Pela sua grande atualidade, partilho o importante texto, a seguir transcrito, da autoria dos sacerdotes do Patriarcado de Lisboa Mons. Duarte da Cunha e Pe. Ricardo Figueiredo, acessível também neste link:
https://padrericardofigueiredo.blogs.sapo.pt/relatorio-de-portugal-uma-outra-24738.
Este texto propõe uma fundamentada alternativa ao «Relatório de Portugal» para a Assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023 recentemente divulgado.
«Relatório de Portugal»: Uma outra perspetiva sobre a Igreja em Portugal
A publicação do «Relatório de Portugal» para a Assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023 representa um ponto de chegada de um percurso que passou pelas paróquias e dioceses de Portugal. No entanto, a forma e o conteúdo da síntese nacional causaram perplexidade, que levou a muita reflexão. Muitos católicos não se reviram no resultado e, por isso, empreendemos o esforço de fazer a leitura de todas as sínteses diocesanas[1]. Pareceu-nos que, por razões que não sabemos, esse relatório não corresponde ao que estava nas sínteses diocesanas. Por isso, conscientes da dificuldade que existe em sintetizar 21 relatórios em poucas páginas, decidimos, mesmo assim, tentar fazer uma nova síntese que faça justiça aos conteúdos que foram apresentados por todas as dioceses. O resultado desta nova perspetiva sobre as sínteses diocesanas é o que agora aqui apresentamos, que por sua vez tentamos que represente o que foi dito pelas dioceses e não a nossa opinião pessoal.
Pe. Duarte da Cunha
Pe. Ricardo Figueiredo
I. Processo de recolha de informação
1. As sínteses diocesanas mostram como a célula paroquial é a estrutura fundamental da vida da Igreja em Portugal. É verdade que há uma feliz experiência em relação à existência de muitos e grandes movimentos no nosso país, embora, apesar de mobilizarem muitas pessoas, nem sempre são bem conhecidos no seu carisma e em algumas dioceses, como se revela nos relatórios, alguns têm dificuldade de integração. Fica patente que as paróquias, com a sua dimensão territorial, desempenham um papel fundamental na pastoral.
2. O que se pretendia com o processo sinodal era dinamizar as comunidades para uma avaliação dos desafios em estilo sinodal e não o estudo completo do que é, do que diz ser e do que faz a Igreja em Portugal: para tal seria necessário um estudo de outra envergadura. Algumas sínteses diocesanas assinalam os números de participantes no processo sinodal, que se pode dizer que é diminuto em relação ao número de católicos, representando, em média, a partir do que se pode apurar, uma participação de 1,14% dos católicos[2]. Assinalam-se algumas razões para isso: o desinteresse dos párocos, o desinteresse e desmotivação dos leigos, a situação pandémica, a dificuldade em relação à compreensão das perguntas, a dispersão em que muitas comunidades vivem.
3. Quanto ao processo segundo o qual se procedeu à recolha de informações, assinala-se a importância dos encontros presenciais, mas também o relevo que ganharam no contexto eclesial os meios digitais: usados quer em iniciativas para partilha e reflexão à distância, quer na simples recolha de respostas a questionários online. Referem-se alguns sinais tímidos da participação de pessoas que habitualmente não participam da vida eclesial, mas nos resultados não se assinalam quais as propostas de mudança das pessoas que habitualmente caminham numa comunidade cristã e quais são as propostas de quem não participa da vida eclesial, o que não permite uma leitura que atenda à complexidade dos dados e das experiências.
4. Ainda que a participação seja muito diminuta, muitas sínteses sublinham a alegria dos participantes em poderem realizar este caminho sinodal. Várias sínteses referem a importância do ambiente orante em que foram convidados a fazer a reflexão sinodal. Em alguns momentos, assinalou-se a importância da utilização do método do diálogo espiritual, que permitiu que as reflexões não fossem apenas uma apresentação de opiniões pessoais, mas um verdadeiro caminho de escuta do Espírito Santo e de atenção espiritual aos caminhos que Deus nos chama a percorrer. Isto mostra como o caminho sinodal não é um estudo sociológico, mas deve ser uma meditação à luz da fé que leve ao discernimento do que hoje nos é pedido como Igreja ser e fazer.
5. No processo de recolha de informação deve-se ainda apontar a preponderância de participantes que estão envolvidos diretamente na vida paroquial: membros de conselhos pastorais, leitores, acólitos, sacristães, cantores, catequistas, membros de instituições eclesiais, etc.. Há, é certo, experiências que foram além das redes paroquiais já existentes, mas são uma minoria. Tal dado demonstra como a participação dos católicos portugueses se restringiu muito à ação paroquial direta e levanta a questão do papel dos leigos na vida pública e de como respondem à vocação a ser «fermento na massa».
6. Várias dioceses chamaram a atenção para a complexidade das questões colocadas, que muitas vezes se apresentam numa linguagem de difícil compreensão para quem participou. Também surgem testemunhos de dioceses ou de paróquias dentro de algumas dioceses que procuraram adaptar a linguagem para que fossem mais facilmente compreendidas.
II. Apresentação dos resultados
7. Um dos elementos que surge em diversas sínteses é o facto de a sinodalidade já não ser uma novidade para a Igreja em Portugal: nos últimos anos várias dioceses empreenderam caminhadas sinodais, o que permitiu que as pessoas estivessem já ambientadas a métodos, não sem dificuldade, como também é assinalado. A este respeito é interessante verificar que apesar de tudo quanto se tem feito, algumas sínteses continuam a sublinhar a necessidade de formação para a sinodalidade: há não só resistências, mas sobretudo desconhecimento sobre a natureza e os objetivos de um processo sinodal. No âmbito de um sínodo para a sinodalidade, reconheceu-se que há falta de formação neste sentido, falta de prática e muitas vezes confusão, confundindo-se caminhar e trabalhar em conjunto com simples recolha de opiniões[3].
8. Várias sínteses diocesanas referem a alegria que os participantes sentiram por serem escutados e verem a sua perspetiva ser valorizada. Neste sentido, foi importante que se tenha reconhecido este processo como disponibilidade para escutar o que Deus quer dizer à Igreja e para que cada um se sinta membro ativo da Igreja. Este fator é importante, como acima fizemos notar, no próprio método do diálogo espiritual, proposto pelos documentos para a caminhada sinodal: mais do que falar de opiniões pessoais, o processo sinodal como tantas vezes insiste o Papa Francisco, tem de ter como protagonista o Espírito Santo, que faz ressoar a Sua voz. Portanto, mais do que um «estudo de opinião» sobre como se vê a Igreja, esta caminhada sinodal sinalizou a necessidade de se renovar o compromisso concreto com a missão evangelizadora da Igreja. De forma particular, pediu-se que as estruturas eclesiais estejam atentas à vida concreta das pessoas, nomeadamente nos horários praticados, na necessidade de as igrejas se encontrarem abertas e na disponibilidade para as pessoas serem recebidas pelos sacerdotes para o acompanhamento espiritual e, especialmente, para a confissão. Mas também no ir ao encontro das pessoas, nas suas necessidades espirituais e não só, o que em síntese significa o desejo de uma Igreja que seja sempre mais comunidade, para fazer frente à solidão e individualismo da sociedade.
9. A vida espiritual foi reconhecida como um elemento fundamental na vida dos cristãos e de toda a Igreja. As celebrações litúrgicas, de forma particular a Eucaristia, ocupam um lugar central na vida das comunidades cristãs, mas sente-se a necessidade de renovar essa centralidade e de aprofundar o significado da Liturgia. Em diversas sínteses assinalou-se também a necessidade de aprofundar a piedade popular.
10. Um aspeto que surge recorrentemente nas sínteses diocesanas é a necessidade da conversão pessoal de todos, dos pastores e dos leigos. Esta conversão surge como transformação na forma de estar em Igreja e na relação com os outros. Conduz a uma renovação na forma de vivência do serviço eclesial, que transforme a Igreja a partir de dentro, ou seja, a partir das pessoas. Por vezes é fácil querer uma renovação da Igreja, mais difícil é querer a própria conversão, que implica mudanças na própria vida. Esta caminhada sinodal indicou como necessária a renovação da vida espiritual dos católicos, de tal forma que estejam mais disponíveis para acolher a vontade de Deus, mais atentos a viver a vocação universal à santidade, mais solícitos em atender às necessidades dos irmãos. Também se mostrou a necessidade de empreender um caminho sério no diálogo ecuménico e no diálogo inter-religioso, que se reconhece como diminuto ou insuficiente.
11. Na reflexão sinodal, surge o reconhecimento da grande importância da missão caritativa da Igreja. Esta é vista também como um elemento cuja relevância é fortemente reconhecida pela comunidade civil. Além do atendimento às necessidades urgentes dos pobres e necessitados, algumas dioceses assinalaram a importância de ir mais a fundo e procurar caminhos de solução para as causas dessa pobreza. Além disso, não deixam de ser reconhecidos desafios, como a necessidade de tornar mais patente o caráter cristão da ação caritativa. Esta não é apenas uma extensão da responsabilidade estatal de socorrer aos mais necessitados, mas deve envolver todos os fiéis e comunidades, fazendo emergir a fecundidade da fé na caridade.
12. Reconhece-se o papel importante que a Igreja ainda exerce no contexto da sociedade civil, sendo muitas vezes solicitada, até por quem se encontra mais distante, para a realização de determinadas celebrações que são de caráter sacramental, como os batismos e os matrimónios, mas hoje muitas vezes apenas entendidos como eventos sociais. Juntam-se também os funerais a este tipo de celebrações, ainda reconhecidos por muitos, mesmo não crentes, como um momento central da vida social, em que é importante a presença da Igreja. Reconhecendo que há um grande contraste entre aquilo que a Igreja vive nestas celebrações e o que a larga maioria das pessoas entende, torna-se necessário tomar estes momentos como oportunidade de encontro e de evangelização: além de cuidar de aspetos formais, cuidar da preparação pessoal das famílias, sendo próximo e testemunhando a pertinência da Palavra de Deus para a vida das pessoas. Ainda sobre o relevo da Igreja na sociedade civil, não se deixou de mostrar alguma preocupação a respeito da imagem da Igreja católica que é veiculada, através de notícias de escândalos, como os abusos de menores ou a corrupção. Reconhece-se com dor o que isto implica, o compromisso por reconhecer os erros e purificar o interior da Igreja. Torna-se necessário renovar a imagem da Igreja: apesar de todos os pecados cometidos, ela tem futuro, é portadora de uma mensagem essencial para os dias de hoje, e está disponível para exercer a missão. À Igreja cabe testemunhar a presença libertadora e redentora de Jesus Cristo vivo, hoje como ontem.
13. As comunidades religiosas de consagrados, tanto masculinas como femininas, foram reconhecidas como importantíssimas na vida eclesial. A sua presença, pela oração e pela ação, mostra a necessidade que a Igreja tem desta dimensão da vida cristã no seu dia-a-dia, que não pode ser ignorada: sinalizam a caridade e a vida eterna a que todos somos chamados. Há uma necessidade de cuidar das vocações à vida religiosa, mostrar a sua beleza e a pertinência da sua missão na Igreja, que é desde sempre reconhecida como uma graça.
14. Diversas sínteses reconhecem o papel particular das famílias na vivência da fé cristã. Nestas se nasce para a fé e se aprende a participar na vida da Igreja. Também se assinala a dificuldade de compaginar a vida familiar com uma participação mais ativa na vida paroquial, o que por vezes causa algumas dificuldades. Surge, ainda, como um grande desafio, a proposta de uma vivência mais autêntica da doutrina e da moral católicas no seio das famílias, nomeadamente a respeito das questões da sexualidade conjugal.
15. Nas sínteses diocesanas, reconhece-se que, muitas vezes, se torna difícil o acolhimento dos que vivem uma vida moral a partir de outros valores. Surgiram várias participações que apelam a um maior acolhimento. Este parece ser, antes de mais, uma necessidade de cordialidade e amabilidade, na linha do que o Papa Francisco tem dito, e não a necessidade de mudar a doutrina ou de reinventar a pessoa humana, pois Jesus, que é a plena revelação de Deus, também é a plena revelação do homem. Trata-se do acolhimento de pessoas concretas, a partir do qual se começa a caminhar em conjunto rumo à santidade. Neste sentido, torna-se necessário esclarecer os diversos níveis de pertença à Igreja, para se evitar mal-entendidos: a Igreja abraça todos com amor e solicitude. Está no mundo para ser sinal da comunhão com Deus e, consequentemente, levar muitos a caminharem na vida com Cristo e a seguir as suas pisadas. O Evangelho de Jesus Cristo supõe uma antropologia, que não pode ser ignorada e da qual a Igreja deve ser arauto. A fidelidade a Jesus Cristo também deve ser fidelidade à Sua disponibilidade para a todos acolher, sem distinção, para o anúncio da proposta evangélica. A este respeito, também se sublinha como é importante a coerência de critérios a respeito da admissão aos sacramentos e ao múnus de padrinho e madrinha.
16. Especialmente na senda da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, surgem nas sínteses diocesanas várias referências ao papel dos jovens na Igreja. Reconhece-se que há muitos jovens para quem a Igreja não tem relevância, mas também se reconhece no interior da Igreja muitas experiências em que estes são os protagonistas e pretendem fazer caminho de vida cristã. Olha-se para a Jornada Mundial da Juventude como oportunidade de voltar a propor às camadas mais novas da sociedade a proposta cristã, de forma renovada e exigente. Percebe-se em diversos relatórios que é importante a vários níveis uma maior proximidade dos jovens e um melhor conhecimento dos anseios do seu coração. Para isso, há uma grande responsabilidade dos jovens católicos para que o anúncio da fé chegue aos seus coetâneos que ainda não conhecem a Jesus Cristo.
17. Várias sínteses reconhecem o papel importante da figura do sacerdote na vida da Igreja. A este respeito surgem testemunhos felizes de disponibilidade, entreajuda e incentivo à vida espiritual. Contudo, aparecem também testemunhos negativos, que assinalam atitudes clericalistas e autoritárias. A respeito do sacerdócio encontramos aspetos contraditórios: por um lado, pede-se que os padres estejam mais presentes na vida das pessoas, que se possam dedicar totalmente ao cuidado espiritual dos cristãos, que preparem melhor as homilias e que não estejam sobrecarregados com questões de gestão; por outro lado, pede-se que se repense o celibato como opção necessária para a ordenação, o que implicaria menos tempo para a vida pastoral, além de secundarizar a dimensão de consagração total do sacerdote. É necessário fazer emergir a beleza da vocação sacerdotal e ajudar a que ela seja considerada pelos jovens: num tempo em que tantas vezes o sacerdócio aparece ligado a muitas realidades negativas, é preciso reforçar a necessidade da santificação dos sacerdotes para mostrar o sacerdócio como caminho feliz de santificação e o celibato como identificação com Cristo.
18. Diversas sínteses assinalam a necessidade de reforçar o papel das mulheres na Igreja. Contudo, reconhece-se também o seu papel fundamental na vida das famílias, das paróquias e da sociedade. Sente-se necessidade de maior envolvimento nos processos de decisão e gestão.
19. Várias dioceses referem a necessidade de renovação da comunicação da Igreja. Em primeiro lugar, renovar o anúncio do Evangelho para realçar a beleza, a bondade e a verdade deste, com uma estratégia de comunicação adequada aos nossos tempos, nas diversas instâncias e nos vários meios. Há muita oferta, nomeadamente a nível digital, mas nem sempre quantidade significa qualidade. Em segundo lugar, com uma expressão eficaz das suas posições com a sociedade mais abrangente: algumas sínteses assinalam o desaparecimento da Igreja no âmbito público, ficando a sua referência muitas vezes resumida ou à ação sociocaritativa, ou a escândalos e outras notícias negativas. É necessário renovar a forma de comunicação da Igreja, assumindo posições claras e coerentes, com humildade e sem ressentimentos, transparecendo a alegria do Evangelho. Também se assinalou a necessidade de maior transparência em relação à gestão financeira das estruturas eclesiais.
20. Diversas sínteses chamam a atenção para a necessidade de formação na Igreja: quer dos pastores, quer dos leigos. De forma particular, realçam a necessidade de formação para lidar com os problemas do nosso tempo: se é importante escutar os desafios e angústias do coração das pessoas, também é importante anunciar a Palavra de Deus e o projeto de Deus para a humanidade. Esta necessidade de formação e de renovação dos métodos também é assinalada a respeito da catequese – quer na infância, quer catequese de adultos. Neste sentido, assinala-se a importância de um renovado aprofundamento das raízes da fé cristã: regressar à Sagrada Escritura e à Sagrada Tradição. Algumas sínteses dizem que seria importante uma melhor adequação do anúncio da fé às necessidades do ser humano. Outras há em que são feitas diversas propostas que, por vezes, ignoram a antropologia, a moral ou outros aspetos da doutrina católica, como, por exemplo, o pedido de admissão à comunhão sacramental de divorciados recasados, a aceitação das uniões entre pessoas do mesmo sexo, a ordenação de mulheres, etc., o que desde logo sinaliza a necessidade de formação[4]. Neste sentido, podem destacar-se vários aspetos em que é necessário revitalizar a formação humana, intelectual e espiritual dos católicos em geral: política, economia, ecologia, cultura. Ainda a respeito da formação cristã chamou-se a atenção para a necessidade de um esforço para, com a graça de Deus, se conseguir ter maior coerência entre o que se ensina e o que se vive.
III. Visão da Igreja atual e propostas de mudança
21. Para muitos dos participantes na caminhada sinodal, a Igreja é reconhecida como lugar de encontro com Deus e com os irmãos, ela é o lugar onde se procura a primeira resposta a necessidades sociais e é espaço de escuta e comunhão. Ao mesmo tempo, foi sentida a premência de maior aprofundamento espiritual: falta facilitar e encontrar novas formas de promover a vida de oração e a escuta da Palavra de Deus que conduzam à conversão de coração. A Igreja é uma realidade que está neste mundo e que pode ser sociologicamente pensada e, nessa sua dimensão, pode reformar-se sempre para ser mais clara a refletir Jesus Cristo, mas a sua natureza não se reduz ao que é deste mundo. Isso também tem implicações na forma como cada cristão vive a sua fé. Há necessidade de uma vida mais teologal, em que Deus ocupa verdadeiramente o centro e o primeiro lugar no coração das pessoas e na forma de ser Igreja. Neste sentido, torna-se importante um aprofundamento do sentido da vida litúrgica das comunidades: esta não pode ser um aspeto descuidado ou desligado da vida das pessoa, mas deve ser expressão do verdadeiro encontro com Deus e manifestação da Igreja como Corpo místico de Cristo.
22. A resposta sociocaritativa ocupa um lugar central na forma como a Igreja é vista e reconhecida como peça fundamental na sociedade. Destaca-se o papel relevante nas áreas da educação, saúde e apoio à terceira idade. A função social, não só no campo caritativo, mas também na vida mais ampla da sociedade portuguesa é igualmente reconhecida: a Igreja é vista como elemento estruturante da vida social, ainda que se peça uma maior disponibilidade e profundidade quando dialoga com os diversos âmbitos da mesma, da política à cultura.
23. A Igreja continua a ser vista como uma referência positiva no seio da sociedade, mesmo diante dos aspetos negativos que por vezes surgem na comunicação social, como os casos de abusos e de corrupção. Pede-se que a Igreja tenha uma estratégia comunicativa que testemunhe o seu desejo de purificação e permita que ela se apresente de forma positiva e verdadeira.
24. O acolhimento e a escuta de todos, como era patente nas perguntas da caminhada sinodal, aparecem como temas essenciais entre os desafios para a Igreja de hoje, mas também se faz notar poderem ser ambivalentes. Por um lado, reconhece-se que há um forte sentido de acolhimento do outro nas comunidades cristãs, que se entendem como família dos filhos de Deus, onde, portanto, qualquer pessoa pode encontrar um lugar para ser escutada e amada. Por outro lado, algumas respostas evidenciaram a dificuldade que pode haver no acolhimento de pessoas que não vivem de acordo com a proposta moral da Igreja ou que por questões culturais ou sociais são diferentes do resto da comunidade. A Igreja (e cada cristão em particular) deve dizer a todos que se interessa por quem quer que encontre no caminho e o deseja ajudar sinceramente: que ninguém possa dizer que não é amado na Igreja, ou, como diz o Papa Francisco, que ninguém seja descartado na Igreja. Neste âmbito, surge nas sínteses alguma confusão entre acolhimento das pessoas e participação plena da vida sacramental. Os sacramentos são vistos como ocasiões sociais e não como dons de Deus para caminhar na graça divina, os quais requerem uma preparação catequética e espiritual e pressupõem um caminho de conversão.
25. Na esteira do que se passa na sociedade, também na Igreja os temas financeiros e de gestão requerem maior transparência nas formas de decisão e gestão. Todos se devem sentir pertença de todos e verdadeiramente comprometidos pela vida uns dos outros. A resposta à vocação batismal deve efetivar-se, cada vez mais, como busca da santidade, na escuta dos apelos de Deus e como resposta à Sua vontade, que abraça todas as realidades da vida, inclusive a económica.
26. Como se viu no capítulo anterior, as sínteses assinalam a importância de ir ao encontro dos jovens, acompanhando-os e tornando-os, também eles, protagonistas da evangelização. É necessário que os jovens se sintam verdadeiramente em casa quando caminham em Igreja. Verificou-se a necessidade de escutar os mais jovens e de haver uma grande disponibilidade para os acompanhar nos vários momentos das suas vidas. Assinala-se a importância das famílias como forma de viver essa proximidade para com os mais jovens, recordando que as comunidades cristãs são chamadas a ser família de famílias.
27. No que diz respeito aos padres: pede-se que estes cuidem da sua vida espiritual e que a Igreja como um todo procure que se promova a santificação dos sacerdotes. Pede-se para os sacerdotes, mas, como alguns dizem, também para os leigos, uma maior atenção à formação permanente no âmbito humano, espiritual, afetivo, intelectual e cultural. Os seminários também devem cuidar particularmente desta abertura à formação contínua nos candidatos ao sacerdócio, que se prolongará ao longo de toda a sua vida.
28. Pede-se uma maior atenção e cuidado à forma como a Igreja comunica, quer internamente, quer externamente. Sem abdicar do que é a sua vida íntima e o testemunho de Jesus Cristo, a Igreja deve ser capaz de corresponder à exigência e rigor que são pedidos nos nossos dias, de forma a poder crescer a sua credibilidade. Uma outra forma de comunicação é o modo como os espaços eclesiais se apresentam: pede-se um maior cuidado nos espaços cultuais, assim como estes devem ser expressão do acolhimento de todos, também das pessoas que têm dificuldades de deslocação.
29. A piedade popular deve ser assumida como dimensão importante da realidade eclesial da Igreja em Portugal. Dada a relevância dos santuários, procissões, peregrinações, romarias e festas de padroeiros, esta não deve ser combatida, mas assumida como oportunidade para a evangelização. Como afirmou o Papa Francisco, a piedade popular é «verdadeira expressão da atividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo»[5]. As expressões populares de piedade, de forma particular de cariz mariana, são elementos que enriquecem a vida da Igreja, e devem incluir uma dimensão mais clara de fidelidade e compromisso de vida cristã.
30. Fruto da caminhada sinodal, mostra-se muito necessária a ativação plena das estruturas sinodais já previstas na vida das comunidades cristãs: os Conselhos para os Assuntos Económicos e os Conselhos Pastorais. Não basta, porém, instituir estes conselhos, é necessária a formação para a participação nestes órgãos, de forma a viver uma sinodalidade no seu sentido mais profundo, ou seja, enquanto expressão da comunhão e participação na vida de Igreja.
31. Transversal a todas as sínteses, está o apelo a uma renovação séria da visão da Igreja tal como ela é vivida. É necessária uma redescoberta das intuições fundamentais do II Concílio do Vaticano: a Igreja entendida como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo. Sacramento da comunhão com Deus e da humanidade renovada no Sangue de Cristo. Torna-se necessário ultrapassar uma visão unicamente institucional e sociológica da Igreja, para, sem as negar, se chegar à sua perspetiva teológica e teologal. Recordamos as palavras de primeira homilia do Papa Francisco depois da sua eleição: «Podemos caminhar o que quisermos, podemos edificar um monte de coisas, mas se não confessarmos Jesus Cristo, está errado. Tornar-nos-emos uma ONG sociocaritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor»[6]. Uma perspetiva da Igreja que abdique destas dimensões fundamentais será uma visão parcial, que, por isso, falhará sempre, porque não entenderá a Igreja como ela é sonhada e querida por Deus.
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Pretendemos, em espírito sinodal e com fraterna liberdade, discordar da forma e até do conteúdo do «Relatório de Portugal» apresentado pela equipa sinodal da Conferência Episcopal Portuguesa, porque francamente nos pareceu que não faz justiça ao que as dioceses disseram. Propomos uma perspetiva diferente a respeito da Igreja em Portugal. Como é dito a respeito das sínteses diocesanas no material enviado pelo secretariado romano para o Sínodo dos Bispos, acreditamos que também este relatório pode ser usado «como pedra de toque para o percurso» que, enquanto discípulos missionários de Cristo, somos chamados a percorrer na Igreja em Portugal. O presente relatório foi enviado a todos os Bispos da Conferência Episcopal Portuguesa.
[1] As sínteses diocesanas estão disponíveis nas páginas das respetivas dioceses, exceto de duas, que pedimos a membros das mesmas.
[2] A partir das sínteses que fornecem essa informação, foi possível apurar que em média houve uma participação de 1,14% dos católicos no processo sinodal e, em média, também, 42% das paróquias participaram. Das Dioceses que transmitem algum tipo de informação estatística a respeito da participação, podemos assinalar o seguinte: Algarve: participaram 47 de 82 paróquias; Aveiro: assinala a participação de 5.000 pessoas em 300 grupos paroquiais e outros; Beja: assinala que receberam contributos de 21 paróquias (mas nem todas de grupos propriamente paroquiais), num total de 118 paróquias; Coimbra: assinala-se a participação de 3.000 pessoas; Évora: não distingue se o número de 66 contributos corresponde a participações individuais ou paroquiais, mas assinala que a Arquidiocese conta com 156 paróquias; Funchal: assinala a participação de 1.500 diocesanos; Guarda: assinala que receberam mais de 1.500 respostas, significando um universo de cerca de 2.000 pessoas; Lamego: assinala que participaram no processo cerca de 80% das paróquias, num total de respostas que envolve entre 2.500 a 3.000 pessoas; Lisboa: assinala a participação de 15.000 pessoas; Porto: receberam respostas de 194 paróquias num total de 477; Santarém: assinala que receberam contributos de 54 das 113 paróquias da Diocese; Setúbal: assinala que participaram 40 das 57 paróquias, num total de 6.475 participantes; Viana do Castelo: assinala um total de 2.453 participantes; Vila Real: assinala a participação de 2.000 pessoas; Viseu: assinala que receberam sínteses de 38 paróquias (mais 9 de outras realidades eclesiais) num total de 208 paróquias; Ordinariato Castrense: assinala que receberam 957 respostas.
[3] A democracia fica no âmbito da decisão de maiorias, enquanto a sinodalidade indica uma forma de ser Igreja enquanto participação e corresponsabilidade, como indica o documento A sinodalidade na Igreja da Comissão Teológica Internacional: «Neste contexto eclesiológico, a sinodalidade indica o modo de viver e de agir (modus vivendi et operandi) específico da Igreja, Povo de Deus, que manifesta e realiza em concreto o seu ser comunhão quando caminha em conjunto, quando se reúne em assembleia e quando todos os seus membros participam ativamente na sua missão evangelizadora» (n.º 6).
[4] A este respeito pode-se recordar a resposta do Papa Francisco quando na viagem de regresso a Roma depois de peregrinar ao Santuário de Fátima em 2017 lhe perguntaram como é que num país de matriz católica como Portugal se aprovavam leis contrárias às posições da Igreja. Respondeu o Papa: «Creio que é um problema político, mas também que a consciência católica por vezes não é uma consciência totalmente aderente à Igreja; e que, por trás disso, falta uma catequese matizada, uma catequese humana... Um exemplo duma catequese séria e matizada é o Catecismo da Igreja Católica. Creio que é falta de formação e também de cultura» (Fonte: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/may/documents/papa-francesco_20170513_voloritorno-fatima.html).
[5] Papa Francisco, Exortação apostólica Evangelii gaudium, n.º 122.
[6] Papa Francisco, Homilia, 14 de março de 2013.