírito Santo, se tornaria a mãe do Filho de Deus segundo a revelação do Anjo: "Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus" (Lc 1, 35).
Entretanto, as palavras de Isabel: "Feliz daquela que acreditou" não se aplicam apenas àquele momento particular da Anunciação. Esta representa, sem dúvida, o momento culminante da fé de Maria na expectação de Cristo, mas é também o ponto de partida, no qual se inicia todo o seu "itinerário para Deus", toda a sua caminhada de fé. E será ao longo deste caminho, que a "obediência" por ela professada à palavra da revelação divina irá ser actuada, de modo eminente e verdadeiramente heróico ou, melhor dito, com um heroísmo de fé cada vez maior. E esta "obediência da fé" da parte de Maria, durante toda a sua caminhada, terá surpreendentes analogias com a fé de Abraão. Do mesmo modo que o patriarca do Povo de Deus, também Maria, ao longo do caminho do seu fiat filial e materno, "esperando contra toda a esperança, acreditou". Especialmente ao longo de algumas fases deste seu caminhar, a bênção concedida "àquela que acreditou" tornar-se-á manifesta com particular evidência. Acreditar quer dizer "abandonar-se" à própria verdade da palavra de Deus vivo, sabendo e reconhecendo humildemente "quanto são insondáveis os seus desígnios e imperscrutáveis as suas vias" (Rom 11, 33). Maria, que pela eterna vontade do Altíssimo veio a encontrar-se, por assim dizer, no próprio centro daquelas "imperscrutáveis vias" e daqueles "insondáveis desígnios" de Deus, conforma-se a eles na obscuridade da fé, aceitando plenamente e com o coração aberto tudo aquilo que é disposição dos desígnios divinos.
15. Na Anunciação, quando Maria ouve falar do Filho de que deve tornar-se mãe e ao qual "porá o nome de Jesus" (= Salvador), fica também a conhecer que "o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David", que ele "reinará sobre a casa de Jacob eternamente e o seu reinado não terá fim" (Lc 1, 32-33). Era neste sentido que se orientava toda a esperança de Israel. O Messias prometido devia ser "grande"; e também o mensageiro celeste anuncia que "será grande": grande, quer pelo nome de Filho do Altíssimo, quer pelo facto de assumir a herança de David. Há-de, portanto, ser rei, há-de reinar "sobre a casa de Jacob". Maria tinha crescido no meio desta expectativa do seu povo: estaria ela em condições de captar, no momento da Anunciação, qual o sentido essencial que podiam ter as palavras do Anjo, e como devia ser entendido aquele "reino", que "não terá fim"?
Se bem que, mediante a fé, ela possa ter-se sentido naquele instante mãe do "Messias-rei", contudo, respondeu: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1, 38). Desde o primeiro momento, Maria professou sobretudo "a obediência da fé", abandonando-se àquele sentido que dava às palavras da Anunciação Aquele do qual elas provinham: o próprio Deus.
16. No caminho da "obediência da fé", ainda, Maria, um pouco mais tarde, ouve outras palavras: aquelas que foram pronunciadas por Simeão, no templo de Jerusalém. Estava-se já no quadragésimo dia depois do nascimento de Jesus, quando Maria e José, segundo a prescrição da Lei de Moisés, "levaram o menino a Jerusalém, para o oferecer ao Senhor" (Lc 2, 22). O nascimento verificara-se em condições de extrema pobreza. Com efeito, sabemos através de São Lucas que, por ocasião do recenseamento da população ordenado pelas autoridades romanas, Maria se dirigiu com José a Belém; e não tendo encontrado "lugar na hospedaria", deu à luz o seu Filho num estábulo e "reclinou-o numa manjedoura" (cf. Lc 2, 7).
Nossa Senhora dos Reis (portal sul da Igreja de Santa Maria de Belém)

Um homem justo e piedoso, de nome Simeão, aparece naquele momento dos inícios do "itinerário" da fé de Maria. As suas palavras, sugeridas pelo Espírito Santo (cf. Lc 2, 25-27), confirmam a verdade da Anunciação. Lemos, efectivamente, que ele "tomou nos seus braços" o menino, ao qual - segundo a palavra do Anjo - deram o nome de Jesus" (cf. Lc 2, 21). Aquilo que Simeão diz está conforme com o significado deste nome, que quer dizer Salvador: "Deus é a salvação". Dirigindo-se ao Senhor, ele exprime-se assim: "Os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste em favor de todos os povos; luz para iluminar as nações e glória de Israel, teu povo" (Lc 2, 30-32). Nessa mesma altura, porém, Simeão dirige-se a Maria com as seguintes palavras: "Ele é destinado a ser ocasião de queda e de ressurgimento para muitos em Israel e a ser um sinal de contradição... a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações"; e acrescenta, com referência directa a Maria: "E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada" (Lc 2, 34-35). As palavras de Simeão colocam sob uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo: Jesus é o Salvador, é "luz para iluminar" os homens. Não foi isso que, de algum modo, se manifestou na noite de Natal, quando os pastores vieram ao estábulo? (cf. Lc 2, 8-20). Não foi isso o que se manifestou também e ainda mais, aquando da vinda dos Magos do Oriente? (cf. Mt 2, 1-12) . Ao mesmo tempo, porém, logo desde o início da sua vida, o Filho de Maria, e com ele a sua Mãe, experimentarão em si mesmos a verdade daquelas outras palavras de Simeão: "Sinal de contradição" (Lc 2, 34). Aquilo que Simeão diz, apresenta-se como um segundo anúncio a Maria, uma vez que indica a dimensão histórica concreta em que o Filho realizará a sua missão, ou seja, na incompreensão e na dor. Se este outro anúncio confirma, por um lado, a sua fé no cumprimento das promessas divinas da salvação, por outro, também lhe revela que ela terá que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do Salvador que sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor. Com efeito, depois da visita dos Magos, depois de eles lhe terem rendido homenagem ("prostrados, adoraram-No") e depois da oferta dos dons (cf. Mt 2, 11), sucede que Maria, com o menino, tem de fugir para o Egipto sob a proteção desvelada de José, porque Herodes estava a "procurar o menino para o matar" (cf. Mt 2, 13). E teriam de ficar no Egipto até à morte de Herodes (cf. Mt 2, 15).
17. Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno da Sagrada Família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela que "acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor" (Lc 1, 45) vive no dia-a-dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a quem deu o nome de Jesus está quotidianamente ao seu lado; assim, no contacto com ele, usa certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo, em Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de Jesus, foi chamado pelo Anjo "Filho do Altíssimo" (cf. Lc 1, 32). Maria sabe que o concebeu e deu à luz "sem ter conhecido homem", por obra do Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre ela estendeu a sua sombra (cf. Lc 1, 35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem ocultava a presença de Deus (cf. Ex 24, 16; 40, 34-35; 1 Rs 8, 10-12). Maria sabe, portanto, que o Filho, por ela dado à luz virginalmente, é precisamente aquele "Santo", "o Filho de Deus" de que lhe havia falado o Anjo.
Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de Nazaré, também a vida de Maria "está escondida com Cristo em Deus" (cf. Col 3, 3) mediante a fé. A fé, efectivamente, é um contacto com o mistério de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o mistério inefável de Deus que se fez homem, mistério que supera tudo aquilo que foi revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da Anunciação, a mente da Virgem-Mãe foi introduzida na "novidade" radical de auto-revelação de Deus e tornada cônscia do mistério. Ela é a primeira daqueles "pequeninos" dos quais um dia Jesus dirá: "Pai, (...) escondeste estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11, 25). Na verdade, "ninguém conhece o Filho senão o Pai" (Mt 11, 27). Como poderá então Maria "conhecer o Filho"? Certamente, não como o Pai O conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai "o quis revelar" (cf. Mt 11, 26-27; 1 Cor 2, 11). Se, porém, desde o momento da Anunciação lhe foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece completamente, como Aquele que o gera no "hoje" eterno (cf. Sl 2, 7), então Maria, a Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e mediante a fé! Portanto, é feliz porque "acreditou"; e acredita dia-a-dia, no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância de Jesus e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando ele "lhes era submisso" (Lc 2, 51): submisso a Maria e também a José, porque José, diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e era por isso que o Filho de Maria era tido pela gente do lugar como "o filho do carpinteiro" (Mt 13, 55).
A Mãe, por conseguinte, lembrada de tudo o que lhe havia sido dito acerca deste seu Filho, na Anunciação e nos acontecimentos sucessivos, é portadora em si mesma da "novidade" radical da fé: o início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova.
Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de "noite da fé" - para usar as palavras de São João da Cruz - como que um "véu" através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério[8]. Foi deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à medida em que Jesus "crescia em sabedoria (...) e graça, diante de Deus e dos homens" (Lc 2, 52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens a predilecção que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José, vivia na mesma casa em Nazaré.
Todavia, na ocasião em que o reencontraram no templo, à pergunta da Mãe: "Por que procedeste assim connosco?", Jesus - então menino de doze anos - respondeu: "Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?"; e o Evangelista acrescenta: "Mas eles (José e Maria) não entenderam as suas palavras" (Lc 2, 48-50). Portanto, Jesus tinha a consciência de que "só o Pai conhece o Filho" (cf. Mt 11, 27); tanto assim, que até aquela a quem tinha sido revelado mais profundamente o mistério da sua filiação divina, a sua Mãe, vivia na intimidade com este mistério somente mediante a fé! Encontrando-se constantemente ao lado do Filho, sob o mesmo tecto, e "conservando fielmente a união com o Filho" Ela "avançava na peregrinação da fé", como acentua o Concílio[9]. E assim sucedeu também durante a vida pública de Cristo (cf. Mc 3, 21-35) pelo que, dia a dia, se cumpriram nela as palavras de louvor pronunciadas por Isabel, aquando da Visitação: "Feliz daquela que acreditou".
18. Estas palavras de louvor atingem a plenitude do seu significado, quando Maria está aos pés da Cruz do seu Filho (cf. Jo 19, 25). O Concílio Vaticano II afirma que isso "aconteceu não sem um desígnio divino": "padecendo acerbamente com o seu Unigénito, associando-se com ânimo maternal ao seu sacrifício e consentindo com amor na imolação da vítima que ela havia gerado", foi deste modo que Maria "conservou fielmente a união com seu Filho até à Cruz"[10], a união mediante a fé: a mesma fé com a qual tinha acolhido a revelação do Anjo no momento da Anunciação. Nesse momento ela tinha também ouvido dizer: "será grande (...), o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David (...), reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim" (Lc 1, 32-33).
E agora, estando ali aos pés da Cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal dessas palavras. O seu Filho agoniza, suspenso naquele madeiro como um condenado. "Desprezado e rejeitado pelos homens; homem das dores...; era menosprezado e nenhum caso fazíamos dele" (...), como que destruído (cf. Is 53, 3-5). Quão grande e quanto foi heroica então a "obediência da fé" demonstrada por Maria diante dos "insondáveis desígnios" de Deus! Como ela se "abandonou nas mãos de Deus" sem reservas, "prestando o pleno obséquio da inteligência e da vontade"[11] Àquele cujas "vias são imperscrutáveis!" (cf. Rom 11, 33). E, ao mesmo tempo, quanto se mostra potente a acção da graça na sua alma e quanto é penetrante a influência do Espírito Santo, da sua luz e da sua virtude!
Mediante essa sua fé, Maria está perfeitamente unida a Cristo no seu despojamento. Com efeito, "Jesus Cristo, (...) subsistindo na natureza divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus; mas despojou-se a si mesmo tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens": precisamente sobre o Gólgota "humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz" (cf. Flp 2, 5-8). E aos pés da Cruz, Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse despojamento. Isso constitui, talvez, a mais profunda "kénose" da fé na história da humanidade. Mediante a fé, a Mãe participa na morte do Filho, na sua morte redentora; mas, bem diferente da fé dos discípulos, que se davam à fuga, a fé de Maria era muito mais esclarecida. Sobre o Gólgota, Jesus confirmou definitivamente, por meio da Cruz, que era "o sinal de contradição" predito por Simeão. Ao mesmo tempo, cumpriram-se aí as palavras dirigidas pelo mesmo ancião a Maria: "E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada"[12].
19. Sim, verdadeiramente, "feliz daquela que acreditou"! Estas palavras, pronunciadas por Isabel já depois da Anunciação, parecem ressoar aqui, aos pés da Cruz, com suprema eloquência; e a força que elas encerram, torna-se penetrante. Da Cruz ou, por assim dizer, do próprio coração do mistério da Redenção, se estende o alcance e se dilata a perspectiva daquelas palavras que louvam a sua fé. Elas remontam "até ao princípio" e, como participação no sacrifício de Cristo, novo Adão, tornam-se, em certo sentido, o contrabalanço da desobediência e da incredulidade presentes no pecado dos nossos primeiros pais. Assim o ensinam os Padres da Igreja, especialmente Santo Ireneu, citado na Constituição Lumen Gentium: "O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a Virgem Eva atou, com a sua incredulidade, a Virgem Maria desatou-o com a sua fé"[13]. À luz desta comparação com Eva, os mesmos Padres - como recorda ainda o mesmo Concílio - chamam a Maria "mãe dos vivos" e afirmam muitas vezes: "A morte veio por Eva, a vida por meio de Maria"[14].
Com razão, portanto, podemos encontrar na expressão "feliz daquela que acreditou" como que uma chave que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como "cheia da graça". Se como "cheia de graça" ela esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: "avançou na peregrinação da fé" e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas directa e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela está presente entre os homens. Deste modo, através do mistério do Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe.



[1] Cf Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, III, 3: PL 40, 398; Sermo 25, 7: PL 46, 937 s.
[2] Dei Verbum, n. 5.
[3] Ibid.
[4] Lumen Gentium, 56.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Cf. Ibid., n. 35; 55; Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, III, 5: PL 40, 598; Sermo 215, 4: PL 38, 1074; Sermo 196, 1: PL 38, 1019; De peccatorum meritis et remissione.I, 29, 57: PL 44, 142;Sermo 25, 7: PL 46, 937 s.; S. Leão Magno, Tractatus 21, De natale Domini, I: CCL 158, 86.
[8] Cf. Subida do Monte Carmelo, II, cap. 5, 4-6. 
[9] Cf. Lumen Gentium, 58. 
[10] Ibid.
[11] Dei Verbum, n. 5.
[12] Cf S. Bernardo, In Dominica infra octavam Assumptionis Sermo, 14: S. Bernardi Opera, V,1968, 275.
[13] Cf. Santo Ireneu, Adversus Haereses, III, 22, 4: S. Ch. 211, 468-444; cf. Lumen Gentium, 56, nota 6.
[14] Cf. Lumen Gentium, 56. 

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos (II)

III. DESENVOLVIMENTO DO TEMA DA CONTINÊNCIA NA IGREJA LATINA 
(continuação)


Continuamos a publicação do artigo do Cardeal Stickler, Celibato eclesiástico – história e fundamentos teológicos, cuja primeira parte pode ser lida aqui

O testemunho da Igreja de Roma
No contexto do testemunho africano sobre o celibato, já escutamos uma voz muito autorizada por parte de Roma: o legado pontifício Faustino, que manifestou em Cartago a plena correspondência de Roma sobre essa questão, suscitada ali incidentalmente.
Roma, aliás, já tinha enviado uma carta aos bispos da África, na época do Papa Sirício, que comunicava as decisões do Sínodo Romano de 386, nas quais se insistia novamente em algumas importantes disposições apostólicas. Esta carta tinha sido comunicada durante o Concílio de Telepte do ano 418. A última parte da mesma (can. 9.) trata precisamente da continência do clero.
Com esse documento, introduzimo-nos no segundo conjunto de testemunhos sobre o celibato – presentes nas disposições dos Romanos Pontífices sobre esse tema – que tem claramente maior peso, não só quanto à consciência da tradição observada pela Igreja Universal, mas também para o desenvolvimento posterior e para a observância do celibato clerical.
Uma afirmação geral sobre a importância da posição de Roma sobre qualquer assunto e, portanto, também sobre o celibato, é proveniente de Santo Ireneu, que, tendo sido discípulo de São Policarpo, estava relacionado com a tradição joânica, que ele – como bispo de Lyon, a partir do ano 178 – transmitia também para a Igreja na Europa. Se, na sua principal obra, Contra as heresias, afirma que a tradição apostólica é preservada na Igreja de Roma, fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo, e é por isso que todas as outras igrejas devem concordar com ela, podemos dizer que isso vale também para a tradição sobre a continência dos eclesiásticos.
Os primeiros testemunhos explícitos a este respeito provêm de dois Papas: Sirício e Inocêncio I. Ao predecessor do primeiro, o Papa Dâmaso, tinham sido apresentadas pelo bispo Himério de Tarragona algumas questões às quais só o seu sucessor, ou seja, Sirício, tinha dado uma resposta. Quando perguntado sobre a obrigação por parte dos clérigos maiores à continência, o Papa respondeu na carta Directa, em 385, dizendo que os sacerdotes e diáconos que, depois da Ordenação, geram filhos, actuam contrariamente a uma lei irrenunciável, que obriga aos clérigos maiores desde o início da Igreja. O apelo ao facto de que, no Antigo Testamento, os sacerdotes e levitas podiam usar do matrimónio, fora do tempo do seu serviço no Templo, foi refutada pelo Novo Testamento, no qual os clérigos maiores devem prestar culto sagrado todos os dias; por isso a partir do dia da sua ordenação, devem viver continuamente a continência.
Uma segunda carta do mesmo Papa, referindo-se à mesma questão, e que já mencionámos, é a que foi enviada aos bispos africanos em 386, e que relatou as deliberações de um Sínodo Romano. Essa carta é especialmente ilustrativa sobre o tema do celibato. O Papa assinalou, acima de tudo, que os pontos tratados no Sínodo não se referem a novas obrigações, mas sim a pontos de fé e de disciplina, que, por causa da preguiça e da inércia de alguns, têm sido negligenciados. Devem, portanto, ser revitalizados, pois, segundo as palavras da Sagrada Escritura – “Sê forte e observa as nossas tradições, que recebestes, quer oralmente, quer por escrito” (2 Tes 2, 15) - trata-se de disposições dos Padres Apostólicos. O Sínodo Romano está consciente, portanto, de que as tradições recebidas apenas oralmente são vinculativas. E aludindo ao juízo divino, observa que todos os bispos católicos devem observar as nove disposições que são enumeradas.
A nona dessas é exposta com detalhe: “Os sacerdotes e levitas não devem ter relações sexuais com assuas esposas, porque devem estar ocupados diariamente com o seu ministério sacerdotal”.
S. Paulo escreveu aos Coríntios que eles deviam abster-se das relações sexuais para se dedicar à oração (1 Cor 7, 5). Se aos leigos a continência é imposta, a fim de serem ouvidos na sua oração, com muito maior razão deve estar disposto em todo o momento o sacerdote para oferecer, com castidade verdadeira, o Sacrifício, e para administrar o Baptismo. Depois de outras considerações ascéticas, é rejeitada – que eu saiba, pela primeira vez no Ocidente – pelos oitenta bispos reunidos, uma objecção, ainda hoje viva, que visa provar a continuidade no uso do matrimónio com base nas palavras do Apóstolo S. Paulo, segundo as quais o candidato às Sagradas Ordens só podia ter estado casado uma única vez (1 Tim 3, 2). Essas palavras, apontaram os bispos, não querem dizer que se pode continuar a viver a vida conjugal e a gerar filhos, mas foram precisamente ditas em favor da futura continência. É ensinado, por conseguinte, oficialmente – e será repetido continuamente – que as segundas núpcias ou o matrimónio com uma viúva não oferecem segurança de continência futura. A carta conclui com uma exortação a obedecer estas disposições que estão sustentadas pela tradição.
O seguinte Romano Pontífice que se ocupou amplamente da continência do clero é Inocêncio I (401-417). Provavelmente é sua uma carta sobre essa matéria, atribuída primeiro a Dâmaso e depois a Sirício. Quando foram apresentadas algumas questões pelos bispos da Gália, foram examinadas num Sínodo Romano uma série de questões práticas, cujos resultados ou respostas foram comunicados na carta Dominus inter no começo do século IV. A terceira das dezasseis perguntas referia-se à “castidade e pureza dos sacerdotes”. Na introdução, o Papa constata que “muitos bispos em várias igrejas particulares têm mudado temerariamente a tradição dos Padres, e caíram na escuridão da heresia, preferindo a honra que vem dos homens, ao mérito diante de Deus”.
E como o demandante, movido não pela curiosidade, mas pelo desejo de estar seguro na fé, tratava de alcançar da autoridade da Sé Apostólica informações sobre as leis e sobre as tradições, comunica-lhes numa linguagem simples, mas de conteúdo seguro, o que se deve saber para poder corrigir todas as deficiências que a arrogância humana causou.
À terceira das questões propostas dá a seguinte resposta:
“Em primeiro lugar, no que diz respeito aos bispos, sacerdotes e diáconos, que devem participar nos sacrifícios divinos, por cujas mãos se comunicam a graça do baptismo e se oferecem o Corpo de Cristo, decidiu-se que estão obrigados, não só por nós, mas pela Divina Escritura, à castidade (pelo que também os Padres ordenaram que observassem a continência corporal)”.
Continua então uma ampla exposição – que ainda hoje é digna de ser recordada – dos motivos, sobretudo bíblicos, da dita prescrição, e conclui dizendo que, ainda que só fosse pela veneração devida à religião, não se deve confiar o ministério divino aos desobedientes.
Outras três cartas do mesmo Papa repetem os conceitos de seu antecessor, Sirício, com os quais se identifica plenamente. Trata-se da carta a Vitrício de Rouen, de 15 de Fevereiro de 404; da dirigida a Exupério de Tolosa, de 20 de Fevereiro de 405; e da dirigida aos bispos Máximo e Severo de Calábria, de data incerta. É importante notar que sempre se pedem sanções contra os impenitentes que devem ser afastados do ministério clerical.
Os seguintes Pontífices Romanos também se esforçaram para preservar a estrita observância da tradicional continência do clero. Basta recordar, entre os mais importantes destes séculos, os depoimentos de dois deles: S. Leão Magno e S. Gregório Magno.
S. Leão Magno, em 456, escreveu ao bispo Rústico de Narbona: 
“A lei da continência é a mesma para os ministros do altar (diáconos), para os sacerdotes e bispos. Quando eram ainda leigos e leitores, podiam casar-se e gerar filhos. Mas, ao serem elevados aos graus anteriormente citados, começou a não ser lícito para eles o que antes o era. De facto, para que o matrimónio carnal chegue a ser um matrimónio espiritual, não é necessário que as esposas sejam afastadas, mas sim que vivam como se não as tivessem: deste modo se salva o amor conjugal e, ao mesmo tempo, cessa o uso do matrimónio”.
O Papa confirmou assim outro ponto relacionado com a continência dos clérigos casados, que, na legislação precedente, era também mencionado, a saber: que as esposas dos clérigos casados, após a Ordenação de seus maridos, devem ser sustentadas pela Igreja. A posterior coabitação com o marido, então obrigado à continência, não era geralmente tolerada pelo perigo de faltar à obrigação assumida. Foi permitida apenas nos casos em que esse risco estava excluído. Qualquer texto contra o abandono das esposas deve ser interpretado nesse mesmo sentido, como é evidente nesse fragmento de S. Leão Magno.
Deve acrescentar-se que este Papa estendeu aos subdiáconos a obrigação à continência posterior à sagrada Ordenação, o que até agora não estava claro, por causa da dúvida que existia sobre se a Ordem do subdiaconado pertencia ou não às Ordens maiores.
S. Gregório Magno (590-604) faz compreender nas suas cartas, ao menos indirectamente, que a continência dos eclesiásticos era substancialmente observada na Igreja Ocidental. Dispôs simplesmente que também a ordenação de subdiácono comportava, definitivamente e para todos, a obrigação de perfeita continência. Ele também sugeriu, repetidamente, que a coexistência entre clérigos maiores e mulheres não autorizadas para isso continuava a estar absolutamente proibida, e devia, portanto, ser impedida. E como as esposas não pertenciam normalmente à categoria das autorizadas, dava com isso uma significativa interpretação ao cânon 3 do Concílio de Niceia.
Do acima exposto, podemos já deduzir uma primeira constatação de singular importância: na Igreja Ocidental, ou seja, na Europa e nas regiões da África pertencentes ao Patriarcado de Roma, a unidade da fé era e permanecia sempre viva, junto com a unidade também da disciplina, algo que se manifesta pela comunicação, mais ou menos intensa, mas nunca interrompida, entre as várias igrejas regionais. Assim, os representantes de outras regiões eram admitidos nos Concílios Provinciais. Em Elvira, por exemplo, esteve presente, entre outros, Eutiques, como representante de Cartago, e no Concílio de Cartago de 418, que tratou da questão dos pelagianos, estavam também bispos da Espanha.
Essa consciência de unidade e de substancial uniformidade é encontrada explicitamente nas actas conciliares da época. O Primado Romano estava cada vez mais operativo desde o momento em que as perseguições tinham terminado: era a actualização e a concretização do princípio da unidade. Essa realidade reflecte-se sobretudo nas questões essenciais para a fé da Igreja Universal, mas nós podemos constatá-la também nas questões disciplinares, especialmente no ambiente do Patriarcado Romano.
Uma prova de primeira ordem desta unidade disciplinar é precisamente a que se adverte na questão que nos ocupa: sobre a continência do clero. Junto à práxis conciliar, que é eficaz desde o início, afirmando-a e confirmando-a, surge a acção orientadora e o cuidado universal na sua conservação por parte dos Romanos Pontífices, começando pelo Papa Siríaco. Se o celibato eclesiástico correctamente entendido foi conservado claramente em conformidade com a consciência clara da sua origem e da sua antiga tradição, apesar das dificuldades que surgem sempre e em toda a parte, devemo-lo, sem dúvida, à solicitude ininterrupta dos Papas. Uma prova a sensu contrario desta afirmação será dada pela história do celibato na Igreja Oriental. Mas antes de entrar nela, devemos ainda prosseguir com outras fases do seu desenvolvimento na Igreja do Ocidente.
O testemunho dos Padres e dos escritores eclesiásticos
Os Padres e os escritores eclesiásticos pertencem à categoria das mais importantes testemunhas da fé e da tradição nos primórdios da Igreja.
Sobre a questão da continência do clero é conveniente escutar primeiro Santo Ambrósio. Na sua sede em Milão, na qualidade de “Consularis Aemiliae et Liguriae”, Ambrósio, eleito bispo, tornou-se rapidamente um dos mais importantes homens da Igreja do Ocidente. No que diz respeito ao nosso assunto, esse Pastor, especialmente sensível às obrigações jurídicas, devido à sua anterior actividade civil, tinha ideias muito claras. Ensina que os ministros do altar que estavam casados antes de sua Ordenação, não deveriam continuar a usar do matrimónio depois da Ordenação – ainda que essa obrigação não tivesse sido sempre observada do modo devido, nas regiões mais remotas. Confrontado com a permissão vetero-testamentária, esclarece que deve-se ver aqui um novo mandato do Novo Testamento, pois os sacerdotes deste estão obrigados a uma oração e a um ministério santo, constante e contínuo.
São Jerónimo, que conhecia bem por experiência própria tanto a tradição do Ocidente como a do Oriente, disse, na sua refutação do ano 393 a Joviniano, sem insinuar nenhuma distinção entre Ocidente e Oriente, que o Apóstolo Paulo, na famosa passagem de sua carta a Tito, ensinou que um candidato casado à Ordem sagrada deveria ter casado uma só vez, deveria ter educado bem aos filhos que tivesse, mas não podia procriar outros filhos. Devia, portanto, dedicar-se à oração e ao serviço divino, e não só por um tempo limitado, como no Antigo Testamento, e, como consequência, “si semper orandum et ergo semper et semper carendum matrimonio”.
Na sua dissertação Adversus Vigilantium, do ano 406, São Jerónimo repetia o dever por parte dos ministros do altar de serem sempre continentes. E neste sentido afirma que esta é a prática da Igreja do Oriente, do Egipto e da Sé Apostólica, onde só se aceitam clérigos celibatários e continentes, ou, se são casados, que tenham renunciado previamente à vida matrimonial. Já no seu Apologeticum ad Pammachium, tinha dito que também os Apóstolos eram “vel virgines vel post nuptias continentes”; y que “presbiteri, episcopi, diaconi aut virgines eliguntur aut vidui aut certe post sacerdotium in aeternum pudici”.
Santo Agostinho, bispo de Hipona desde o ano 395/96, conhecia bem a obrigação geral do clero maior relativamente à continência, ele que havia participado no Concílio de Cartago, onde tal obrigação tinha sido repetidamente afirmada, apontando a sua origem nos mesmos Apóstolos e numa constante tradição do passado. Não se conhece nenhuma dissidência sua em tais ocasiões. Em sua dissertação De coniugiis adulterinis também afirma que homens casados que, de repente e por isso mesmo, quase  contra sua vontade, fossem chamados a fazer parte do clero maior e ordenados, estariam obrigados à continência, tornando-se, assim, um exemplo para aqueles leigos que, por viver longe de suas mulheres, são especialmente vulneráveis ao adultério.
O quarto grande Padre da Igreja Ocidental, S. Gregório Magno, já foi exposto como testemunha da continência dos ministros sagrados ao examinar os Romanos Pontífices.
Da prática disciplinar ocidental considerada até o momento, concluímos que: a continência própria dos três últimos graus do ministério clerical se manifesta na Igreja como uma obrigação que remonta aos começos da Igreja, e que foi transmitida como um património da tradição oral. Após a era de perseguição e, especialmente em consequência das conversões cada vez mais numerosas, que exigiram também numerosas ordenações, houve amplas transgressões dessa obrigação, contra ao quais os Concílios e a solicitude dos Romanos Pontífices procederam cada vez com maior insistência por meio de leis e disposições escritas. Nessas aparecem também as consequências de tais transgressões que consistiam na suspensão ou expulsão do sagrado ministério. 
Tudo isso nunca é apresentado como uma inovação, mas é sempre posto em referência com a origem da Igreja. Estamos autorizados, portanto, em conformidade com as regras de um correcto método jurídico-histórico, a considerar a dita práxis como uma verdadeira obrigação vinculante transmitida por tradição oral antes de ter sido fixado por leis escritas. Quem quiser afirmar o contrário não somente se oporia a uma metodologia científica válida, mas também estaria a arguir de mentirosos – porque de ignorância não poderiam ser acusados – a todos os testemunhos unânimes que até agora escutámos. 


Evolução da questão nos séculos seguintes 
Nesta base, deduzida da prática da Igreja primitiva, podemos acompanhar o desenvolvimento do celibato eclesiástico nos séculos seguintes. Primeiro, vamos referir-nos ao Ocidente.
Tal como nos primeiros tempos, também nas épocas posteriores muitos dos ministros sagrados eram, sem dúvida, escolhidos entre os homens casados. Esta situação é demonstrada pelo facto de que muitos Concílios da Espanha e da Gália insistirem repetidamente e sem interrupção na obrigação da continência desses ministros.
As sanções foram atenuadas em algumas ocasiões, como, por exemplo, no Concílio de Tours, no ano 461, onde não se pune já com a e excomunhão para toda a vida, mas apenas com a exclusão do serviço eclesiástico.
Além disso, é cada vez mais acentuada a preocupação da Igreja em dispor de candidatos às ordens maiores que sejam celibatários, e em reduzir o número dos candidatos casados, já que a experiência mostrava o perigo permanente da debilidade humana ante as obrigações assumidas por estes candidatos.
Outra disposição que deve ser constantemente recordada e renovada, foi a proibição de que qualquer clérigo maior vivesse sob o mesmo tecto com mulheres que não oferecesse plena confiança pelo que se refere à observância da continência.
Para estabelecer um juízo de conjunto sobre a disciplina celibatária na Europa medieval, são muito significativas as disposições relativas à Igreja na Grã-Bretanha. Os Livros Penitenciais, que reflectem fielmente a vida e a disciplina em vigor nesta igreja, em muitos aspectos demonstram inequivocamente a validade para os clérigos maiores insulares previamente casados, das mesmas obrigações que estamos vendo. O que continuasse usando do matrimónio com sua esposa era considerado culpado de adultério e castigado convenientemente. Se essas obrigações onerosas eram exigidas e observadas substancialmente também na Igreja Insular, na qual estavam em vigor rudes costumes entre os seus habitantes, dos quais esses livros nos dão uma viva prova, temos uma óptima demonstração de que o celibato era também possível ali, ainda que, provavelmente, só por uma nobre tradição que ninguém punha em dúvida.
Juntamente com os perigos gerais periódicos que ameaçavam sempre e em toda parte a continência do clero, sempre existiram na história da Igreja momentos, circunstâncias e regiões onde surgiram perigos extraordinários que provocavam de modo muito especial a autoridade da Igreja. As dificuldades desse tipo eram produzidas pelas heresias bastante difundidas. Um exemplo é o arianismo dos visigodos, ainda a operar após a conversão ao catolicismo de seu reino na Península Ibérica. O Concílio de Toledo de 569 e o de Zaragoza em 592 emanaram normas explícitas neste sentido para os clérigos provenientes do arianismo.
A Reforma Gregoriana
Uma das mais graves crises que afectou a continência do clero foi a que se deu em todas as regiões da Igreja Católica Ocidental, afectadas pelas desordens que levaram à Reforma Gregoriana. Essas regiões eram aquelas partes da Europa onde tinha penetrado, com maior ou menor difusão, o chamado sistema beneficial eclesiástico, que, basicamente, dominou toda a vida pública e, mais tarde, também a vida privada da Igreja e da sociedade eclesiástica.
Os bens patrimoniais do benefício eclesiástico, que estavam ligados a todos os ofícios da Igreja, altos ou baixos, conferiam ao detentor do benefício, e portanto também do ofício, uma grande independência económica e, por isso, frequentemente profissional, uma vez que o ofício que acompanhava o benefício não se podia retirar facilmente. A concessão do benéfico-ofício, que vinha realizada com frequência através de leigos que possuíam esse direito – proveniente da Igreja em sentido estrito ou lato – situava nos ofícios eclesiásticos de bispos, abades e, inclusive, de párocos, a candidatos com frequência pouco preparados e, até mesmo, indignos. A concessão e a designação dos ofícios por parte de leigos poderosos, que nesse assunto atendiam mais aos interesses seculares e profanos que aos espirituais e religiosos da Igreja, conduziam aos outros dois males fundamentais: a simonia, ou seja, a compra dos ofícios, e o nicolaísmo, isto é, a estendida violação do celibato eclesiástico.
Após o fracasso das reformas regionais, os Papas começaram a enfrentar essa situação difícil da Igreja Europeia. Conseguiram, devido ao empenho de Gregório VII, enfrentar este grave perigo que tinha envolvido a hierarquia da Igreja em todos os seus graus.
Assim, esse perigo levou a um impulso decidido para a reintegração da antiga disciplina celibatária; para isso foi necessário cuidar especialmente da eleição e da formação dos candidatos ao sacerdócio, para o qual se limitava cada vez mais a aceitação de homens casados, buscando, assim, o retorno a uma observância geral da obrigação da continência.
Outra consequência importante dessa reforma é a disposição, solenemente declarada no segundo Concílio de Latrão do ano de 1139, de que os casamentos contraídos pelos clérigos maiores, como também os das pessoas consagradas mediante votos de vida religiosa, não só eram ilícitos, mas também inválidos. Isto levou a um grande equívoco difundido ainda hoje: o de que o celibato eclesiástico foi introduzido somente a partir do Concílio Lateranense II. Na realidade, ali só se afirmou que era inválido o que sempre tinha sido proibido. Esta nova sanção confirmava, de facto, uma obrigação existente há muitos séculos.
O Celibato no direito canónico clássico.
Quase ao mesmo tempo que começou a vida e a actividade do direito da Igreja, o monge camaldulense João Graciano, compôs, aproximadamente em 1142, em Bolonha, seu Concórdia discordantium canonum, em seguida simplesmente chamado Decreto de Graciano, no qual foi recolhido todo o material jurídico do primeiro milénio da Igreja, e no qual harmonizou, ou pelo menos tentou fazê-lo, as mais variadas normas. Com ele começava a escola do Direito da Igreja, associada a sua paralela do Direito Romano, e que será chamada de escola dos glossistas ou glossadores, ou seja, dos intérpretes das compilações do Direito Eclesiástico (e do Direito Romano) e dos seus textos legais.
O decreto de Graciano trata também, naturalmente, a questão e a obrigação da continência dos clérigos, especificamente, nas distinções 26–34 e mais adiante nas distinções 81–4, da primeira parte. O mesmo irá acontecer também em outras partes do Corpus Juris (Canonici), que desde então vai se formando com a promulgação das respectivas leis.
Para compreender correctamente as explicações que os canonistas deram dessas leis, devemos considerar que, tal como os seus colegas romanistas, não realizaram as investigações e estudos histórico-jurídicos, o que só ocorreu mais tarde na escola dos cultos, ou seja, na escola jurídica humanística dos séculos XVI em diante. Não devemos, portanto, surpreender-nos de que os glossadores, ou seja, a escola jurídica clássica, tenha desconhecido – também no domínio da canonística – uma crítica em sentido próprio das fontes e dos textos.
Isso é importante para o nosso assunto, pois, ao falar de Graciano, imediatamente encontramos o facto de que, na questão do celibato eclesiástico, aceitou como algo realmente ocorrido no Concílio de Niceia a lendária história de Pafnucio, e assumiu, acriticamente, juntamente com o cânon 13 do Concílio Trullano II de 691, a diferença da práxis celibatária da Igreja Ocidental e da Oriental. Embora essa não fosse uma ocasião para ele justificar a razão das diferentes práticas da Igreja Latina, tanto ele como a escola clássica de Direito Canónico, colocam a atenção no motivo da diferente obrigação na questão da continência do clero maior oriental. Voltaremos a falar desse diferente tratamento histórico do celibato na Igreja Oriental.
Temos de dizer agora, no entanto, que precisamente devido a essa negligência crítica, as dúvidas já existentes no Ocidente sobre esse assunto, e que Gregório VII e outros reformadores, incluindo especialmente Bernoldo de Constança, tinham reconhecido, não produziram uma impressão decisiva sobre a escola canonística, que reconheceu também as deliberações do Concílio Trulano II como plenamente válidas para a Igreja Oriental. Nesse mesmo Concílio, como veremos, foi fixada a disciplina celibatária da Igreja Bizantina e das dependentes dela.
No entanto, como já mencionámos, não existia entre os canonistas medievais nenhuma dúvida sobre a obrigação, para a Igreja Ocidental, da continência de todo o clero maior. E isso, na verdade, porque conheciam bem os documentos dos Concílios ocidentais, os já tratados anteriormente, sobretudo dos Concílios africanos (Graciano, no entanto, não demonstra conhecer o cânon 33 de Elvira), dos Pontífices Romanos e dos Padres. Todos os canonistas estavam, em geral, de acordo em que a proibição do casamento para os clérigos maiores devia ser atribuída aos Apóstolos – tanto ao exemplo deles, como às suas disposições. Alguns atribuíam aos Apóstolos a proibição do uso do matrimónio contraído antes da Ordenação, outros a disposições legislativas posteriores, sobretudo dos Romanos Pontífices, começando por Siríaco. Tentavam explicar as razões sobre as que se baseia tal proibição, ainda que com argumentos em parte contrapostos. Uns relacionavam-na com um voto, expresso ou tácito, ou com uma ordem anexa ou solenizada pela legítima autoridade. Frente à dificuldade de que ninguém pode impor a outro um votum, tratava-se de encontrar a solução na constatação de que não se tentava de impor à pessoa, mas somente ao ofício, que trazia anexa esta condição. Que a Igreja pudesse fazê-lo não oferecia nenhuma dúvida a quaisquer canonistas, que o explicavam com argumentos bem interessantes e convincentes.
A doutrina que mais convence afirma que esta disposição podia ficar unida através de uma lei, sobretudo pontifícia, à Ordem Sagrada, e que isso era o que realmente tinha sido realizado desde os primeiros tempos da Igreja pelos Concílios e pelos Romanos Pontífices, tanto para o caso dos bispos, como para os sacerdotes e diáconos. No caso dos subdiáconos, só havia sido decidido definitivamente a partir do Papa Gregório I. Nenhum canonista medieval duvidada, por outro lado, que esta obrigação vinculava ilimitadamente desde o momento de sua introdução. É particularmente destacável o facto de que alguns glossadores façam referência explícita, como fontes da obrigação da continência clerical, a normas meramente tradicionais, que já existiam antes de sua prescrição legal, e a que uma obrigação originada por um voto não era dispensável nem mesmo pelo Papa. Por esse motivo se inclinavam pela teoria que punha a causa eficiente da obrigação numa lei, pois o Papa, sim, podia dispensar de uma lei geral. De qualquer modo, um bom número deles era da opinião de que uma dispensa deste tipo podia ocorrer somente em alguns casos particulares e não em geral, porque isso equivalia à abolição de uma obrigação contrária ao status ecclesiae, coisa que nem para o Papa era possível.
Após esta exposição sintética do pensamento dos glossistas sobre o celibato eclesiástico, correctamente entendido, vigente na Igreja, vale à pena mencionar alguns dos mais importantes textos sobre o nosso tema, que podem ser considerados especialmente representativos dessa doutrina.
Primeiro, devemos mencionar S. Raimundo de Peñafort. Este autor compôs também o Liber Extra do Papa Gregório IX (parte central do Corpus Iuris Canonici) e pode, pois, ser considerado como homem de confiança do Papa, e é também representante qualificado da ciência canonística, já então bem madura. No que diz respeito à origem e ao conteúdo da obrigação de continência dos homens casados antes da sagrada Ordenação diz: 
“Os bispos, sacerdotes e diáconos devem observar a continência também com sua esposa (de antes). Isto é o que os Apóstolos ensinaram com seu exemplo e também com suas disposições, como alguns dizem, para quem a palavra “ensinamento” (Dist. 84, can. 3) pode ser interpretada de maneira diversa. Isso foi renovado no Concílio de Cartago, como na citada disposição Cum in merito, do Papa Siríaco”. 
Depois de resumir outras explicações, Raimundo refere-se às razões para a introdução de tal obrigação: 
“A razão era dupla: uma, a pureza sacerdotal, para que possam obter com toda a sinceridade o que com a sua oração pedem a Deus” (Dist. 84 , cap. 3 e dict. 1 p. c. 1 Dist. 31); “a segunda razão é que possam orar sem impedimentos (1 Cor 7, 5) e exercer seu ofício, pois não podem fazer as duas coisas: servir à mulher e à Igreja, ao mesmo tempo”.
A continuidade da doutrina da Igreja na Idade Moderna


Giuseppe Maria Crespi, O sacramento da Ordem (1712)

A contínua vida de sacrifício que implica tão grave compromisso só pode ser vivida se for alimentada por uma fé viva, já que a fraqueza humana é sentida continuamente. A motivação sobrenatural só pode ser entendida de modo permanente com essa fé, sempre conscientemente vivida. Se a fé se esfria, também diminui a força para perseverar; onde a fé morre, morre também a continência.
Todos os movimentos heréticos e cismáticos que apareceram na Igreja são uma renovada demonstração dessa verdade. Uma das primeiras consequências que ocorrem entre os seus seguidores é a renúncia da continência clerical. Não pode, portanto, causar surpresa o facto de que também nas grandes heresias e defecções da unidade da Igreja Católica no século XVI, ou seja, entre os luteranos, calvinistas, seguidores de Zwinglio, ou Anglicanos, se renuncia imediatamente ao celibato eclesiástico. Os esforços de reforma do Concílio de Trento para restaurar a verdadeira fé e a boa disciplina na Igreja Católica, portanto, deverão também abordar os ataques contra a continência dos ministros sagrados.
Da história deste Concílio já é conhecida, com absoluta certeza, que muitas pessoas, especialmente imperadores, reis, príncipes e mesmo representantes da própria Igreja, com a boa intenção de recuperar os ministros sagrados que haviam deixado a Igreja Católica, se empenharam em obter uma redução ou uma dispensa desse dever. Mas uma comissão criada pelos Romanos Pontífices para tratar dessa questão, concluiu, considerando toda a tradição precedente, que se devia manter sem comprometer a obrigação do celibato: a Igreja não estava capacitada para renunciar a uma obrigação válida desde o seu começo e depois sempre renovada.
Por razões pastorais deu-se permissão especial para que na Alemanha e na Inglaterra os sacerdotes apóstatas, depois de renunciar a toda convivência e uso do matrimónio, podiam ser absolvidos e reintegrados no seu ministério na Igreja Católica. Caso rejeitassem o retorno ao clero, podia ser sanada a invalidez de seu matrimónio; mas, nesse caso, seriam excluídos para sempre do ministério sagrado.
Note-se também que os Padres do Concílio de Trento, não só renovaram todas as obrigações nesta matéria, mas também se recusaram a declarar a lei do celibato da Igreja Latina como uma lei puramente eclesiástica, da mesma forma que haviam negado incluir à Virgem Maria sob a lei universal do pecado original.
Mas a decisão mais radical do Concílio de Trento para salvaguardar o celibato eclesiástico foi a fundação de Seminários para a formação de sacerdotes, que foi estabelecido pelo famoso cânone 18, da Sessão XXIII, e imposta a todas as dioceses. Os jovens deveriam ser eleitos para o sacerdócio, formados e fortalecidos para o ministério nesses Seminários.
Essa decisão providencial, que se tornou realidade progressivamente em todos os lugares, permitiu à Igreja contar com tantos candidatos celibatários para os graus superiores do sagrado ministério, que, a partir de então, se pode ir prescindindo de ordenar homens casados, o que tinha sido um desejo explícito de muitos Padres conciliares.
Desde então, a noção de celibato até então dominante e muito presente na mentalidade dos fiéis, que incluía tanto a obrigação de continência completa no uso do matrimónio contraído antes da ordenação, bem como a proibição de se contrair novas núpcias, foi restringida a esta última. Daí procede que hoje se entenda o dever do celibato eclesiástico só como proibição de se casar.
A Igreja tem sido sempre forte em preservar a sua tradição em relação ao celibato, mesmo nos tempos difíceis que se seguiram. Um claro testemunho é fornecido pela Revolução do final do século XVIII e início do século XIX. Também se adoptou nesta ocasião a prática do século XVI: os sacerdotes que se tinham casado durante a Revolução tinham de decidir: ou renunciar ao matrimónio civil invalidamente contraído, ou procurar sanar esta invalidez na Igreja. No primeiro caso, podiam ser readmitidos ao sagrado ministério; no segundo, ficavam excluídos definitivamente do ministério, como já havia estabelecido a primeira lei escrita sobre essa matéria, que já conhecemos: a do Concílio de Elvira.
A Igreja opôs-se também a todas as outras tentativas feitas para abolir o celibato dos ministros sagrados, como os esforços feitos em Baden-Wurttemberg em tempos de Gregório XVI, ou o movimento Jednota da Bohemia, em tempos de Bento XV.

É novamente importante a abolição imediata do celibato entre os “velhos católicos” após o Concílio Vaticano I. Não é menos clara a oposição da Igreja contra as tentativas, constantemente renovadas após o Concílio Vaticano II, de ordenar viri probati, quer dizer, homens casados sem exigir-lhes a renúncia ao matrimónio, ou de permitir o matrimónio dos sacerdotes.